07 Dezembro 2024
"O cristianismo é uma religião do homem e da mulher, e é especialmente sobre esta última, por meio da figura da mãe Maria, que repousa o profundo sentimento de fé em Deus. Isso leva, na história da arte, a um número infinito de sujeitos que representam o tema da mãe com o filho: a Maternidade ou a Natividade", escreve Vittorio Sgarbi, crítico de arte e historiador italiano, em artigo publicado por La Stampa, 05-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Um trecho do livro “Natività. Madre e figlio nell’arte. (Natividade. Mãe e filho na arte)”. Os deuses são imaginados como sendo maiores, mais fortes e mais belos do que os homens. Eles são exemplos de perfeição, coragem, virtude e estão acima de nós: eles nos guiam, nos protegem. Isso foi bem compreendido pelo grande filósofo Xenófanes, que via os deuses como projeções dos desejos e das visões dos homens: “Os homens acreditam que os deuses nasceram e têm voz e corpo semelhantes aos deles”. Assim, no mundo pagão, os deuses são projeções da nossa ideia de perfeição: Júpiter o poder, Vênus a beleza, Marte a força, Minerva a inteligência, Mercúrio a astúcia, e as estátuas antigas são suas representações. Os deuses são distantes, grandiosos, inalcançáveis. A religião cristã propõe uma inversão dessa relação e substitui a força e o poder pelo amor. O primeiro passo dessa revolução é mostrar-se como uma religião do homem, não dos deuses.
A força da religião cristã, o tema dominante de sua proposta, é sua perfeita coincidência com os tempos da vida terrena. O cristianismo é uma religião do homem e da mulher, e é especialmente sobre esta última, por meio da figura da mãe Maria, que repousa o profundo sentimento de fé em Deus. Isso leva, na história da arte, a um número infinito de sujeitos que representam o tema da mãe com o filho: a Maternidade ou a Natividade. Deus é uno e tem um princípio de onipotência em sua própria essência; mas seu primeiro ato diante de nós não é a criação, que é dada, mas o seu tornar-se criatura, tornar-se homem. Deus é Cristo e Cristo é um homem nascido de uma mulher simples e humilde. Sua força é compartilhar a vida e o destino da humanidade, e isso pressupõe um diálogo, um acordo entre a realidade indefinida que é Deus e a Virgem que se torna mãe.

Natività. Madre e figlio nell’arte, de Vittorio Sgarbi (Foto: Divulgação)
Esse é o tema da Anunciação, o início da história. Mais do que qualquer outra religião, o cristianismo se expressa em representações, e as histórias dos Evangelhos ilustram a vida de Cristo a partir de seu nascimento; mas, tecnicamente, o ícone mais representado e objeto de devoção sem limites é a Nossa Senhora com o Menino. A Natividade, tanto como descrição quanto como adoração do nascimento de Cristo, é o início de tudo. Sua síntese está na imagem da Mãe segurando o Menino. Tudo o que vemos é uma mãe com seu filho: apreciamos a quantidade e a variedade de estilos de mestres supremos e artistas menores. Olhando bem, não há nada de divino. O a priori da concepção está por trás da imagem e, portanto, as razões do culto são resolvidas no espelhamento de um momento fundamental na vida do homem: o nascimento.
A religião cristã não mostra o poder de Deus, mas a simplicidade dos afetos entre a mãe e menino, tanto em Giotto como em Pietro Lorenzetti, como em Vitale de Bologna, como em Giovanni Bellini, como em Bronzino, como em Caravaggio. O tema é simplesmente a vida, e a maternidade é a mais humana das condições, que na Natividade se torna um fato religioso e determina o destino daquela criança e da humanidade que encontra sua salvação naquele recém-nascido. Maria, no ato da maternidade, não é uma majestade distante, entronizada, segurando uma criança que já é divina: ela é simplesmente, na maioria das representações, uma mãe com seu filho. É por isso que a maternidade de Maria não é um tema religioso, mas um tema humano. E é aí que reside a força do cristianismo: a nossa religião coincide com a vida, se sobrepõe à vida desde suas origens.
Assim, uma pintura profundamente revolucionária como A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, que é o nu de uma mulher, do qual emerge a vida, não é uma inversão do tema da maternidade, mas representa seu arquétipo absoluto. Estamos diante da criação, da origem da vida.

A origem do mundo, de Gustave Courbet (Foto: Wikimedia Commons)
Da mesma forma, as Nossas Senhoras com a Crianças de Giotto, Rafael e Bellini, conhecidas por muitos, não impõem necessariamente uma relação de devoção religiosa, mas estimulam um reconhecimento imediato, um espelhamento em nome da vida.

Madonna e criança, de Giotto di Bondone (Foto: Wikimedia Commons)

Madonna de Loreto, de Rafael (Foto: Wikimedia Commons)

Madonna com a Bênção do Menino Jesus, de Bellini (Foto: Wikimedia Commons)
Esse tema fundamental na história da arte é precedido por um momento fundamental no qual a Criança ainda está implícita, a Concepção. Uma das imagens mais famosas é a Madonna del Parto de Piero della Francesca em Monterchi, um pequeno vilarejo não muito distante do local de nascimento de Piero, Borgo Sansepolcro. E ali vemos uma jovem com um ar simples e ao mesmo tempo orgulhoso, confiante, virada de três quartos para mostrar sua barriga redonda, enquanto com a mão indica o que sente por dentro. A Anunciação é o momento germinal desse nascimento, mas a singularidade da pintura de Piero della Francesca é mostrar a passagem dos meses no crescimento do volume da barriga: aquela mãe é uma mãe igual a todas as mães de todos os tempos. É uma celebração do ato mais natural da vida, indicando a distância entre as divindades pagãs e o Deus cristão. A partir daí, em uma linha que segue o tempo da vida que vem à luz, origina-se a maravilhosa série de Nossas Senhoras com o Menino de absoluta sacralidade, assim como o ato do nascimento é sagrado. Sagrado e Natividade se correspondem, porque a nossa religião faz com que o momento mais simples, mais natural e mais inevitável coincida com o momento mais sagrado: a Natividade coincide com a Maternidade.

Madonna del Parto, de Piero della Francesca (Foto: Wikimedia Commons)
Até mesmo no momento mais terrível, a paixão de Cristo, a morte como o ato final de uma vida humana exemplar contém o tema da maternidade, a correspondência entre uma mãe e um filho. Vemos isso naquela pintura formidável que é a Crucificação na capela mais alta do Sacro Monte de Varallo, a obra-prima de Gaudenzio Ferrari. A descrição de um crítico de arte, devoto, profundamente cristão e, portanto, integralmente humano, como Giovanni Testori, nos diz tudo. Nos rostos das mães e das crianças, com suas bochechas vermelhas, já se pode sentir o ar da montanha, vê-se um povo laborioso e devoto: “As coisas; as figuras; os rostos; as crianças alegres e belíssimas; os senhores abastados; os cães; os cavalos; os cavaleiros; as mães; as meninas; os jovens; os estandartes; as carnes tenras, rosa; aquelas esticadas e inchadas devido ao excesso de vital maturidade; as barbas brancas; os cabelos tão celestiais, tão paradisíacos, que parecem auréolas... E tudo dado como se fosse na amplitude de um sopro que diferencia e une.

Madonna del Parto, de Piero della Francesca (Foto: Wikimedia Commons)
Corações palpitantes; apreensões; medos; altivezes gananciosas; mentes ofuscadas pelo excesso de ter; sustos; horrores; presságios; tristezas súbitas; melancolias. E aquele refletir-se, em todos, da agonia dos que morrem e do tormento dos que assistem. Os anos de uma cidade; as antiguidades de um vale; tempos e tempos de história humana e, portanto, de sofrimento e de alegria, de felicidade e de dor”. É difícil esquecer essas palavras, que acompanham como um sussurro a exaltante e comovente visão.
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