A fé que ressurge do secularismo e do vírus. Artigo de Tomáš Halík

Foto: Daniele Colucci | Unsplash

01 Março 2024

Depois de “Si destano gli angeli. Avvento e Natale di un’epoca inquieta”, o teólogo de Praga Tomáš Halík volta às livrarias a partir de 8 de março com “Un tempo per piantare e un tempo per sradicare. Quaresima e Páscoa di un’epoca inquieta” (Um tempo para plantar e um tempo para erradicar. Quaresma e Páscoa de uma época inquieta, em tradução livre, Vita e Pensiero, 216 p., 16,00 €), do qual vamos apresentar uma passagem da introdução.

Os dois volumes formam um díptico de reflexão contemporânea sobre os dois momentos litúrgicos mais importantes para um cristão. Aqui Halík acompanha o leitor desde a Quarta-feira de Cinzas até Pentecostes, a partir de ideias e pensamentos nascidos no período da Páscoa de 2020, quando o mundo inteiro estava vergado pela pandemia.

Mais uma vez, o convite é para mudar de perspectiva. E assim a Quaresma do confinamento e das igrejas vazias torna-se a “primavera maravilhosa” que nos leva a repensar o que é para nós, cristãos, o mistério da Páscoa: algo deve morrer, mesmo na Igreja, mesmo na nossa fé acostumada aos hábitos, para que possa acontecer a ressurreição, a transformação profunda que se abre ao futuro.

Eis então o desejo pascal de Halík: que o jejum da Quaresma nos ajude a mergulhar no centro profundo da nossa fé; que o silêncio de Deus no Sábado Santo faça nascer uma oração, uma demanda de sentido; que o túmulo vazio da manhã de Páscoa seja o bastão para remover a pedra dos nossos medos e nos encaminhar rumo a Cristo presente e vivo nos irmãos; que o espírito do Pentecostes se torne a original e criativa “biosfera da Igreja”.

Un tempo per piantare e un tempo per sradicare. Quaresima e Páscoa di un’epoca inquieta. Vita e Pensiero, 216 p. (Foto: divulgação)

O teólogo tcheco Halík analisa o fenômeno que vê cada vez mais pessoas abandonarem a Igreja pelo impacto da política, escândalos e entrincheiramentos na tradição. Isso não significa que não estejam em busca: “Precisamos de uma pré-evangelização que cuide da cultura espiritual de cada indivíduo”.

O artigo é do teólogo e padre tcheco Tomáš Halík, autor, entre muitos outros, de Entardecer do cristianismo. Coragem para mudar (Vozes: Petrópolis, 2023) publicado por Avvenire, 29-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

As sociedades dos países pós-comunistas passaram por algumas ondas de secularização: tanto uma secularização cultural “suave”, que acompanhou a modernização de grande parte da Europa e da civilização ocidental como um todo, quanto uma secularização "dura", implementada pelos regimes comunistas.

Com a “secularização suave” fica enfraquecido o contexto sociocultural da religiosidade tradicional; a sociedade agrícola do campo e a vida em geral se mudam para cidades industriais. Na Europa Central foi o caso da República Tcheca cuja terra, já relativamente secularizada, foi escolhida pelos stalinistas como campo de testes para uma ateização drástica e total da sociedade, uma expulsão completa da religião do espaço público.

Mas nem mesmo a “secularização dura” jamais deixou atrás de si uma sociedade plenamente ateia. Às vezes (mesmo na República Tcheca) até propiciou uma retomada da religião. Fruto dessa resistência ao regime ateu foi também o “fenômeno Wojtyla”, que marcou significativamente a história da Igreja e do mundo.

Contudo, após a queda do comunismo não houve um retorno da sociedade tradicional ou um renascimento generalizado da religião, mas uma evolução que nos aproximou da sociedade pluralista típica do Ocidente. Na República Tcheca a Igreja desperdiçou rapidamente o capital de simpatia que havia acumulado no limiar da nova época. Em vez de se tornar parte ativa do processo de humanização e democratização da sociedade, afogou-se no esforço de restabelecer a situação anterior, fechou-se sobre si mesma e junto com alguns ex-dissidentes deixou livre um espaço que depois foi ocupado pelo fundamentalismo comercial, a mão onipotente e invisível do mercado.

Desde o atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, tem-se levantado contra a globalização uma oposição aberta: cresceram o fundamentalismo religioso, o populismo, o nacionalismo, a xenofobia, as fake news e as teorias da conspiração. Ao medo diante da complexidade do mundo agora se somou aquele pelas doenças infecciosas e pelas suas consequências econômicas e sociais. Sobre esse terreno caiu como gasolina no fogo o assassinato do afro-americano George Floyd por um policial brutal, tendo como resultado uma onda de violência e agitação em diferentes áreas do mundo.

Da atmosfera de medo e insegurança tiram proveito políticos populistas que recebem votos principalmente de pessoas idosas ou de baixo nível de educação, não apenas nas democracias ainda não maduras dos países pós-comunistas, mas também naqueles países que foram o berço da democracia moderna, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos.

Nas regiões pós-comunistas, os políticos populistas abusam de bom grado da retórica e do simbolismo do Cristianismo e tentam de todas as maneiras corromper ou amansar a hierarquia da Igreja católica. Se os representantes eclesiais estipularem com eles, de forma míope, alguma forma de aliança, prejudicarão tragicamente a Igreja, da qual começam a afastar-se, em primeiro lugar, os detentores do futuro da sociedade, os jovens e as camadas mais instruídas. Na nossa época, não são apenas as sociedades a estar separadas do ponto de vista político, ideológico, cultural e social, mas também as Igrejas. E a separação não é entre elas, mas dentro de cada uma.

A situação da Igreja Católica no mundo lembra fortemente a época imediatamente precedente à Reforma, ao Cisma do Ocidente. A onda de revelações sobre os escândalos de abusos sexuais e psicológicos dentro da Igreja, por muito tempos mantidos ocultos e vividos como um tabu, foi a gota d’água que fez transbordar o copo, como foi a venda de indulgências na Idade Média.

Mesmo naquela época, sob um fenômeno aparentemente marginal, foram descobertos problemas fundamentais: o problema da relação entre Igreja e Estado e entre clero e leigos. Naqueles anos, na Europa Central, um número recorde de crentes deixou a Igreja. É preciso perceber que, na maioria, as pessoas que abandonam a Igreja não se tornam ateias: algumas, na verdade, afastam-se porque levam a fé mais a sério do que viram a Igreja fazer.

A experiência da pandemia confirmou-me uma opinião para a qual já estava inclinado anteriormente, enquanto estava estudando o cenário religioso contemporâneo. Hoje não nos deparamos mais com uma secularização entendida como crise das certezas religiosas, mas como uma crise global das certezas do homem contemporâneo. Se quisermos compreender o mundo que está nascendo e no qual os efeitos secundários da globalização continuarão a se manifestar – como qualquer outro contágio, incluindo aqueles político-ideológicos de populistas e fundamentalistas religiosos –, devemos deixar de lado muitas das categorias que têm sido usuais para nós até agora e os esquemas de pensamento simplificadores.

Algum tempo atrás assumi a direção do programa de pesquisa “Faith and Beliefs of Nonbelievers” (A fé e as crenças dos não crentes) em que participam teólogos, sociólogos e filósofos de diferentes países em vários continentes. As primeiras conclusões dessa pesquisa mostram quão problemático é, na época do “abalo de todas as seguranças”, enquadrar as pessoas em categorias simplistas, como crentes/não crentes, uma vez que nas posições e nos pensamentos de muitos contemporâneos, “fé” e “não crença” se confundem de maneira complexa. Nos momentos dramáticos em que a evolução histórica ultrapassa outro limiar, a fé de muitos crentes treme. Ao mesmo tempo, porém, muitos não crentes estão começando a se pôr questionamentos fundamentais.

O poeta tcheco Vladimír Holan expressou-o num verso: “O que não treme não é firme”. Não somente entre os crentes das diferentes Igrejas, mas também entre e ceticismo podem existir “dons mútuos". Na República Tcheca, o número de membros da Igreja Católica (e das outras Igrejas principais) vem diminuindo há anos a tal ritmo que, se não for proposta uma reforma fundamental, os praticantes se reduziriam ao ponto de se tornarem uma seita marginal.

No entanto, não é correto indicar a sociedade tcheca como ateia. Se muitos tchecos se definem como ateus, é mais para tomar distâncias de certas formas de teísmo (uma modalidade de manifestação de fé) e da Igreja institucional (anticlericalismo). O exemplo citado da Paróquia Acadêmica de Praga (e de outras paróquias e centros cristãos de orientação semelhante) mostra claramente que a causa do reduzido número de membros da Igreja não é "a irreligiosidade, o materialismo, o consumismo e o liberalismo” da sociedade tcheca, mas sim a incapacidade de grande parte da hierarquia eclesiástica e do clero de compreender a cultura e a sociedade contemporâneas e de se dirigir a essa sociedade de uma forma compreensível e credível.

Primeiro é necessário entender que tentar uma modernização suave não conduzirá à reforma necessária. De tentativas desajeitadas de adaptação comercial da religião ao estilo da "sociedade do entretenimento" já foram feitas muitas dentro da Igreja, e provaram serem tão estéreis quanto aquelas de ignorar a evolução histórica reportando-se à Igreja de tempos passados. O esforço para imitar a religiosidade popular da sociedade pré-moderna, que há muito perdeu seu contexto histórico cultural, e de montar liturgias barrocas gera, na melhor das hipóteses, um folclore turístico; mas, em geral, mais um constrangimento lamentável.

Por muito tempo eu vi como única saída aquilo que no coração da Igreja tcheca havia posto principalmente o Papa Bento XVI: um diálogo culto e intelectual com a sociedade majoritariamente ateia do país. Hoje, porém, parece-me muito mais importante o cuidado da vida espiritual de cada indivíduo e o acompanhamento espiritual. Nenhuma “nova evangelização” dará frutos se não for precedida de uma “pré-evangelização” na forma de cuidado sistemático da cultura espiritual dos indivíduos e da sociedade, uma conversão de uma vida superficial e conformista (viver como se vive no mundo) para uma cultura do "discernimento espiritual", da responsabilização para consigo mesmos, o próximo e o ambiente comum.

No entanto, a experiência da pandemia mostrou que em determinadas situações as pessoas que até aquele momento haviam ficado indiferentes à religião ou haviam tomado distâncias da “religião organizada”, de repente tornam-se sensíveis aos temas religiosos e interessadas no que naqueles momentos dizem os cristãos. A sua atitude de indiferença e distância não é imutável.

Já por duas vezes no passado testemunhei a rapidez com que, num país como o nosso que se supõe ateu, a religião ganhou destaque em situações sociopolíticas de tensão: durante a ocupação soviética em agosto de 1968 e nos dias dramáticos da queda do regime comunista em novembro de 1989. Durante a invasão, quando a sede da rádio foi ocupada pelos militares soviéticos, entre os programas alternativos transmitidos de locais secretos por redatores corajosos apareceram de repente serviços religiosos, algo inimaginável mesmo no período de distensão ideológica da Primavera de Praga. A missa de ação de graças pela canonização de Inês da Boêmia, oficiada pelo Cardeal Tomášek na Catedral de Praga – a primeira missa na Tchecoslováquia transmitida pela televisão estatal – tornou-se a abertura solene da maior e provavelmente decisiva demonstração pela liberdade que teve lugar durante os dias dramáticos imediatamente anteriores à queda do regime.

Durante as greves estudantis criaram-se espontaneamente, nos colégios e nas faculdades, alguns locais de oração que funcionaram como incubadoras de um número incalculável de conversões. A Oração do Pai Nosso, com sua ênfase na remissão dos pecados, foi rezada por uma imensa multidão em Letná a convite de Václav Malý, o moderador das manifestações de massa durante aqueles dias dramáticos; jamais esquecerei as imagens dos rostos daqueles milhares de pessoas, muitas das quais se esforçavam para lembrar as palavras da oração.

Leia mais