É preciso considerar a inteligência como uma das muitas funções adaptativas dos animais. Cada espécie se destaca em uma ou mais qualidades, mas nunca é possível dizer qual é a mais inteligente.
A reflexão é de Roberto Marchesini, etólogo e filósofo italiano e fundador da zooantropologia, em artigo publicado em Rewriters, 13-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cada espécie apresenta um repertório comportamental inato bem definido, de modo que o estilo com que desempenha as diversas atividades, por exemplo caçar ou cortejar, torna-a reconhecível para além do aspecto morfológico. Mas não basta possuir certas exibições expressivas, magistralmente adaptadas às necessidades dessa espécie: é preciso aplicá-las de modo coerente às circunstâncias específicas e adequá-las, com inteligência, às novidades encontradas.
Acreditamos erroneamente que as competências inatas são propriedades autônomas, independentes do controle individual e que não requerem uma ação de regulação por parte do sujeito. De fato, erramos quando contrapomos os dotes intelectivos, como o talento criativo e a capacidade de resolver situações incomuns, àquelas características predeterminadas que chamamos de instintos.
A inteligência de uma espécie, tal como os dotes inatos de competência, é o fruto de uma progressiva adaptação ao seu próprio nicho ambiental e a um certo estilo de vida. Cada espécie, então, apresenta um modo particular de raciocinar – e, portanto, de refletir sobre os lados ocultos dos fenômenos e sobre as possibilidades exploráveis – que depende do trabalho conjunto de algumas características, como a dimensão social, a conformação do corpo, a idade de desenvolvimento, o tipo de memória.
Poderíamos, então, assumir a interrogação que o etólogo Frans de Waal se faz no livro: “Siamo così intelligenti da capire l’intelligenza degli animali?” [Somos inteligentes o bastante para entender a inteligência dos animais?] (Ed. Cortina, 2016). A inteligência, de fato, se manifesta de diversas formas, tais como: identificar uma nova solução diante de problema, inventar uma expressão psicomotora diferente, transformar um objeto em um instrumento, descobrir uma nova forma de alcançar um objetivo, imaginar relações ocultas entre os eventos, ler detalhadamente as dinâmicas sociais dentro de um grupo.
Se observarmos os animais solipsistas, como é o caso da maioria dos felídeos, dos mustelídeos, mas também de alguns canídeos como a raposa, descobriremos uma inteligência predominantemente resolutiva, ou seja, orientada a compreender os requisitos específicos dos problemas. O desempenho desses animais nos parece muito criativo, pois são propensos a construir soluções ad hoc aos problemas, por meio da engenhosidade pessoal.
Pelo contrário, um animal social – pensemos nos lobos e nos cães selvagens, mas também no nosso cachorro – aborda o problema como uma questão que não lhe diz respeito de modo individual e exclusivo, mas que envolve todo o grupo. Nesse caso, o desafio é encontrar uma solução em equipe.
Da mesma forma, podemos identificar espécies particularmente predispostas a utilizar objetos externos como prolongamentos de seu próprio corpo, razão pela qual os indivíduos são propensos à utilização de instrumentos – pensemos nos chimpanzés e nas lontras marinhas.
Por sua vez, outras espécies desenvolvem habilidades atléticas excepcionais, como certos primatas, cujo desempenho é, para todos os efeitos, fruto do intelecto.
Justamente nestes dias chegou às livrarias um ensaio de Justin Gregg, especialista no comportamento dos cetáceos, intitulado “Se Nietzsche fosse un narvalo” [Se Nietzsche fosse um narval] (Ed. Aboca, 2023). O autor nos sugere que silenciemos o excepcionalismo da nossa espécie e vejamos como, em alguns aspectos, as propriedades da inteligência humana também têm aspectos negativos, como demonstra a atual emergência climática.
Há alguns anos, no ensaio “Intelligenze plurime” [Inteligências plúrimas] (Ed. Perdisa, 2008) quis ressaltar a importância de considerar a inteligência como uma das muitas funções adaptativas, que se diferencia não tanto por aspectos quantitativos (quem é mais ou menos inteligente), mas sim por aspectos qualitativos.
Por isso, identifiquei uma série de manifestações intelectivas, tais como:
1) inteligência social, como propriedade de se mover de forma livre e inovadora dentro de sistemas complexos, sabendo construir mediações e negociações, mas também estruturas cooperativas ou de confronto, lembrando as dinâmicas das relações vigentes no grupo;
2) inteligência enigmística ou aptidão a resolver problemas, abordando-os não por meio de expressões padronizadas, mas sim em virtude da propensão a ver o problema a partir de dentro, tentando identificar seus requisitos estruturais;
3) inteligência estético-orientativa, ou seja, propensão a identificar indícios ou sinais e transformá-los em mapas de orientação;
4) inteligência técnica e operacional, como capacidade de identificar novas estratégias ou instrumentos para alcançar os próprios objetivos, por meio da utilização e da transformação de objetos;
5) inteligência cinestésica, como plasticidade na organização da própria psicomotricidade, adaptando-a às situações e explorando todas as possibilidades de movimento do corpo;
6) inteligência referencial, ou seja, a tendência a aprender com referentes externos, tanto coespecíficos quanto heteroespecíficos, usando os outros como modelos e implementando o desenvolvimento de tradições culturais;
7) inteligência comunicativa, entendida como a facilidade de utilizar símbolos abstratos para se referir a entidades particulares a serem transmitidas a um referente, mas também possuir capacidades metalinguísticas, ou seja, a utilização de signos que se dirigem a outros signos;
8) inteligência empática e autorreflexiva indica a prontidão a compreender as condições alheias, a agir com base nessa interpretação e conhecer também as próprias disposições e características;
9) inteligência abstrativa, ou seja, a capacidade de construir conceitos, como igual-diferente, maior-menor, acima-abaixo, conhecido-novo, ou protótipos categoriais referidos a entidades ou, ainda, capacidades matemáticas;
10) inteligência inferencial, ou seja, aptidão a extrair regras a partir da repetição de situações, propensão hipotético-dedutiva diante dos eventos.
Em última análise, cada espécie se destaca em uma ou mais dessas qualidades, mas nunca é possível dizer qual é a mais inteligente.