20 Dezembro 2024
"Talvez independentemente do famoso Padre da Igreja, a arte não hesitou e, embora caindo no anacronismo, retratou repetidamente o anjo surpreendendo Maria enquanto ela lia um livro aberto à sua frente: a lista seria longa com figuras como Leonardo, Botticelli, Pinturicchio e assim por diante. As Anunciações mais reproduzidas são aquelas de Fra Angelico. Vamos escolher apenas sua têmpera sobre painel medindo 175x180 cm, mantida no Museo Diocesano de Cortona e datada por volta de 1430-33, talvez menos conhecida do que o afresco paralelo do convento de San Marco em Florença. Quando Gabriel aparece, Maria cruza os braços e deixa o livro aberto que estava lendo apoiado em sua perna direita", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 15-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Escrituras. Para o véu que ocultava o Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, foram escolhidas virgens descendentes da tribo de Davi, entre elas Maria, que compartilharia com José a linhagem davídica.
O católico praticante que participará da liturgia deste domingo - que no calendário é rubricado como o “Quarto do Advento” - ouvirá a proclamação de uma famosa página do Evangelho de Lucas (1,26-38) que leva o título tradicional de “Anunciação do anjo a Maria”. É a raiz genética do Natal que estamos prestes a celebrar, porque a jovem de Nazaré - que leva o nome da antiga irmã de Moisés, o líder do êxodo de Israel do Egito -, prometida em casamento a um certo José, é informada de repente de que “o Espírito Santo virá sobre ela..., conceberá um filho, o dará à luz e o chamará de Jesus”.
Se a data convencional do nascimento dessa criança foi fixada em 25 de dezembro, foi espontâneo recorrer a nove meses antes, 25 de março, para colocar aquela “Anunciação”. Um evento que triunfou na história da arte em mil e uma iconografias, distribuídas ao longo dos séculos nas obras dos maiores artistas. É interessante notar que, na Idade Média, para algumas cidades da Toscana, o Ano Novo coincidia exatamente com o dia 25 de março. Mas mesmo em nossos tempos secularizados, esse dia, destinado não apenas a revolucionar a vida da jovem Maria, mas de toda a história do Ocidente, aparece em formas inéditas e até mesmo provocativas: é deste ano o filme Vangelo secondo Maria (Evangelho segundo Maria) de Paolo Zucca, baseado no romance homônimo de Barbara Alberti de 1978, agora reeditado pela Rizzoli. Torna-se espontâneo lembrar um filme bem conhecido, mas igualmente provocativo, Je vous salue Marie, que Jean-Luc Godard levou às telas em 1985.
De forma um tanto inesperada, gostaríamos de extrair dessa cena, que ocorreu em uma modesta moradia em um vilarejo da Galileia, um fio narrativo apócrifo que, no entanto, estimulou a história da arte. A sugestão nos veio de um artigo “filológico” de um exegeta brasileiro, Mattia Seu, que apareceu em uma publicação científica, a “Rivista biblica”, em uma de suas últimas edições (outubro-dezembro de 2023). O título era um tanto enigmático, O longo véu de Davi a Maria, mas um dos primeiros subtítulos do texto, no entanto, era divertido: “O que Maria estava fazendo quando Gabriel chegou?”, ou seja, o anjo anunciador. Sabemos que Santo Ambrósio, em seu tratado De virginibus, não tinha dúvidas: Maria estava sem outra companhia que não a de “tantos livros, tantos arcanjos, tantos profetas”, talvez uma forma alusiva de evocar as Sagradas Escrituras, que são de fato uma “biblioteca” de 73 volumes e livretos.
Talvez independentemente do famoso Padre da Igreja, a arte não hesitou e, embora caindo no anacronismo, retratou repetidamente o anjo surpreendendo Maria enquanto ela lia um livro aberto à sua frente: a lista seria longa com figuras como Leonardo, Botticelli, Pinturicchio e assim por diante. As Anunciações mais reproduzidas são aquelas de Fra Angelico. Vamos escolher apenas sua têmpera sobre painel medindo 175x180 cm, mantida no Museo Diocesano de Cortona e datada por volta de 1430-33, talvez menos conhecida do que o afresco paralelo do convento de San Marco em Florença. Quando Gabriel aparece, Maria cruza os braços e deixa o livro aberto que estava lendo apoiado em sua perna direita.
O simbolismo é claro: Maria é a crente por excelência que descobre nas profecias bíblicas o anúncio de sua extraordinária maternidade e a figura messiânica de seu filho. Não se pode excluir, entretanto, que a convicção comum também se reportasse à imagem de Maria orante e que aquele fosse seu livro de orações. Mas, nesse ponto, é necessário introduzir um novo percurso interpretativo da Anunciação. Ele é desenvolvido em nível literário e histórico-crítico precisamente pelo ensaio acima mencionado de Seu, cujo subtítulo geral tecnicamente é: “Um fio vermelho entre o protoevangelho de Tiago e o Targum Jonatã”.
Nesse caso, antes de explicar seu sentido, vamos recorrer novamente à iconografia. Vamos entrar idealmente na basílica romana de Santa Maria Maggiore e fixar nosso olhar nos mosaicos do arco triunfal.
Estamos no século V e o Papa Sisto III (432-440) é quem encomenda aquele ciclo de mosaicos, que também inclui a cena da Anunciação. Maria, sentada em um trono, segura um fuso sob o braço direito, enquanto com as mãos enrola um novelo púrpura, colocado em uma cesta no chão. O anjo Gabriel a encontra, então, na rotina diária de seus afazeres.
Como no caso anterior, porém, esconde-se um simbolismo muito mais complexo, que pode ser desvendado recorrendo-se a um dos mais famosos apócrifos marianos, o Protoevangelho de Tiago (século II), fundamental - ao lado dos Evangelhos canônicos - para decifrar vários temas artísticos, como a Natividade da Virgem, seus pais Ana e Joaquim e, sobretudo, a “apresentação” da menina Maria ao templo. Ora, para confeccionar o véu que ocultava no Templo de Jerusalém o Santo dos Santos – ou seja, a cela sagrada da presença divina, a qualquer olho humano (exceto para o Sacerdote, uma vez por ano, por ocasião da solenidade penitencial do Kippur) –, haviam sido selecionadas algumas virgens descendentes da tribo de Davi.
Entre elas, a jovem Maria também foi escolhida e, de acordo com esse Protoevangelho, o anjo Gabriel teria aparecido a ela enquanto ela estava fiando “a púrpura genuína e o escarlate” que – com outros tecidos secundários – eram a base do véu sagrado. Se o Evangelho de Mateus exalta a descendência davídica de José, o pai legal de Jesus, os apócrifos também atribuiriam essa matriz genética a Maria.
E, de acordo com a tradição judaica atestada pelo chamado Targum Jonatã (séculos IV-V, com base em fontes mais antigas), desde as origens cabia justamente à família davídica tecer o véu do primeiro Templo de Jerusalém, erguido pelo filho de Davi, o rei Salomão. Mais uma vez, podemos perceber o quanto a arte - como sugeria Chagall – tenha haurido do “alfabeto colorido” de símbolos, imagens e caracteres presentes naquele “grande códice” que foi a Bíblia com a tradição que dela derivou.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A anunciação e seus símbolos. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU