03 Mai 2020
Podemos aceitar as igrejas vazias e silenciosas deste tempo de pandemia simplesmente como uma medida temporária que, em breve, será esquecida. Mas também podemos acolher isso como um kairós: um momento oportuno para “avançar para águas mais profundas” e procurar uma nova identidade para o cristianismo.
A reflexão é do teólogo e padre tcheco Tomáš Halík, professor de Sociologia na Universidade Charles, de Praga, presidente da Academia Cristã Tcheca e capelão da universidade. Durante o regime comunista, militou na chamada “Igreja clandestina”. Recebeu o Prêmio Templeton 2014 e é doutor honoris causa pela Universidade de Oxford.
O artigo é publicado por La Vie, 24-04-2020. A tradução, da versão italiana, é de Moisés Sbardelotto.
O nosso mundo está doente. Não me refiro apenas à pandemia do coronavírus, mas também ao estado da nossa civilização que esse fenômeno global revela. Em termos bíblicos, é um sinal dos tempos.
No início desta insólita Quaresma, muitos de nós pensávamos que a epidemia iria conduzir a uma espécie de blecaute de curta duração, a uma interrupção das atividades sociais habituais de um modo ou de outro previsíveis, e, depois, tudo voltaria a ser como antes.
Mas não vai ser assim. Aliás, nem seria bom que tentássemos que fosse. Depois desta experiência global, o mundo já não será mais o mesmo, e, provavelmente, é bom que seja assim.
Durante as grandes calamidades, é natural que nos preocupemos sobretudo com as necessidades materiais necessárias à sobrevivência, mas “nem só de pão vive o homem”. Talvez tenha chegado o momento de examinar as implicações mais profundas deste ataque à segurança do nosso mundo. Podemos dizer que o inevitável processo de globalização chegou ao seu apogeu: a vulnerabilidade global de um mundo global é agora evidente.
Que tipo de desafio essa situação representa para o cristianismo, para a Igreja (um dos primeiros “agentes globais”) e para a teologia?
O Papa Francisco disse que a Igreja deveria ser um “hospital de campanha”: uma metáfora que indica que a Igreja não deve ficar em um esplêndido isolamento do mundo, mas deve derrubar as suas fronteiras e ir, levar ajuda a todos os lugares onde as pessoas se encontrem necessitadas física, mental, social e espiritualmente,. Sim, é assim que a Igreja pode fazer penitência pelas feridas que os seus representantes infligiram recentemente aos mais indefesos… mas, tentemos refletir mais profundamente sobre o significado desta metáfora, tentemos pô-la em prática.
Se a Igreja deve ser um “hospital”, obviamente ela deve continuar oferecendo a mesma assistência sanitária, social e caritativa que ofereceu desde as origens da sua história. Mas, como qualquer bom hospital, a Igreja também deve realizar outras tarefas. Deve fazer diagnósticos (identificando os “sinais dos tempos”), fazer prevenção (criando um “sistema imunológico”, em uma sociedade em que dominam os vírus malignos do medo, do ódio, do populismo e do nacionalismo), e fazer convalescência (ultrapassando os traumas do passado com o perdão).
No ano passado, justamente antes da Páscoa, a Catedral de Notre-Dame de Paris sofreu um incêndio. Neste ano, durante a Quaresma, não houve celebrações religiosas em centenas de milhares de igrejas em diversos continentes, mas, também, em sinagogas e mesquitas. Como padre e teólogo, reflito sobre essas igrejas vazias ou fechadas como um sinal e um desafio de Deus.
Compreender a linguagem de Deus, nos acontecimentos do nosso mundo, exige a arte do discernimento espiritual, que, por sua vez, exige um desapego contemplativo das nossas emoções e dos nossos preconceitos exacerbados, assim como das projeções que damos aos nossos medos e aos nossos desejos.
Nos momentos de calamidade, os “agentes adormecidos de um Deus mau e vingativo” difundem o medo e preparam um capital religioso para si mesmos. Há séculos, a sua visão de Deus levou água ao moinho do ateísmo.
Mas, em um momento de calamidade, eu não vejo Deus como um diretor de mau humor, comodamente sentado nos bastidores dos acontecimentos do nosso mundo. Mas sim como uma fonte de força que opera naqueles que, nessas situações, dão provas de solidariedade e de um amor desinteressado, incluindo também aqueles que agem sem uma “motivação religiosa”. Deus é amor humilde e discreto.
Mas não posso deixar de me perguntar se este tempo de igrejas vazias e fechadas não é uma espécie de visão que nos alerta contra aquilo que poderia ocorrer em um futuro relativamente próximo: dentro de poucos anos, elas poderiam estar assim, em grande parte do nosso mundo. Já não fomos avisados, várias vezes, sobre aquilo que acontece em muitos países, onde um número cada vez maior de igrejas, mosteiros e seminários se esvaziaram ou foram fechados? Por que atribuímos por tanto tempo essa evolução a influências externas (o “tsunami secular”) e não nos demos conta de que se encerrava outro capítulo da história do cristianismo, e que é hora de nos prepararmos para um novo?
Talvez este tempo de edifícios eclesiais vazios ponha simbolicamente em evidência o vazio escondido das Igrejas e o seu possível futuro – se não fizermos um sério esforço de mostrar ao mundo um rosto do cristianismo completamente diferente. Preocupamo-nos muito em converter o “mundo” (o “resto”), e menos em convertermo-nos a nós mesmos; e isso não significa apenas “melhorarmo-nos”, mas passar radicalmente de um estático “ser cristãos” a um dinâmico “tornar-se cristãos”.
Quando a Igreja medieval fez um uso excessivo das proibições como sanções, levando toda a máquina eclesial a uma espécie de “greve geral”, na qual não se realizavam mais as celebrações e não se administravam mais os sacramentos. Como consequência, as pessoas começaram a procurar cada vez mais uma relação pessoal com Deus, uma “fé nua”. Proliferaram fraternidades leigas, e assistiu-se a uma onda de mística que, sem dúvida, contribuiu para preparar o caminho para a Reforma – de Lutero e Calvino, por um lado, mas também, por outro, a reforma católica ligada aos jesuítas e à mística espanhola. Talvez a descoberta da contemplação pudesse contribuir, hoje, para completar o “percurso sinodal”, rumo a um novo concílio reformador…
Talvez devamos aceitar a atual abstinência de serviços religiosos e de atividades da Igreja como kairós, como uma oportunidade para pararmos e fazermos uma reflexão profunda e empenhada diante de Deus e com Deus. Estou convencido de que chegou o momento de refletir sobre como continuar o necessário caminho de reforma, indicado pelo Papa Francisco: não tentar regressar a um mundo que já não existe e, também, não confiar apenas em meras reformas estruturais exteriores, mas ir ao centro do Evangelho, fazer uma viagem ao interior.
Não vejo como uma solução limitada, sob a forma de substitutos virtuais – como, por exemplo, a transmissão das missas pela televisão –, possa ser uma solução suficiente, neste momento em que o culto público está suspenso. Uma passagem à “devoção virtual”, à “comunhão a distância”, de joelhos na frente de uma tela, é algo sumamente bizarro. Creio que deveríamos, sim, pôr à prova a veracidade das palavras de Jesus: “Onde estão dois ou três reunidos no meu nome, aí estou Eu no meio deles”.
Realmente pensávamos que poderíamos resolver a falta de padres na Europa importando “peças de reposição” para o maquinário eclesial a partir de depósitos, aparentemente infinitos, na Polônia, na Ásia e na África? Devemos obviamente tomar a sério as propostas do Sínodo Amazônico, mas, ao mesmo tempo, há a necessidade de aumentar o alcance do ministério dos leigos na Igreja (não nos esqueçamos de que, em muitos territórios, a Igreja sobreviveu sem clero por muitos séculos).
Talvez esse “estado de emergência” atual seja um indicador do novo rosto da Igreja. E também um precedente histórico. Estou convencido de que as nossas comunidades cristãs – paróquias, congregações, movimentos eclesiais e comunidades monásticas – deveriam procurar se aproximar do ideal que deu origem às universidades europeias: uma comunidade de alunos e de professores, uma escola de sabedoria na qual a verdade é buscada através do livre debate e, também, da profunda contemplação.
Tais ilhas de espiritualidade e de diálogo poderiam ser a fonte de uma força capaz de curar um mundo doente. Na véspera da eleição papal, o cardeal Bergoglio citou um trecho do Apocalipse em que Jesus está à porta e bate. E acrescentou: hoje, Cristo bate a partir de dentro da Igreja e quer sair. Talvez seja aquilo que ele acabou de fazer.
Há vários anos, reflito sobre o conhecido texto de Friedrich Nietzsche sobre o “homem louco” (o tonto é o único que pode dizer a verdade) que proclama a “morte de Deus”. Esse capítulo termina com o louco entra na igreja para cantar Requiem aeternam deo e pergunta: “Afinal, o que são estas igrejas senão somente os túmulos e os sepulcros de Deus?” Devo admitir que, durante muito tempo, diversos aspectos da Igreja me pareceram sepulcros frios e opulentos de um deus morto.
Neste ano, muitas das nossas igrejas estavam vazias na Páscoa. Mas pudemos ler na nossa casa as passagens do Evangelho sobre o túmulo vazio. Se o vazio das igrejas evoca o túmulo vazio, não ignoremos a voz que vem do Alto: “Ele não está aqui. Ressuscitou! Ele vos precederá na Galileia”. Onde fica a Galileia de hoje, onde podemos encontrar o Cristo vivo?
A pesquisa sociológica mostra que o número daqueles a quem eu chamo “residentes” (dwellers), ou seja, aqueles que se identificam profundamente com a forma tradicional da religião e também aqueles que declaram um ateísmo dogmático, está em diminuição, enquanto aumenta o número dos que estão “à procura” (seekers). Além disso, está obviamente em aumento também o número dos “apáticos”, os indiferentes, pessoas que absolutamente não estão interessadas nas questões religiosas ou na resposta tradicional que lhes é dada.
A principal linha de demarcação já não é entre os que se consideram crentes e os que se consideram não crentes. Há quem esteja “em busca” sendo crente (aqueles para quem a fé não é uma “herança”, mas sim um “caminho”), e há quem seja não crente, que rejeita os conceitos religiosos que lhe são propostos pelos que o rodeiam, mas, ao mesmo tempo, sente o desejo ardente de algo que satisfaça a sua sede de sentido.
Estou convencido de que a “Galileia de hoje”, onde devemos procurar Deus que sobreviveu à morte, é esse grupo dos que estão “em busca”.
A teologia da libertação nos ensinou a buscar Cristo entre as pessoas que estão à margem da sociedade. Mas também é preciso buscá-lo por entre as pessoas marginalizadas na Igreja, entre aqueles “que não nos seguem”. Se quisermos entrar em relação com eles como discípulos de Jesus, devemos abandonar várias coisas.
Devemos abandonar muitas das nossas velhas ideias sobre Cristo. O Ressuscitado é radicalmente transformado pela experiência da morte. Como lemos nos Evangelhos, até mesmo as pessoas que lhe eram mais próximas e por Ele mais queridas não o reconheceram. Não devemos só tomar como boas as notícias à nossa volta, mas também insistir em querer tocar as feridas. Além disso, onde estaríamos certos de poder encontrá-lo senão nas feridas do mundo e nas feridas da Igreja, nas feridas do corpo que Ele assumiu sobre si?
Devemos abandonar os nossos objetivos de proselitismo. Não entramos no mundo dos buscadores para “convertê-los” o mais rapidamente possível e encerrá-los nos perímetros institucionais e mentais das nossas igrejas. Nem mesmo Jesus tentou introduzir à força aquelas “ovelhas perdidas da casa de Israel” nas estruturas do judaísmo do seu tempo. Ele sabia que o vinho novo deve ser derramado em odres novos.
Do tesouro da tradição que nos foi confiada, queremos tirar coisas novas e velhas e fazê-las participar de um diálogo com os que buscam, um diálogo no qual possamos e devamos aprender uns com os outros. Devemos aprender a ampliar radicalmente os limites da nossa visão da Igreja. Já não nos basta abrir, magnanimamente, um “pátio dos gentios”. O Senhor já bateu à porta a partir “de dentro” e saiu – e cabe a nós buscá-lo e segui-lo. Cristo atravessou a porta que nós havíamos trancado por medo dos outros. Pulou o muro que tínhamos erigido à nossa volta. Abriu um espaço cuja amplitude e profundidade nos dão vertigens.
No início da sua história, a Igreja primitiva dos judeus e dos pagãos viu a destruição do templo em que Jesus pregava e ensinava aos seus discípulos. Os judeus daquela época encontraram uma solução corajosa e criativa: substituíram o altar do templo demolido pela mesa familiar, e substituíram a prática do sacrifício pela oração privada e comunitária. Substituíram os holocaustos e sacrifícios de sangue pelo “sacrifício dos lábios”: a reflexão, o louvor e o estudo das Escrituras.
Mais ou menos na mesma época, o cristianismo primitivo, banido das sinagogas, procurou uma nova identidade. Sobre os destroços das tradições em ruína, judeus e cristãos aprenderam a ler a Lei e os Profetas começando do zero e a interpretá-los de novo. Não é uma situação semelhante à dos nossos dias?
Quando Roma caiu, no início do século V, houve quem encontrasse de imediato uma explicação: para os pagãos, tratava-se de uma punição dos deuses pela adoção do cristianismo; para os cristãos, uma punição de Deus a Roma por ter continuado a ser a “prostituta da Babilônia”. Santo Agostinho rejeitou ambas as explicações e, naquele momento de divergência, desenvolveu a sua teologia da luta secular entre duas “cidades” opostas; já não entre cristãos e pagãos, mas sim entre dois “amores” que habitam o coração humano: o amor a si, fechado à transcendência (amor sui usque ad contemptum Dei), e o amor que se doa e, assim, encontra Deus (amor Dei usque ad contemptum sui).
Este nosso tempo de mudança de civilização não requer, talvez, uma nova teologia da história contemporânea e um novo modo de entender a Igreja?
“Sabemos onde a Igreja está, mas não sabemos onde ela não está”, ensinava o teólogo ortodoxo Pavel Nikolaevic Evdokimov. Talvez o que o último Concílio disse sobre a catolicidade e sobre o ecumenismo deva agora adquirir um conteúdo mais profundo. Chegou o tempo de ampliar e aprofundar o ecumenismo, de uma busca mais audaz de Deus “em todas as coisas”.
Podemos, naturalmente, aceitar estas igrejas vazias e silenciosas simplesmente como uma medida temporária que, em breve, será esquecida. Mas também podemos acolher isso como um kairós: um momento oportuno para “avançar para águas mais profundas” e procurar uma nova identidade para o cristianismo, em um mundo que se transforma radicalmente debaixo dos nossos olhos. A atual pandemia não é, certamente, a única ameaça global para o nosso mundo, nem agora nem no futuro.
Façamos deste tempo um desafio para buscar Cristo novamente. Não procuremos Aquele que vive entre os mortos! Busquemo-lo com coragem e tenacidade, e não fiquemos surpresos se ele aparecer a nós como um estrangeiro. Vamos reconhecê-lo pelas suas feridas, pela sua voz, quando nos falar intimamente, pelo Espírito que traz a paz e afasta o medo.
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Igrejas fechadas: um sinal de Deus? Artigo de Tomáš Halík - Instituto Humanitas Unisinos - IHU