19 Fevereiro 2020
A digitalização é para nós o que a agricultura foi para os nossos ancestrais: uma opção que parecia nos fazer mais felizes, mas acabou nos tornando mais escravos. Os fósseis humanos demonstram que quando éramos caçadores nômades, vivíamos mais e melhor. Contudo, veio o dia em que a selva já não era suficiente para manter todos nós: ou a cultivávamos ou perecíamos.
A era digital foi iniciada pelo Exército dos Estados Unidos, ao criar a Internet para a guerra, e na paz parecia que faríamos viver melhor, até que hoje ninguém pode viver sem ela. A digitalização, assim como a agricultura, nos dividiu em escravos e senhores. Outrora, da terra. Hoje, dos dados. E nós, escravos, transpiramos o sulco digital em todos os momentos, em múltiplas telas, para que os senhores da nuvem se tornem cada vez mais poderosos.
“O escravo digital, ao revelar sua intimidade, vende sua privacidade, seus dados, o controle de seu destino, e esses dados, sim, geram dinheiro e poder para quem os gerencia em quantidades massivas”, avalia Peter Vorderer, psicólogo social alemão.
A entrevista é de Lluís Amiguet, publicada por La Vanguardia, 17-02-2020. A tradução é do Cepat.
O celular ajudava a viver melhor e agora é melhor viver sem ele?
Mas quem consegue? O mundo já se dividiu em senhores e escravos digitais. E não podemos fugir.
Quem são os senhores e quem são os escravos?
Escravos são aqueles que dedicam sua atenção e tempo para obter o simulacro digital da companhia virtual em redes; e informações, sexo e entretenimento nas telas.
São os novos ricos e pobres?
Os pobres passam muito mais tempo de suas vidas na frente de todos os tipos de telas, porque são mais baratas e oferecem gratificação mais imediata do que a que podem obter na vida real.
Isso também é pobreza de espírito.
É que os escravos digitais o melhor, às vezes a única coisa, que têm para oferecer é sua atenção e seu tempo. E empregam sua vida em prover com dados os senhores da nuvem, os bilionários da era digital que, sim, se enriquecem.
Para onde nos leva a nova divisão social?
Está transformando os modelos de negócio e indústrias de forma espasmódica e incessante.
Como?
Tudo: a comunicação, o banco, o lazer e seus conteúdos, a política... Tudo se desmonetiza e desmaterializa. A mudança é radical. Já vivemos em outro mundo, que não está neste. Está na nuvem e tem novas regras e senhores.
Você é alemão. E em relação ao automóvel?
Existem automóveis digitais baratos para todos e com todo o tipo de uso compartilhado, mas hoje precisamos fabricar carros icônicos, que diferenciam a seu senhor. Porque a massificação digital converte o se sentir único em um luxo indispensável.
E como transforma o poder?
O fluxo de dados ajuda a controlar as opções - também políticas - de milhões de usuários de celular. De forma democrática, é claro.
Como?
Agora, nos Estados Unidos, cada usuário recebe a propaganda política projetada para convencê-lo a votar no partido que a paga, de acordo com os interesses que revelou ao navegar.
De gostos sexuais à religião?
Vai cedendo ao poder um retrato perfeito de si mesmo, ao clicar pela rede, e os poderosos utilizam isso nas urnas ou para que não vote, que inclusive é algo mais fácil de conseguir.
Além disso, tornaram-se ricos dessa forma?
O escravo digital, ao revelar sua intimidade, vende sua privacidade, seus dados, o controle de seu destino, e esses dados, sim, geram dinheiro e poder para quem os gerencia em quantidades massivas.
Google, Facebook, Twitter...?
A Internet começou como uma invenção do Exército dos Estados Unidos, ou seja, do Estado. E esse poder das corporações do clique retorna ao Estado.
Como?
Os FAAAN (sigla para Facebook, Amazon, Apple, Alphabet, antes Google, e Netflix) são o primeiro poder empresarial do mundo graças ao comércio de dados. Mas seu primeiro e último cliente são os Estados. Ao passo que na China, essas multinacionais são o Estado desde que nascem.
Em troca do que o escravo digital cede o seu tempo, sua atenção e sua intimidade?
Em troca da gratificação instantânea pelo clique. São emoções poderosas, como a de pertencer a uma tribo, à sua comunidade. Em nossa evolução, quem fica sozinho é devorado.
Não é melhor conversar com um amigo do que tuitar com 100.000 contatos?
A evolução faz com que nos sintamos gratificados por qualquer sensação de reconhecimento, e as redes a fornecem. E, em geral, a navegação é divertida e gera satisfações imediatas.
É que agora não é mais divertida, mas indispensável: quem pode viver sem navegar?
Esse é o limiar que estamos atravessando, mas cada classe social de maneira diferente: os ricos navegam cada vez menos e vivem mais; e os pobres, ao contrário. Quanto mais rico e poderoso você é, mais opções tem de viver a vida real e menos precisa substituí-la pela digital.
Viver sempre no virtual é coisa para pobres?
É como o consumo de comida lixo ou de entretenimento de qualidade muito baixa.
E não há hierarquização pela idade?
Os baby boomers se relacionam com a vida digital de maneira diferente e já fomos jovens diferentes dos de hoje.
Como éramos e como são hoje aos 20 anos?
Nós sabíamos que havia uma possibilidade de progredir como pessoas e como sociedade com esforço e persistência. Estabelecíamos objetivos e esperávamos alcançá-los um dia.
Por acaso, hoje, não possuem?
Os jovens almejam não perder o que têm. E vivem mais dependentes da gratificação instantânea e dos objetivos próximos que do futuro. A digitalização os torna assim, e por ser assim, fazem com que a digitalização progrida.
É o ‘Wonderland’ de Alice, no qual você precisa correr para poder continuar no mesmo lugar?
Esse é o paradigma da sociedade digital e os jovens o interiorizaram. Por isso, já não se esforçam para progredir, mas, ao contrário, para não perder o que possuem. Note seus salários encolhidos, mas, sobretudo, mensure o que podem esperar quando forem mais velhos.
Por que leem menos o jornal?
Porque querem ser únicos. A digitalização os transforma em massa e precisam se diferenciar. Eles não querem ler o que todo mundo lê. Precisam se sentir originais.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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“O celular já nos dividiu em senhores e escravos digitais”. Entrevista com Peter Vorderer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU