14 Abril 2020
A Igreja precisa refletir profundamente sobre as formas “virtuais” de celebrar a fé.
A opinião é do jesuíta australiano Michael Kelly, diretor-executivo da UCAN Services, rede das mídias católicas na Ásia. O artigo foi publicado em La Croix International, 13-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os ludistas têm um lugar bem merecido na história inglesa. Mas seu comportamento tem aplicações muito além do ambiente da manufatura têxtil, onde eles conquistaram sua reputação.
Os ludistas eram trabalhadores têxteis em Nottinghamshire, Yorkshire e Lancashire. Eles eram artesãos habilidosos, cujo comércio e comunidades foram ameaçados por uma combinação de máquinas e outras práticas que foram unilateralmente impostas por uma nova classe agressiva de manufatureiros que impulsionou a Revolução Industrial.
Os proprietários das usinas queriam reduzir custos e viram que a tecnologia poderia substituir a contribuição dos trabalhadores. Os trabalhadores responderam destruindo as máquinas.
Embora estejamos em tempos extremos enquanto a Covid-19 varre o mundo inteiro, não posso deixar de sentir que o espírito dos ludistas está bem vivo quando se trata de considerar o lugar da tecnologia na celebração da nossa fé.
Muitos, talvez a maioria dos comentaristas sobre o lugar da tecnologia em coisas como a celebração da Eucaristia, estão completamente convencidos de que apenas o modo e os métodos que empregamos até hoje são a única forma que temos para enquadrar as questões que estão diante de nós – a liturgia tem a ver com a reunião física e presencial de uma comunidade; a Eucaristia é o momento privilegiado em que uma comunidade é reunida pelo Espírito Santo no mesmo lugar e ao mesmo tempo.
Essa não é apenas uma leitura fundamentalista da tradição da Igreja – em que arrancamos a leitura de um texto da página, sem fazer referência ao contexto, circunstâncias e questões enfrentadas por quem criou o texto. Isso também reflete um senso empobrecido do que a tecnologia disponível em todos os lugares hoje realmente visa a fazer.
Embora nem sempre seja utilizada para os fins para os quais foi desenvolvida, a tecnologia digital de hoje tem um objetivo simples – facilitar a interação imediata entre pessoas que não estão fisicamente presentes uma em relação à outra.
Toda a discussão que eu vi sobre tecnologia e Eucaristia neste momento perde de vista o objetivo da tecnologia. A única coisa na mente da maioria dos comentaristas é o uso do vídeo – uma comunicação unidirecional que induz à passividade – e o uso do vídeo como se estivéssemos indo à Netflix para ver o nosso filme favorito. Trata-se de tecnologia para voyeurs.
O que estamos aprendendo durante este período de fechamento forçado das igrejas, criado pelas restrições impostas a nós para a nossa reunião e celebração da Eucaristia? Acho que estamos sendo forçados a enfrentar muitas coisas que não tivemos tempo de considerar ou, mais precisamente, que não queríamos enfrentar.
O que este momento revela para a Igreja é algo sobre o qual se falou muito na sessão mais recente do Sínodo dos Bispos focado na Amazônia: o fato de que muitos católicos longe dos berços das culturas clericais na Europa e na América do Norte, na verdade, foram privados de oportunidades para celebrar a Eucaristia por muito mais tempo do que desejamos reconhecer.
Mesmo em lugares que parecem ter um excesso de clérigos como a Índia e as Filipinas, as regiões de ambos os países têm grandes populações de católicos com acesso limitado e, na melhor das hipóteses, irregular às celebrações da Eucaristia.
Mas vejamos o que o Vaticano II chamou de “fonte e ápice da nossa fé”! Aqui está uma experiência virtual, se é que já houve alguma – a Eucaristia. É um exercício das nossas memórias, que traz à mente, cada vez que é celebrada, uma refeição compartilhada por no máximo 20 pessoas e nos remete a algumas coisas que ocorreram há 2.000 anos.
Em relação a elas e aos eventos que recordam, estamos apenas virtualmente presentes – “Fazei isto em memória de mim”. Eles estão realmente prontos para a transformação em uma era virtual.
O modo como isso é feito – para que as mudanças permaneçam fiéis e coerentes com os entendimentos centrais da tradição cristã – é outra questão complexa. Mas isso está sendo feito e será novamente, especialmente nas circunstâncias desencadeadas pelo coronavírus, cujas restrições em todo o mundo provavelmente durarão pelo menos 12 meses, ou certamente até que uma vacina seja encontrada. Os que estão mais bem informados do que eu dizem que podem levar 18 meses para produzir a vacina.
O modo como celebramos a Eucaristia varia muito de lugar para lugar, de cultura para cultura, de clima para clima, de idioma para idioma. Seja como for, ela continua sendo um ato de anamnese – ou de lembrança ativa de eventos passados tornados presentes para nós agora em nossa imaginação. Esse deve ser o lugar para começar a reconsiderar algo tão ligado à presença física antes de termos o confinamento atual e a tecnologia para superá-lo.
Esta não é uma questão que a Igreja Católica está enfrentando pela primeira vez. Hoje, em inúmeros lares de idosos em todo o mundo, em lugares que têm a tecnologia para suportá-la, a missa é transmitida ao vivo para aqueles que nunca poderiam chegar até uma igreja, mas mesmo assim anseiam pelo alimento da fé que a Eucaristia traz.
Trata-se de formas de compartilhar a fé que contêm ricas homilias que levam à oração e são organizadas e cronometradas para proporcionar momentos contemplativos para aprofundar a apreciação do Deus presente a nós e que se doa na Palavra, mesmo que o presidente e o pregador não estejam fisicamente presentes.
E o que acontece em muitos desses lugares é a partilha do Sacramento no momento da comunhão das hóstias consagradas para distribuição aos enfermos.
Hoje, enfrentamos outro desafio, e, sinceramente, não consigo ver que uma participação “virtual” na Eucaristia seja tão teologicamente diferente do que ocorre nas megaproduções eucarísticas que ocorrem nas missas papais em todo o mundo – muitas vezes mediadas por grandes telões – que podem ter um milhão de católicos “indo à missa”. Pode não ajudar muito dar um exemplo tão extremo. Mas é um exemplo amplamente aceito.
Sobre esse assunto, lembro-me de algo que me foi ensinado quando eu estudei Direito Canônico há 35 anos. Um dos canonistas me ensinou que há uma progressão bem estabelecida da reforma legal na Igreja, atestada por tópicos que vão do dinheiro à astronomia.
A progressão tem cinco estágios: algo é considerado intrinsecamente mau e sempre proibido; depois exceções são permitidas; mais tarde, a autoridade da Igreja alcança uma posição neutra, e o assunto deixa de ser condenado; então, o próximo estágio é quando o comportamento anteriormente proibido se torna permitido; por fim, alcança-se um estágio em que o ensino ou prática formalmente proibido é, de fato, recomendado.
O que eu estou sugerindo sobre a expansão de oportunidades “virtuais” para a celebração da nossa fé – não apenas da Eucaristia – pode suscitar mais perguntas do que respostas. Mas este tempo de confinamento é um tempo para fazer essas perguntas e muitas mais.
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