28 Novembro 2024
"Tomáš Halík sonha com a nova manhã do cristianismo imaginando endereçar doze (como o número dos Apóstolos!) cartas a um novo bispo de Roma que escolheu se chamar Rafael, que significa 'curado por Deus' ou 'Deus curou' (p. 9): como se dissesse que, em tempos de crise global, é necessário, acima de tudo, despertar o potencial terapêutico e salvífico da fé em Deus", escreve Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 25-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Em um livro anterior, falei deste tempo como o limiar da tarde do cristianismo, um tempo de maturidade, um possível início de um novo trecho da história, e não apenas da história da Igreja Católica. Estou convencido de que o Papa Francisco, com seu apelo à renovação sinodal, levou o cristianismo ao limiar de uma nova etapa de sua história, ao limiar de um projeto espiritual novo, mais amplo e até então desconhecido. Explorar essa paisagem e se ambientar nela será a tarefa da Igreja, incentivada pelo ministério de muitos de seus sucessores”.
Isso é afirmado na introdução (p. 15-16) de seu último livro, O sonho de uma nova manhã. Cartas ao Papa (Paulinas, 2024). Tomáš Halík é teólogo, filósofo, sociólogo e psicólogo tcheco.
O sonho de uma nova manhã. Cartas ao Papa, de Tomáš Halík (Foto: Divulgação)
Escrito nos meses de verão e outono de 2023 “em um momento em que os preparativos estavam no auge na Igreja Católica para o primeiro de dois sínodos mundiais em Roma, um momento de grandes expectativas de mudança” (p. 15), o ensaio foi publicado simultaneamente na República Tcheca, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha e Polônia. Se o entardecer do cristianismo é o tempo de uma maior maturidade da fé e do aprofundamento de sua dimensão espiritual, a nova manhã é o tempo dos sonhos e da imaginação criativa para uma renovação da Igreja.
O texto, de fato, retoma e elabora algumas ideias já explicitadas pelo autor em O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar (Vozes, 2024), com um olhar particular para o processo sinodal em andamento desejado pelo Papa Francisco, “o papa mais popular fora da Igreja na história do papado e o mais atacado por alguns círculos católicos” (p. 15), mas em cujo magistério a autoridade hierárquica, pastoral e magisterial e a missão profética são combinadas de maneira extraordinária (p. 21). Tomáš Halík sonha com a nova manhã do cristianismo imaginando endereçar doze (como o número dos Apóstolos!) cartas a um novo bispo de Roma que escolheu se chamar Rafael, que significa “curado por Deus” ou “Deus curou” (p. 9): como se dissesse que, em tempos de crise global, é necessário, acima de tudo, despertar o potencial terapêutico e salvífico da fé em Deus.
Um dos principais temas das doze cartas é a questão de como passar de uma reforma da Igreja “entendida como uma mera mudança exterior de formas para uma transformação, uma mudança interior do cerne da questão”, que consiste essencialmente em “como redescobrir e reviver aquilo que constitui a identidade do cristianismo, aquilo que o torna sal da terra e fermento para o pão fresco de amanhã” (p. 16), em um momento histórico em que o cristianismo no contexto social euro-atlântico “não está desaparecendo, mas também não está retornando às suas formas anteriores. Ainda está aqui, mas está mudando” (p. 11).
Os sintomas dessa mudança são numerosos e relevantes: palavras, ritos e instituições religiosas incapazes de interceptar o dinamismo da vida espiritual de nosso tempo; propostas religiosas que são demasiado estereotipadas, pouco compreensíveis e não suficientemente convincentes, que não levam em conta as reais aspirações espirituais, os desejos, as perguntas e as necessidades dos homens e das mulheres de hoje; um número crescente de pessoas que, embora declarem não pertencer a nenhuma religião, buscam sinceramente uma relação com o transcendente na vida, mas não encontram nas formas religiosas que lhes são propostas um caminho viável para alcançá-lo; um número cada vez maior de pessoas que se definem como espiritualmente não-religiosas; pessoas que se consideram ateias não tanto em relação à fé cristã, mas a uma sua específica interpretação teísta (p. 11-12).
Com o objetivo de destacar o que constitui a identidade do cristianismo e o que o torna sal da terra, gostaria de relembrar os conteúdos de algumas das doze cartas endereçadas por Tomáš Halík ao papa imaginário Rafael.
Na primeira carta, o teólogo de Praga, um defensor convicto do processo de reforma em curso das instituições eclesiais (p. 59), nos encoraja a nos unirmos ao sonho do Papa Francisco de uma Igreja renovada em um sentido sinodal (p. 19). Hoje, de fato, Deus está “despertando na Igreja a coragem de perguntar que forma de cristianismo Ele sonha para o nosso tempo” e o apelo do Papa Francisco para uma renovação sinodal da Igreja deve ser visto como “uma resposta a um dos grandes sonhos de Deus, sonhos proféticos que estimulam a Igreja e o mundo do futuro (p. 21). Essa “é a missão de toda a história futura do cristianismo” (p. 23). A renovação sinodal da Igreja exige, entre outras coisas, que o clericalismo seja superado de forma decisiva. Se ele é uma “doença” que torna os ministros ordenados “uma classe superior superordenada” que gosta de se distinguir de outras pessoas no povo de Deus e do mundo, mesmo “por meio de coisas externas (vestimenta, comportamento, moradia, títulos), assim como faziam seus predecessores, os fariseus, a quem Jesus criticou”, não de menos resulta ser uma mentalidade na qual leigos e leigas podem cair quando, por sua passividade ou resignação, legitimam modalidades mundanas, ou seja, não-evangélicas, do exercício da autoridade por parte dos ministros ordenados (p. 26-27).
O apelo para uma práxis sinodal e um modo de vida deveria se referir não apenas à Igreja, mas, com a contribuição dos cristãos, a toda a família humana. “O princípio da sinodalidade, da escuta mútua, da compatibilidade na diversidade e do processo de tomada de decisões em comum deve ser introduzido nas relações entre nações, culturas e religiões. A escuta e o respeito também devem fazer parte da relação das pessoas com o planeta que habitam” (p. 21). Um e outro poderiam “também dar bons frutos nas deliberações e decisões de muitas instituições seculares” (p. 23).
Aos discípulos e às discípulas de Jesus hoje é confiada uma função profética particularmente exigente: desenvolver a arte do discernimento espiritual, analisando cuidadosamente “o que acontece dentro de nós em resposta aos estímulos da vida cotidiana e mundana e aos momentos de crise e criticidade na história” (p. 49) e tentar interpretar como Deus, na concretude das situações históricas, se manifesta a nós hoje “nos atos humanos de fé, esperança e amor” (p. 51). Esse é o conteúdo da terceira e da quarta cartas. Pelo discernimento espiritual, é possível “distinguir dois fenômenos que, às vezes, estão interligados, mas que, em essência, são diferentes: o espírito do tempo e os sinais dos tempos” (p. 49).
Enquanto “o espírito do tempo muitas vezes oferece notícias sensacionalistas, rumores, fofocas, desinformação, fake news e, mais recentemente, falsificações de todos os tipos produzidas pela inteligência artificial”, os sinais dos tempos “são a linguagem de Deus, sua maneira de se expressar por meio dos eventos da sociedade e da cultura” e “se manifestam sobretudo em momentos de crise e de transição, em momentos de cruzamento dos limiares, de mudanças de paradigma”: para compreendê-los é preciso “a arte do silêncio e da contemplação” (p. 49).
Analisar, com uma atitude de oração, o que esses eventos fazem ressoar em nós e o que deixam em nós, se permitirmos que entrem em nossos corações, constitui “o primeiro e indispensável passo da reflexão teológica” (p. 48). Mas a leitura e a interpretação dos sinais dos tempos “pressupõe uma compreensão mais profunda da fé e do mistério que chamamos de Deus” (p. 50), no qual, como lemos no livro dos Atos dos Apóstolos (17,28), vivemos, nos movemos e somos (p. 51).
O Deus da Bíblia “não é um deus ex machina, mas habita e age no meio de seu povo” (p. 52). Sua presença e ação na história não devem, portanto, ser entendidas “em um sentido heterônomo, ou seja, como meras intervenções de fora”. O Deus de quem a Bíblia fala age na história, animando-a e transformando-a continuamente com seu Espírito. “A presença de Deus não é estática, mas dinâmica: é um processo. Essa concepção de Deus é o ponto de partida para uma interpretação processual também do fenômeno do cristianismo que, se vivo, está sempre em movimento (p. 52).
Para investigar o mistério de Deus, é necessário abrir espaço para as emoções. Isso é tratado na quinta carta, que propõe a necessidade de manter unidas a ortodoxia, a ortopraxia e a ortopatia. A Igreja Católica manteve em alta consideração por séculos principalmente a ortodoxia, ou seja, a correta doutrina. Por meio de sua ação pastoral e com a liturgia, enfatizou a importância da ortopraxia, ou seja, da conduta moral. Entretanto, o aspecto mais profundo, ou seja, o cuidado do ortopathos, a paixão e o calor da fé, a experiência da presença divina onipresente, permaneceu nas sombras. Se as Igrejas negligenciarem sua tarefa insubstituível de alimentar o desenvolvimento da vida espiritual e interior das pessoas, elas também se tornam incapazes de enriquecer e influenciar o mundo exterior secularizado (p. 72).
A necessária renovação da Igreja poderá ocorrer graças, acima de tudo, ao aprofundamento da espiritualidade, que acrescenta paixão, vitalidade, atratividade e ardor à fé. “O tesouro se encontra nas profundezas, não na superfície” (p. 80). Colocar “a ênfase na espiritualidade e na dimensão profunda da fé não significa, de forma alguma, um afastamento da responsabilidade e do empenho social dos cristãos. Pelo contrário: a espiritualidade é a fonte da energia e da qualidade do engajamento ativo na sociedade, na cultura e na política: contemplação e ação devem andar de mãos dadas” (p. 75-76). A espiritualidade cristã, de fato, “não leva a buscar Deus num mundo outro e distante, esotérico, para além das realidades cotidianas de nossas vidas. Deus não está em algum lugar além do mundo de nossas vidas, mas habita nele, é sua profundidade” (p. 78).
“A abordagem contemplativa, o percurso para o profundo, consiste na conversão da superficialidade para a interioridade”. O segredo da força terapêutica e da vitalidade da fé cristã está “na relação com a constante antropológica, com aquilo que faz do homem um homem, ou seja, sua capacidade de abertura, de superação de si mesmo” (p. 79). Somente uma fé que busca força em sua dimensão mais profunda, ou seja, na sua espiritualidade, tem poder terapêutico.
Conscientes de que “a Bíblia entende a salvação como um evento cósmico, a transformação de tudo e de todos, que produzirá uma nova terra e um novo céu” (p. 85), os cristãos têm a tarefa e a missão de “elaborar minuciosamente e desenvolver plenamente a catolicidade do cristianismo” (p. 83), “cuidando não apenas da unidade da Igreja, mas também da unidade da humanidade” (p. 85), abrindo portas e construindo pontes a serviço de toda a família humana (p. 87) e estigmatizando a privatização “da compreensão da salvação” (p. 85). A sexta e a sétima cartas destacam isso.
Hoje, os cristãos são chamados a dar passos corajosos e sem precedentes em direção a quatro tipologias de ecumenismo:
A Igreja Católica deve passar de uma forma confessional restrita (catolicismo) para uma catolicidade ampla e aberta, sem perder, mas compreendendo sua identidade de uma maneira nova e mais profunda. A catolicidade - como a unidade, a santidade e a apostolicidade - é uma tarefa incorporada de forma embrionária na própria essência da Igreja, que deve se desenvolver no curso da história até sua perfeita realização escatológica (p. 109).
A catolicidade não deve ser confundida com o catolicismo, que é a “deformação da Igreja em um sistema fechado no qual a fé e a teologia se transformam em ideologia” (p. 110).
“A catolicidade da Igreja está em sua abertura no sentido de autotranscendência, de estar com e para os outros. A ideologia do catolicismo egocêntrico deve ser substituída por outra visão: a convicção de que a missão da Igreja e a expressão máxima da fé e do amor a Deus e aos homens é a busca do bem comum”, que se realiza “trabalhando juntos para criar um mundo no qual todos possam desenvolver seus carismas plenamente e de forma solidária, e no qual não apenas a dignidade de cada pessoa humana seja respeitada, mas também o bem de todo o planeta, de toda a criação’ (p. 111).
A oitava carta é dedicada ao poder salvífico do amor. Enfatizar a prática da fé e não subestimar seu conteúdo e objeto é certamente obrigatório. Mas será sempre e somente o amor que garantirá sua autenticidade. À pergunta sobre o que crer e o que não crer para ser um cristão, nosso autor acredita que se possa responder com as palavras provocativas e arriscadas de Santo Agostinho: “ame Jesus verdadeira e apaixonadamente e creia como quiser” (p. 121).
Afirmar que é o amor que garante a autenticidade da fé não significa “crer no que se quiser”, mas sim colocar a ênfase na prática da fé, em como uma pessoa crê, em como a fé molda e remodela sua vida. Nem o conteúdo nem o objeto da fé são subestimados, mas são “educada e respeitosamente colocados entre parênteses” (p. 121).
“A cristandade do cristianismo, a identidade do cristianismo, está na relação de amor com Cristo” (p. 121), cuja presença anônima, além disso, está “para além do cristianismo” (p. 122). Os cristãos, de fato, não têm “o monopólio de Cristo”, que “tem muitos discípulos desconhecidos”, pois outras pessoas, outros povos e outras culturas o buscam, o conhecem e o confessam de maneiras diferentes das nossas (p. 121).
A fé sem amor não tem poder salvífico. Ela é apenas um bronze que ressoa (1Cor 13,1). É apenas convicção religiosa ou uma visão de mundo, que pode degenerar em ideologia cristã (p. 124). “A verdade é doada a quem ama” (p.123).
A penúltima carta trata de um tema decididamente intrigante: “crer no inferno?” (p. 140), “onde está o inferno para que eu possa crer nele?” (p. 142), o que entender por crer e inferno no contexto da dura realidade de nosso tempo, caracterizada por guerras mundiais, genocídios, campos de concentração, terrorismo? (p. 143).
A esse respeito, Tomáš Halík declara que o estilo de seu pensamento “não rejeita, mas se limita a coloca entre parênteses respeitosos o que a teologia baseada na metafísica antiga, medieval e moderna há muito tempo nos saturou”. Ele “baseia-se em uma abordagem fenomenológica e hermenêutica: busca interpretar como o mistério chamado Deus se mostra a nós” (p. 148). Uma vez que a leitura do Evangelho reforça a intuição de que Jesus anuncia “um reino no qual o amor misericordioso sempre prevalecerá sobre a fria justiça no final”, pode-se afirmar que o Espírito e o coração de Jesus estão “mais próximos dos teólogos que, a partir de Orígenes, não dizem um sim duro à doutrina da eternidade do inferno, mas deixam uma espécie de brecha de esperança na onipotência da misericórdia de Deus” (p. 150).
A fé em Deus, ligada ao amor e aberta à esperança, leva, portanto, o teólogo tcheco a afirmar: “Não creio no inferno - quero que ele não exista ou que seja vazio, embora admita que poderia não ser assim” (p. 151).
Em todo caso, uma vez que “a Escritura e o Credo dos Apóstolos não nos dizem nada sobre a estrutura do inferno” (p. 148), nada nos impede de pensar que, após a passagem de Jesus pelo inferno (“desceu ao inferno”, professamos no Credo), ele esteja vazio, entendendo que “o inferno além dos confins de nossa experiência [...] permanece para nós um mistério inacessível” (p. 143).
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Halík: o sonho de uma nova manhã do cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU