03 Outubro 2019
A antropóloga Mary L. Gray é membro dos comitês de ética sobre sociedade e internet de Harvard e Stanford, é especialista em trabalho do futuro e alerta que a nova economia criará uma classe social extremamente precária, se não evitarmos.
É coautora de Ghost work, onde revela como os serviços prestados por empresas como Amazon, Google, Microsoft e Uber só podem funcionar graças à avaliação e a experiência de uma vasta e invisível força de trabalho humana. Essas pessoas e seu “trabalho fantasma” fazem a internet parecer inteligente.
Gray participou de um debate sobre o trabalho do futuro da Digital Future Society, um programa do Mobile World Capital Barcelona que aborda os dilemas éticos da nova economia digital.
A entrevista é de Ima Sanchís, publicada por La Vanguardia, 02-10-2019. A tradução é do Cepat.
Quando comecei a trabalhar na Microsoft, estávamos preocupados que a automação do trabalho deixasse as pessoas desempregadas, então iniciamos um estudo minucioso sobre como a inteligência artificial iria influenciar.
E?
Desde o início, constatei que a maioria das pessoas no mundo não tem acesso a um trabalho fixo e que, na realidade, a inteligência artificial oferece trabalho para centenas de milhares de pessoas. Por trás do tradutor do Google, existem milhares de linguistas.
Trabalhadores invisíveis.
Sim, que são pagos por uma tarefa específica.
A inteligência artificial não é a tal?
Não.
Está cheio de trabalho duro por trás dela?
Efetivamente, são necessárias muitas pessoas para ensinar o software a pensar. Para identificar, por exemplo, o spam, é preciso consultar milhões de e-mails e escolher palavras e imagens chaves que, depois, são introduzidas no software.
Os inteligentes são eles.
E estão por trás desses programas, atualizados constantemente, que ao escrever acusam a palavra e sugerem a próxima. Por trás de qualquer modificação, mudança cultural ou modismos está o trabalho de muitíssimas pessoas.
Por trás do controle de conteúdo do Facebook existem muitos profissionais?
A automação não consegue acompanhar a humanidade. No Facebook, as conversas são informais e os programas não são sutis. Para avaliar o conteúdo, são necessárias pessoas que conheçam o contexto cultural.
Qual é o perfil dessas pessoas?
Graduados, com cerca de 30 anos, que recebem por tarefa e que são muito mal remunerados. Passei anos, com Siddharth Suri, um cientista da computação, estudando a vida cotidiana desses trabalhadores fantasmas que fazem com que a internet pareça inteligente.
O que te surpreendeu?
Que pesquisam e se conectam entre eles na Internet, socializam por Skype, parabenizam-se no aniversário e fazem ma coleta quando “um companheiro” está com um problema no computador. Possuem uma rede mais poderosa que os autônomos.
Por que fica surpresa?
Os engenheiros distribuem o trabalho para que aqueles que o realizam não se relacionem, querem avaliações independentes. Não pensaram que as pessoas precisam se comunicar, que todos procuramos um significado para o nosso trabalho.
Um trabalho mais precário que o dos entregadores da Deliveroo?
Sim, porque é menos visível e mais difícil de rastrear. A nova economia criará uma classe social extremamente precária se não evitarmos.
É o trabalho do futuro?
Sim. É uma maneira de organizar o emprego. Abarca tudo. A tendência é criar plataformas em rede que permitam contratar por tarefa qualquer coisa, de um advogado a um jornalista, um médico, uma enfermeira, um consultor tributário. Os contratos fixos ficaram para trás.
Alguma razão para otimismo?
Agora, todos temos uma causa comum: estabelecer os direitos dos trabalhadores sob demanda, começando a valorizar esse trabalho quando usamos um aplicativo. Devemos garantir que esse novo tipo de trabalho crie oportunidades em vez de miséria.
Como antropóloga, o que acontece conosco que tendemos a escravizar o próximo?
Pergunta difícil ... Acredito que temos medo.
As multinacionais nos causam medo.
Devemos temê-las porque permitimos que se tornem muito grandes, que mandem nos governos e não percebemos o controle que possuem. Entraram em nossas vidas.
Não podemos nos organizar com empatia?
Por mais de cem anos, competimos pelo trabalho em tempo integral. Essa é a nossa história. Mas, cada geração tem a oportunidade de ser generosa e pensar o modo como podemos beneficiar a todos, e este é o momento.
O que o comitê de ética da Microsoft faz?
Avaliamos propostas de pesquisa de cientistas da computação e engenheiros da empresa que envolvam usuários e seus dados.
Estamos muito expostos?
Somos vulneráveis como indivíduos, mas como sociedade temos o poder para nos proteger.
A inteligência artificial será inteligente?
Não acredito.
Passamos a vida conversando com máquinas estúpidas por telefone. É frustrante.
Sim, hahaha. As empresas de tecnologia e os engenheiros pensavam que aquilo que os usuários queriam era informação e resolução. Mas, o que queremos é tecnologia que nos ajude, não que decida por nós. Não me diga o que tenho que fazer, diga-me o que posso fazer.
Uma maneira de reduzir custos.
A ironia é que as empresas pensavam que, além de reduzir custos, os consumidores avaliariam positivamente. Mas, queremos falar com pessoas que entendam nosso problema e possuam empatia.
Parece óbvio.
Por isso, temos um comitê de ética para ajudar os engenheiros a não se esquecer da dinâmica social.
Como você vê o futuro dessa interação homem-máquina?
É o momento de valorizar o que nos torna humanos, que é nossa capacidade de servir uns aos outros e de nos ouvir, coisas que as máquinas não podem fazer.
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“Agora, todos temos uma causa comum: estabelecer os direitos dos trabalhadores 'fantasmas'”. Entrevista com Mary L. Gray - Instituto Humanitas Unisinos - IHU