"Temos uma ditadura das mídias sociais que ao invés de estimularem o convívio, divulgam uma experiência eclesial pré-conciliar, de dependência do clero e pior, de disfarçada “contemporaneidade”", escrevem Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especializado em Liturgia pela PUC-SP e música ritual pela FACCAMP, assessor eclesiástico para a Liturgia na mesma Arquidiocese, membro da Equipe de Trabalho para o Espaço Sagrado para a Catedral Cristo Rei, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE) e doutorando em liturgia pastoral em Santa Giustina – Pádua, e Pe. Danilo César, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, liturgista, professor na PUC-Minas e membro da Rede Celebra.
No último sábado, durante a homilia na Missa em Santa Marta, o Papa Francisco partilhou que um “bom bispo” lhe havia dito sobre dispor e mostrar na basílica de São Pedro, ao menos um grupo de fiéis (tomadas as devidas precauções) durante as celebrações. O Pontífice confessou não ter entendido, de início, o que desejava o “bom bispo”. O Papa parece ter captado o aparente atrevimento do “bom bispo” (se for o mesmo personagem que lhe fez concluir o que segue): “Estamos todos comunicados, estamos juntos, mas não juntos (...). Também o Sacramento: hoje vocês terão, a Eucaristia (referindo-se a quem participava da celebração), mas as pessoas que estão em conexão conosco (terão) somente a comunhão espiritual. E esta não é a Igreja”.
“Esta não é a Igreja”. Qual? Aquela Igreja dos meios de comunicação, a Igreja via “lives”. Foi preciso um “bom bispo” provocar o Pontífice para que oficialmente nos déssemos conta (e outros bispos começaram a repetir o seu discurso), de que há um exagero prejudicial em andamento no que se refere à midiatização da fé. Com sinceridade, a reação que alguns de nós, teólogos, temos é de perplexidade diante de tanta inconsistência que se tem difundido pela mídia, justificada pelas boas intenções de quem as promove. A Igreja, palavra que quer dizer reunião dos convocados por Deus, é, por definição, encontro interpessoal com o Senhor. As mídias sociais não dão conta do “interpessoal”, com todo o seu significado eclesiológico, e compreende a interpessoalidade a partir de outros parâmetros que dispensam a presença física. O contato com o outro se dá na mediação dos aparatos técnicos que restringem a corporeidade aos sentidos da visão e da audição circunscritas. O interlocutor é visto a partir de determinado enquadramento e escutado a partir de determinado filtros ou canais, ao dispor do editor que opera a transmissão. Não pode, portanto, de modo satisfatório ao ser eclesial, alcançar o sentido da intersubjetividade e, menos ainda, no Senhor, para que possamos reconhecer “através” das telas de nossas interfaces digitais uma experiência eclesial concreta e verdadeira a partir da liturgia. O “imediato” da nossa corporeidade, assumida pelo Senhor como mediação para comunicar sua presença, fica substituído pela mediação de nossos aparelhos. Nas transmissões, à mediação do corpo se sobrepõe a mediação dos aparatos técnicos. É a mediação da mediação! Não sem prejuízos, pois os demais sentidos (olfato, paladar e tato) são obstaculizados pelo limite dos meios de transmissão. Além disso, opera-se um simulacro da participação, promovendo a sensação de estar integrado, quando na verdade, o ato não ultrapassa o âmbito da assistência (espetáculo).
A insistência na categoria da “comunhão espiritual”, carece de suficiência e mesmo nas palavras do Papa, não dá conta do que estamos vivendo. Na verdade, parece que confundimos “espiritual” com “virtual”, que se vale da intenção, do desejo, da mentalização, ou imaginação, reforçando o não corporal. Este é um grande problema para a fé cristã porque não há realidade mais espiritual do que o corpo, reconhecido como templo de Deus (cf. 1Cor 3,16; 6,19). Se é templo de Deus, é espiritual... A comunhão espiritual não depende dos media, ela existe porque desde o batismo formamos parte do mesmo corpo que é a Igreja, reconhecemo-nos como membros uns dos outros e porque unidos no mesmo Espírito, o Espírito de Cristo (cf. 1Cor 12; Rm 12). E é por meio deste Espírito que nos foi dado, e pelo qual são fortalecidos os vínculos eclesiais quando celebramos, e também quando agimos em solidária caridade. A comunhão espiritual é a comunhão dos santos que não se opõe à realidade corporal da Igreja, nem a cancela. Antes, a exige e integra. Não é por qualquer motivo que o cálice com vinho na oração de bênção da apresentação dos dons é chamado (no texto latino) de potus espiritualis, isto é, bebida espiritual. É espiritual sem deixar de ser bebida, sem deixar de ser vinho degustado. A conversa sobre comunhão espiritual é extensa e cheia de pormenores, exige cuidado aqui, mas também exige o mesmo cuidado para referendar nosso desejo de transmitir celebrações. Merece ficar para outro momento.
Evidentemente que não podemos negar o benefício das redes. Você que nos lê neste momento está desfrutando de suas vantagens. No entanto, para fazer experiência litúrgico-eclesial, usando a coincidência de termos do trecho evangélico comentado pelo Papa, temos que “deixar as redes” para seguir Jesus. Estamos vendendo a ideia de que nestes tempos de isolamento social a “única saída” são as redes sociais para que as pessoas não se sintam sós, sejam consoladas, etc. Esta é uma meia verdade. Todos sabemos que o uso das mídias sociais agora não é suficiente – porque nunca o foi antes – para tirar as pessoas do isolamento. O isolamento, ao contrário, pode aumentar em proporções abissais... Pode ser de auxílio, quando bem inseridas no amplo e complexo tecido relacional, do contrário, gerarão mais estragos do que benefícios.
Com relação à vida de fé e à experiência eclesial, de uma hora para outra nos esquecemos da “casa”. A “casa”, lugar na qual surgiu e da qual ganhou forma inclusive a celebração litúrgica mais importante dos cristãos: a eucaristia. É de se admirar que muitos não se sintam incomodados com a discrepância entre a experiência virtual e aquela que é própria dos ritos, que valoriza ao extremo a mediação que Jesus escolheu para permanecer presente: o corpo. O corpo de Cristo, entendido aqui como o pão consagrado, não tem uma finalidade em si mesmo. Outrossim, destina-se ao corpo da comunidade e das pessoas na sua integralidade: corpo pessoal que manduca, corpo eclesial ao qual se vincula pela manducação. O corpo é, sem dúvida, o elemento axial da sacramentalidade, pois nos remete à experiência da encarnação: Deus se fez corpo.
Choca que alguns ministros da Igreja (ordenados e não ordenados), num rito tão especial como o lava pés, não saibam distinguir entre um membro do corpo, pé – de carne e osso – e um desenho numa cartolina, ou entre uma pessoa e a imagem sacra de um santo, entre uma cadeira ocupada e outra vazia, e ainda, entre bonecos sem vida e o calor da pele de um irmão. Se ministros insistem em fazer o mesmo gesto e cantar as mesmas palavras de que são feitas o rito, sem a presença do sujeito que celebra e que deve ser transformado mediante aquela linguagem simbólico-sacramental, estamos realmente perdidos. Na verdade, não temos mais a performance ritual de uma comunidade de fé, mas outro tipo de performance, talvez teatral. Talvez a crítica aqui recaia sobre a formação litúrgica e não tanto sobre os meios de comunicação que, do seu lugar, fizeram a sua função (irrefletida) de transmitir esse disparate.
Antes desta pandemia, insistíamos tanto nas relações familiares, na importância dos seus núcleos, da casa que as famílias abrigam e agora, quando o discurso deveria ser fortalecido para além do contexto moral, revelando sua amplitude eclesiológica, por meio das celebrações domésticas, comece a desconstruir, ou pelo menos a desconsiderar anos e anos de esforços teológicos e pastorais em torno da Igreja doméstica. Por que? Talvez porque ainda compreendamos Igreja como um fato clerical. É bom que fique claro: precisamos sim dos ministros ordenados, mas não da sua “onipresença”. A Igreja é sábia com relação a isso... só que a gente nunca foi muito estimulado a descobrir o quanto. A nossa fixação com a celebração eucarística, sobretudo a despeito do seu significado eclesial de – nas palavras de Santo Tomás – “fabricar a Igreja” – talvez nos tenha feito esquecer os sacramentais, por exemplo. Nestes sacramentais, há preces que os ministros ordenados – por exemplo – não podem fazer, são reservadas aos pais em relação aos filhos, no caso da bênção nas casas. Estas bênçãos são chamadas “sacramentais”, isto é, gozam de sacramentalidade. Trocando em miúdos: contam com a presença e a atuação de Jesus quando celebradas por leigos e leigas batizados, ainda que sem a presença dos ministros ordenados. Isso para não falar do Ofício Divino. Continuamos a insistir em terços e novenas e pior, em “novas” devoções de procedências duvidosas, distantes das Escrituras e da liturgia. A oração dos salmos, aquela que manteve viva a espiritualidade e a consciência filial de Jesus até o fim, infelizmente, não é verdadeiramente estimulada e promovida na sua forma eclesial de oração, a Liturgia das Horas ou o Ofício Divino das Comunidades. Não nos parece que seja este o tipo de eclesialidade que se queira ajudar a formar com o uso e abuso das redes.
Com sinceridade, chega a ser desesperador além de decepcionante. Sem falar naqueles que – teologicamente incitam a “abandonar” a liturgia, na sua ritualidade, em nome de uma cartilha ética, que reduz o ser cristão aos esquemas morais e racionalistas. Apregoam uma suposta solidariedade que suplanta a carnalidade da fé oferecida por aquela realidade que é, segundo o Concilio Vaticano II, cume e fonte da vida cristã (cf. SC 10). Esquecem-se de que a missão da Igreja, o seu testemunho e o ser cristão, nascem do encontro com o Senhor que nos é oferecido nas celebrações. Delas emanam e dependem todas as outras atividades da Igreja, pois é a prática ritual que constrói significados e por meio deles transforma as pessoas e as suas práxis. Do contrário, o que nos diferiria de uma ONG ou de um grupo de amigos bem intencionados e eficientes...?
Em síntese, temos uma ditadura das mídias sociais que ao invés de estimularem o convívio, divulgam uma experiência eclesial pré-conciliar, de dependência do clero e pior, de disfarçada “contemporaneidade”. Por exemplo: uma participação por desejo, através de uma união meramente “interior” com aquele que celebra, aceitar a passividade litúrgica tendo como justificativa o fato de o ministro ordenado oferecer o sacrifício em favor do povo... enfim, todas categorias superadas no Concílio Vaticano II, ou declaradas insuficientes. Parece, muito mais, trapo velho em tecido novo (cf. Mt 9,16). Não chegou o momento de a Igreja deixar-se desafiar e reconhecer, finalmente, sem medos, o sacerdócio comum dos batizados? As mídias sociais não podem ser usadas dignamente para este fim proporcionando boa formação, incrementando a espiritualidade, dentro dos limites de sua própria linguagem? Não é possível seguirmos com isso. Não é salutar promover, louvar e viralizar uma “não-Igreja” quando temos diante de nós a oportunidade de redescobrir a filiação e a fraternidade ao redor das mesas de nossas casas, como o fez muitas vezes Jesus, sem estardalhaço e barulho (cf. Lc 7,36-50; 9,1-10; Jo 12,1-8). Por uma questão de sobrevivência, por uma questão de sanidade espiritual, por uma questão de vocação, seria melhor – de fato – e em alguns momentos – “deixar as redes”.