01 Mai 2020
"A memória do Senhor não vive somente de pão. Senão, como teria chegado até aqui?", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 30-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A decisão dos bispos, na Itália e na França, de intervir sobre Conte e sobre Macron por uma alteração em favor da Igreja Católica das normas sobre o confinamento, a fim de reunir o povo para a Eucaristia, provocou uma dissidência profunda não só da parte de “cristãos críticos”, prontos e talvez acostumados a dar voz às hierarquias, mas também da parte de teólogos de autoridade, intelectuais, bispos. Assim, a missa, que é a grande instituição para a unidade – a “comunhão” – dos fiéis, tornou-se causa de divisão.
Até se argumentou que estavam surgindo duas Igrejas, uma na tradição dos sacramentos e do culto, a outra, do Evangelho. De qualquer forma, a Igreja de todos, a Igreja dos pobres, ama as duas, até porque elas não são tão claramente distintas uma da outra, e há muito tráfego de fronteiriços através das suas fronteiras.
Nós também não compartilhamos a reivindicação dos bispos, e muitos trouxeram e puseram em circulação motivos muitos válidos para isso. Acima de tudo, o que nos incomodou foi a razão, um pouco extrema, adotada pelos funcionários de um escritório da Conferência Episcopal Italiana (CEI), segundo a qual, com menos missas, teria havido menos serviço aos pobres, à comunidade; como que dizendo que, sem sacramento, não há lava-pés, já que um é alimento do outro, e isso como se a missa, e somente ela, fosse um posto de gasolina ou uma central de fornecimento de energia elétrica, sem a qual o carro não anda.
É bem verdade que, para servir aos pobres, lavar os pés uns dos outros, ser cristão, é preciso uma grande energia, mas, para não sermos pelagianos, sabe-se que essa energia vem do Espírito do Senhor, e só nos faltaria que o Espírito Santo se deixasse interditar pela escassez de missas em tempos de pandemia ou em regiões amazônicas, seria como cortar a luz do edifício ocupado, onde o esmoleiro do papa, divino eletricista, foi religar.
Para sair da controvérsia, se ela não quiser ser mantida viva e instrumentalizada para outros fins, bastaria se referir às palavras de Jesus quando deu o seu pão e disse: “Fazei isto em memória de mim”. Portanto, o pão, que depois os teólogos explicaram como transubstanciação, é o meio; o fim é recordar-se dele. E aqui o meio não é a mensagem, o fim é superior ao meio.
Por isso, sempre pensamos que seria bom que os cristãos se lembrassem dele toda vez que partem e comem o pão, ou seja, sempre, ainda mais quando compartilhado; e, de fato, há uma antiga tradição popular segundo a qual, à mesa, o pai, a mãe ou um dos outros abençoa o pão antes que todos o comam.
É bonito que o pão esteja ligado à memória, por isso as celebrações da Palavra que param nas leituras antes da consagração, como se costumava fazer em Bolonha no entusiasmo da redescoberta da Bíblia depois do Concílio, falham nisso em tornar visível a memória. Por isso, nunca houve mais memória de Jesus nestes tempos do que em torno da missa do Papa Francisco, que, graças ao vírus, é transmitida e “vista” na TV todas as manhãs a partir de Santa Marta.
E, se o pão torna visível a memória e também a torna comida, se a epidemia permitir, a memória do Senhor não vive somente de pão. Senão, como teria chegado até aqui?
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Pão e memória. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU