10 Dezembro 2024
Enquanto o novo governo do país tenta projetar legitimidade dentro e fora de suas fronteiras, o exército sionista expande seu controle sobre o território nas Colinas de Golã, e a Europa congela milhares de solicitações de asilo de pessoas sírias.
A reportagem é publicada por El Salto Diario, 10-12-2024.
O estado sionista não perde tempo para agredir outros países. A queda de Bashar al-Assad foi o momento escolhido pelo governo israelense para se destacar com demonstrações de força e impunidade, surdo às condenações internacionais. Durante a jornada de segunda-feira, Israel lançou mais de 250 ataques sobre todo o território sírio, atingindo três aeroportos, bombardeando nas imediações do porto de Latakia e destruindo infraestrutura militar. As bombas caíam até em Damasco enquanto o líder do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), Abu Mohammed al Golani, prosseguia com seu esforço de promover uma transição pacífica de poder, para transmitir calma dentro e fora de suas fronteiras.
A imagem de uma “transição ordenada” se concretizou ontem com a aceitação do primeiro-ministro do deposto Al-Assad de transferir o poder ao seu substituto: Mohammed al Bashir, líder à frente do chamado Governo de Salvação designado para o cargo. Enquanto isso, as imagens de famílias entrando na prisão de Saydnaya, célebre local de detenção e tortura, em busca de seus entes queridos, presos às vezes por décadas, simbolizavam o fim de um regime que reprimiu por mais de 50 anos toda dissidência política. Reencontros com prisioneiros políticos e celebrações em muitas cidades sírias e onde quer que resida a diáspora mostraram o quanto o fim do regime de Al-Assad era desejado por uma parte significativa da população.
Diante da alegria de milhares de sírios com o inesperado fim de um regime que durou mais de meio século, o entusiasmo de Benjamín Netanyahu, perante o que considera uma oportunidade única para avançar em sua própria agenda, veio após ele se atribuir a queda do regime, a qual descreveu como “o resultado direto dos duros golpes que Israel desferiu contra o Hamas, Hezbollah e o Iraque”.
Na leitura do acusado por crimes de guerra, o Hamas estaria “mais isolado do que nunca” após a queda de al-Assad. Algo que, segundo ele, poderia influenciar positivamente em uma eventual negociação para a libertação dos prisioneiros do 7 de outubro. Todos esses argumentos foram usados pelo mandatário para comemorar a continuidade de sua guerra contra Gaza, e afirmar que ela não irá parar tão cedo.
O entusiasmo de Netanyahu e sua ofensiva contra a Síria pós-Assad coexistem com a condenação internacional à decisão israelense de expandir sua ocupação dos Montes Golã sírios, uma decisão que foi qualificada pela ONU como uma violação do acordo de cessar-fogo de 1974, que pôs fim à guerra de 1967. Catar, Iraque e Arábia Saudita condenaram as ações israelenses, enquanto o Irã chegou a pedir a intervenção das Nações Unidas. Do Líbano, o Hezbollah também condenou tanto os ataques contra a Síria quanto a invasão israelense de seu território, “enquanto reafirmamos nosso apoio à Síria e seu povo, sublinhamos a necessidade de manter a unidade da Síria”, afirmava o grupo, apontado como um dos aliados de Bashar al-Assad, que não foi mencionado em seu comunicado.
A ocupação de terras próximas aos Montes Golã pode ser apenas o começo de um objetivo marcado pelo apetite da ultradireita sionista: expandir o “Grande Israel” até Damasco, como defendia o ministro das Finanças Bezalel Smotrich em outubro.
Israel não é o único estado que tem sua agenda territorial sobre o estado sírio. A Turquia, através do grupo que “patrocina” o Exército Nacional Sírio, teria tomado a cidade de Manbij, no nordeste do país, um enclave estratégico onde governavam forças curdas da Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria (DAANES). E é que, como muitos apontam, Tayyip Erdogan pode tirar proveito deste momento de incerteza para sua guerra contra os curdos.
Por outro lado, onze anos após seu fechamento, a Turquia abriu a fronteira de Yayladagi com a Síria para facilitar o retorno de pessoas refugiadas. Erdogan tem adotado uma política de deportações forçadas nos últimos anos, considerando a população síria refugiada como um problema nacional, algo fundamental, por exemplo, nas últimas eleições.
“Jihadistas”, “herdeiros da Al Qaeda”, “terroristas”. As descrições que acompanham o Hay’at al-Tahrir al-Sham (HTS) não surgem do nada. Surgido no contexto do intervencionismo estadunidense (seu líder, al-Golani, se uniu à Al Qaeda iraquiana durante a invasão daquele país), a trajetória de al-Golani foi gerando grupos com uma agenda islamista conservadora, passando por uma série de alianças e rupturas (desde a Al Qaeda até o ISIS, forças das quais ele se distanciou) para se concentrar na queda do governo de al-Assad e na tomada do poder na Síria.
Formado por muçulmanos sunitas, maioria no país enquanto os alauítas dominavam o poder, uma das principais críticas enfrentadas pelo HTS é sua política em relação às outras minorias do país: os drusos e os cristãos, que foram alvo de discriminação e violência em Idlib, cidade no noroeste da Síria que o HTS, anteriormente conhecido como Frente Al Nusra, governa desde 2015. Nos últimos tempos, houve esforços do grupo para se apresentar como tolerante em relação às outras minorias religiosas, embora não faltem acusações de que esse discurso não corresponde à realidade.
Diante das suspeitas, o novo governo tenta demonstrar moderação e uma transição gradual. Nesse sentido, o embaixador da Síria na ONU, Koussay Aldahhak, informou que, durante o período de transição, o mesmo corpo diplomático seria mantido, ao mesmo tempo em que condenava, já como representante do novo governo, os ataques de Israel, considerando que o estado sionista está “se aproveitando da transição que os sírios estão fazendo agora”. Uma transição sobre a qual o enviado falou com convicção: “Uniremos forças para reconstruir nosso país, reconstruir o que foi destruído e reconstruir o futuro, um futuro melhor para a Síria e todos os sírios”.
Assim, o anúncio do ex-primeiro-ministro Mohammad Ghazi al-Jalali, de que transferirá o poder ao recém-nomeado Governo de Salvação e seu líder, o recém-designado Mohammed al-Bashir, junto com a afirmação do HTS de que declarará uma anistia geral para todos os soldados recrutados sob o comando de Al-Assad, faria parte dessa narrativa de uma transição tranquila, enquanto os países da região, como o Catar, começam a estabelecer linhas de diálogo com o novo regime. Na Europa, governos como o alemão e o francês se abrem à possibilidade de cooperar com as novas autoridades.
“Julgaremos as autoridades que têm o controle agora na Síria pelas suas ações, e partiremos daí”, disse ontem Robert Wood, embaixador dos Estados Unidos na ONU. São todas afirmações que, por enquanto, evitam o fato de que o HTS é considerado um grupo "terrorista" tanto pelos Estados Unidos, quanto pela União Europeia e pela Turquia.
O Hamas, grupo palestino que compartilha com o HTS a designação de "grupo terrorista" por parte dos países ocidentais, parabenizou, por sua vez, os sírios "por alcançar suas aspirações de liberdade e justiça", manifestando seu compromisso com a unidade territorial do país e lembrando o papel fundamental da Síria como apoio à causa e resistência do povo palestino.
Independentemente de como a situação na Síria se revele nas próximas semanas, assim como a Turquia, vários estados europeus têm sua agenda bem definida: não querem mais pessoas refugiadas sírias. O que tem sido uma preocupação nos últimos anos em países como Alemanha ou Dinamarca, agora se torna uma realidade concreta, com vários países da União Europeia anunciando que congelarão os processos de solicitação de asilo enquanto a situação no país não se esclarece. Esse tem sido o caso da própria Alemanha (que conta com a maior comunidade de sírios fora do país, com 1,3 milhões de pessoas de origem síria), da Inglaterra, França, Países Baixos e Suécia.
Para o diretor da organização Mercy Corps, com sede na Síria, a queda de Al-Assad, no entanto, não resolve por si só a crise humanitária. “Anos de conflito, além de desastres naturais, devastaram a economia síria, interrompendo a produção de suprimentos e serviços e destruindo os meios de vida”, alertava, avisando sobre o possível impacto de milhões de sírios retornando nessas circunstâncias.
As circunstâncias estão longe de ser claras. Resta a herança brutal do regime dos Assad e de 14 anos de guerra com diversos atores em confronto. Nesse sentido, especialistas em direito internacional alertam para a necessidade de preservar as fossas comuns que estão sendo encontradas, para que possam servir como evidências na necessária prestação de contas que o Estado sírio deve enfrentar. O time sírio do Diakonia International Humanitarian Law Centre explicou: “Proteger esses locais é fundamental, pois poderiam fornecer informações cruciais e provas que apoiarão a prestação de contas e contribuirão para a preservação do direito à verdade, além de reparação para as famílias dos desaparecidos e mortos”.
As ameaças à segurança de um país instável também estão muito presentes, algo que o HTS está tentando evitar com um grande deslocamento de forças aos edifícios estatais ou pontos estratégicos da capital. No entanto, a diversidade das forças unidas na oposição a Al-Assad pode gerar tensões e confrontos pelo poder, uma vez que o anterior governante saia.
Sob o olhar de potências que não hesitaram em intervir nos assuntos sírios, o novo governo precisará mostrar controle sobre o poder, ao mesmo tempo em que inclui outros atores na tomada de decisões, integrando as diversas comunidades e grupos armados. Tudo isso sob o fantasma da fragmentação e da guerra total que assolaram países com premissas semelhantes: a Líbia pós-Gaddafi ou o Iraque pós-Saddam. Alguns analistas apontam que al-Golani não surge do nada, mas com base nesses precedentes, desenvolveu uma linguagem focada em tranquilizar seu público, tanto dentro quanto fora do país, especialmente diante das potências ocidentais.
Além de acalmar os países europeus, que buscam uma desculpa para se desvincular dos refugiados sírios, outro problema parece especialmente problemático para o futuro da Síria: as consequências para os curdos dessa mudança. Em primeiro lugar, a ameaça do ISIS, alimentada pela Turquia, pesa sobre as forças curdas que conseguiram vencê-los em 2019. Além do fantasma do ISIS, um dos grupos aliados do HTS, o já mencionado Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, representa uma ameaça direta à autonomia curda em Rojava.
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Israel bombardeia a transição síria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU