28 Novembro 2024
Diante de uma série de escândalos envolvendo fundadores e outros indivíduos carismáticos que cometeram abusos sob o pretexto de falsas experiências espirituais e místicas, o Vaticano está estabelecendo um grupo de estudo para definir mais claramente este crime dentro da legislação católica.
A reportagem é de Elise Ann Allen, publicada por Crux Now, 27-11-2024.
Um comunicado assinado em 22 de novembro pelo cardeal argentino Dom Víctor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), e aprovado pelo Papa Francisco, abordou uma antiga disputa entre canonistas sobre o conceito de “falso misticismo”.
Tradicionalmente, o “falso misticismo” tem sido considerado um crime contra a fé, sob a competência da DDF, mas sem um padrão legal claramente definido.
O artigo 10 da edição de 1995 do Regulamento da DDF, assinado pelo então prefeito Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, afirma que a seção disciplinar da DDF “trata dos crimes contra a fé, bem como dos crimes mais graves, a juízo da autoridade superior, cometidos contra a moral e na celebração dos sacramentos”.
O dicastério, diz, é responsável por uma variedade de problemas e comportamentos relacionados à disciplina da fé, como “casos de pseudomisticismo, de supostas aparições, de visões e mensagens atribuídas a origens sobrenaturais, de espiritismo, magia e simonia”.
Entretanto, de acordo com o comunicado da DDF, o termo “falso misticismo” é tratado em um contexto específico relacionado “à espiritualidade e supostos fenômenos sobrenaturais” e agora é tratado na seção doutrinária da DDF.
Neste contexto, disse Fernández, o termo “falso misticismo” se refere a “abordagens espirituais que prejudicam a harmonia da compreensão católica de Deus e nosso relacionamento com o Senhor. É neste sentido que a frase aparece no Magistério”.
Como exemplo, a DDF citou a encíclica Haurietis Aquas, de 1956 do Papa Pio XII, na qual este rejeita o conceito jansenista de Deus separado da encarnação de Jesus como “falso misticismo”.
“É errado, portanto, afirmar que a contemplação do Coração físico de Jesus impede a aproximação de um amor íntimo a Deus e retém a alma no caminho para a obtenção das virtudes mais elevadas”, disse Pio XII, chamando isso de “falsa doutrina mística”.
Embora alguns canonistas também usem a expressão “falso misticismo” em relação a casos de abuso, não há crime classificado como “falso misticismo” no Código de Direito Canônico, disse Fernández.
Apesar da recente revisão do código penal do Vaticano, que inclui disposições mais amplas para leigos e fundadores leigos acusados de abuso, ainda não há crime classificado para esse tipo de abuso, deixando o que muitos especialistas canônicos descreveram como uma lacuna legal na legislação católica.
Alguns apontaram o caso do padre franciscano espanhol Francisco Javier Garrido Goitia, condenado ano passado por um tribunal eclesiástico por duas acusações de “falso misticismo e pedido de confissão”, como um possível precedente.
Entretanto, outros especialistas argumentaram que no caso Garrido Goitia, a acusação de falso misticismo foi considerada uma circunstância agravante, e não um crime em si, e que se a acusação fosse apenas por falso misticismo, ela não teria sido admitida, pois não há classificação para ela no Direito Canônico.
Enquanto alguns canonistas têm pressionado pela classificação de um crime de falso misticismo em relação a casos de abuso, outros têm defendido a posição de que o termo é muito geral, dado que tem sido usado em contextos doutrinários e disciplinares e, portanto, é confuso.
Fernández disse em seu comunicado que a questão das falsas experiências espirituais e místicas na prática de abusos é tratada nas novas “Normas para Proceder no Discernimento de Supostos Fenômenos Sobrenaturais” publicadas em maio, e nas quais a DDF afirma que “o uso de supostas experiências sobrenaturais ou elementos místicos reconhecidos como meio ou pretexto para exercer controle sobre pessoas ou cometer abusos deve ser considerado de particular gravidade moral”.
“Essa consideração permite avaliar a situação aqui descrita como uma circunstância agravante se ocorrer juntamente com delitos”, disse Fernández. Ele disse que é possível chegar a uma classificação desses crimes sob o título de “abuso espiritual”, evitando o termo “falso misticismo”, que ele disse ser uma expressão “excessivamente ampla e ambígua”.
Para isso, Fernández disse que propôs que o Dicastério para Textos Legislativos e a DDF formem um grupo de trabalho, presidido pelos Textos Legislativos, para conduzir uma análise conjunta desse tipo de classificação e apresentar propostas concretas.
Ele disse que o prefeito de Textos Legislativos, Dom Filippo Iannone, aceitou a proposta “e está procedendo à constituição do planejado Grupo de Trabalho, composto por membros indicados por ambos os dicastérios, para cumprir a tarefa que lhe foi confiada o mais breve possível”.
A criação do grupo de trabalho ocorre no momento em que cresce a lista de indivíduos acusados de atos de abuso sexual que incorporam elementos de falsas experiências místicas e espirituais, incluindo casos proeminentes como o do fundador do Sodalício de Vida Cristã, sediado no Peru, Luis Fernando Figari, e do padre esloveno Marko Rupnik, acusado de abusar de cerca de 40 mulheres adultas.
É justamente a lacuna jurídica em torno dos abusos cometidos com o uso de falsas experiências espirituais ou místicas, segundo alguns especialistas, que permite que supostos abusadores como Rupnik evitem punições. Fernández, em seu comunicado, não ofereceu um cronograma para quando o grupo de trabalho seria estabelecido ou a duração de seu mandato.
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Vaticano formará grupo de estudo para classificar crime de 'abuso espiritual' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU