Austen Ivereigh é um dos mais destacados biógrafos do Papa, investigador de História Contemporânea da Igreja, jornalista com vasta experiência a acompanhar o que se passa no Vaticano. Foi um dos escolhidos por Francisco para integrar a equipe de peritos que assistiu às duas sessões da assembleia sinodal. Austen, de 58 anos, dedicou grande parte dos últimos três anos ao Sínodo sobre a Sinodalidade: coordenou a redação da síntese dos relatórios diocesanos de Inglaterra e País de Gales, fez parte do grupo que redigiu o documento de trabalho para a etapa continental e escutou atentamente todas as intervenções na Sala Paulo VI. Em entrevista ao 7Margens, o jornalista faz um balanço de todo o processo. Das tensões e falsos consensos ao Documento Final, passando pela sinodalidade já em ação e pela estreita (mas nem por isso óbvia) ligação entre o Sínodo e a mais recente encíclica papal, Dilexit nos, Ivereigh contribui para uma leitura, não só do que aconteceu, mas também do que pode vir a acontecer no espaço de uma geração.
A entrevista é de Clara Raimundo, publicada por 7Margens, 10-11-2024.
O senhor acompanhou todo o processo sinodal, incluindo as duas sessões da assembleia geral. Considera que surgiram vozes proféticas nestes três anos?
Neste Sínodo, tivemos delegações vindas de cada continente, compostas maioritariamente por leigos, religiosas e alguns clérigos, e tivemos também pessoas escolhidas pelo Papa, que quis claramente que estivessem presentes certas vozes, como a dos jovens, a dos migrantes, a voz dos que trabalham com pessoas LGBT… As vozes mais proféticas, para mim, foram daqueles que partilharam o que estava a acontecer nos seus países – guerras ou situações de uma violência terrível – e que mostraram que o fato de estarmos todos juntos era um sinal para um mundo cada vez mais polarizado e em conflito. Ou seja, vozes que disseram: “o que estamos aqui a fazer tem um sinal profético que vai para além do valor da própria Igreja”.
Mas também houve algumas polarizações no próprio Sínodo…
Na primeira sessão da assembleia, sim. Houve algumas tensões, e por vezes até polarizações, que se deviam em parte a questões éticas e a diferenças culturais. Mas parece que este ano tudo isso desapareceu e havia apenas um sentimento de companheirismo e pertença. Diria que essa foi a principal diferença entre a sessão do ano passado e a deste ano, também porque o foco foi consideravelmente reduzido à tarefa de como tornar a Igreja mais sinodal. Mas se o desafio do ano passado foi por vezes a polarização, penso que o desafio deste ano foi aquilo a que chamo de irenismo… um falso consenso que surge muitas vezes porque as pessoas não estão dispostas a entrar em tensões e desentendimentos. E acho que isso também é perigoso, porque levou as pessoas a uma certa abstração nas suas intervenções, para não perturbar a comunhão existente…
Ainda assim, houve bastante tensão em torno da questão do papel das mulheres.
O que aconteceu em relação ao tema das mulheres na Igreja foi sobretudo um problema de comunicação. A breve intervenção do cardeal Fernández, sobre o ponto de situação do trabalho desenvolvido pelo Grupo 5 [que está encarregue de estudar esse tema], foi muito mal recebida, porque – ao contrário do que aconteceu em relação aos outros grupos de estudo – não deu qualquer noção de quem estava a fazer o quê.
Em reação a isso, os membros sinodais sentiram que precisavam de saber mais e pediram uma oportunidade de interagir diretamente com os grupos de estudo. Foram marcadas reuniões com esses grupos, e o cardeal Fernández não compareceu à reunião do seu grupo, o que gerou ainda mais mal-estar. Os membros manifestaram então a sua indignação e, em resposta a isso, o cardeal emitiu um comunicado. Isso, na minha leitura, foi um desenvolvimento importante, porque mostrou que reconhecia o Sínodo como um sujeito, como um agente, que precisava de ser respeitado. E nessa altura prometeu fazer uma nova reunião na qual estaria presente. Essa reunião aconteceu – eu pude participar nela – e aí ele foi muito claro sobre o que o grupo está a fazer e porque está a fazer da forma que está a fazer.
E a ordenação de mulheres diáconas continuou em cima da mesa.
Sim, sendo que essa foi uma proposta de algumas igrejas locais na fase de consulta. Mas o cardeal insistiu que, como diz o Papa, ela não está madura, e explicou porquê: há um desacordo fundamental sobre a igreja primitiva e o papel do diaconato feminino, e é preciso trazer esse desacordo para o diálogo. Essencialmente, é isto: havia um diaconato feminino na Igreja primitiva, mas ninguém sabe se era um ministério ordenado ou não… E o que significava a ordenação na Igreja primitiva?… É complicado. Mas o perigo – e agora sou eu a falar – é que reclericalizemos a questão, porque se assume que a única coisa importante na Igreja é o ministério ordenado. E o Papa vê que a tarefa de que precisamos na Igreja é desclericalizar, para melhor compreender que ministérios podem ser exercidos pelas mulheres sem ordenação.
Recentemente, tivemos o depoimento do cardeal Steiner, de Manaus, onde existem mil comunidades para apenas 170 padres. A maioria destas comunidades está localizada em zonas remotas e é dirigida por mulheres… E lembro-me do Sínodo da Amazônia, em que muitas mulheres contavam o muito que faziam, mas diziam que não queriam ser clérigos. “Queremos que a Igreja reconheça o que estamos fazer, e queremos a autoridade para o podermos fazer”, diziam. Então essa é verdadeiramente a tarefa desta comissão: perceber a partir da realidade, ou da práxis, para usar um termo teológico. O pressuposto teológico é que o Espirito derrama sempre sobre a Igreja os dons de que ela necessita para cumprir a sua missão. E é evidente que o Espirito está a derramar estes dons neste momento sobre as mulheres – também sobre os leigos, mas particularmente sobre as mulheres. E a tarefa da Igreja é reconhecer o que o Espirito está a fazer, em vez de tentar encaixar tudo num esquema existente. Então, estou bastante entusiasmado com isso e acho que a forma como o Papa decidiu lidar com a questão está certa.
Alguns membros do Sínodo pareciam não estar muito entusiasmados. Até vi vários a dormir, durante os trabalhos na Sala Paulo VI.
Tem a certeza de que não estavam a rezar?… [Risos] A impressão que tive, de tudo aquilo a que assisti, e também ao falar com as pessoas nas pausas para o café, é que maioria estava, de fato, entusiasmada. Mas não podemos esquecer que foi um processo muito exigente e cansativo. Os dias eram muito longos e ouvir o outro, com profundidade e atenção, é exigente. Sobretudo quando se está a lidar com um ambiente multilíngue, onde se escuta frequentemente uma língua que não é a nossa, ou um tradutor… Sei que a maioria das pessoas ficava muito cansada no final das congregações gerais, o que não quer dizer que não estivessem entusiasmadas.
Percebi que alguns já começaram a pôr a sinodalidade em prática, mesmo antes do fim do Sínodo.
Sim! Uma das coisas mais bonitas desta assembleia foi que as pessoas partilharam os frutos que o Sínodo tem dado nos seus países e ouvimos muitas histórias de dioceses que já mudaram a sua forma de operar… Por exemplo, lembro-me de um bispo que contou que cada reunião na sua diocese começa agora com 20 minutos de Lectio Divina [exercício de escuta pessoal da Palavra de Deus], ou de outro bispo, australiano, que me falou de como agora as reuniões do conselho pastoral decorrem segundo três palavras-chave: informação, formação e transformação. Isto é: as informações relevantes são todas enviadas com antecedência aos participantes, no dia da reunião há uma palestra de dez minutos para todo o grupo, e a transformação acontece porque, em função das informações e da formação, o grupo reflete e responde sobre como pode mudar a sua forma de operar. Portanto, há vários exemplos concretos que mostram que a sinodalidade já está a acontecer.
O senhor é católico e membro ativo numa comunidade… Já notou mudanças na sua própria paróquia?
Sim, vivo em Herefordshire, no oeste de Inglaterra, e a minha paróquia é a da Abadia de Belmont, que é um mosteiro beneditino. Por causa do meu envolvimento no Sínodo, tenho sido o “Mister Sinodalidade” e dado várias palestras… Mas o mais importante foi que, na última Quaresma, procurámos refletir sobre a missão da paróquia e identificar quais as prioridades para o futuro, e fizemo-lo utilizando o método da conversação no espírito, em pequenos grupos, tal como nas sessões da assembleia sinodal.
Esse processo, para o qual convidámos todos os paroquianos, e ao qual chamámos “Ouvidos para Ouvir” – inspirados na Regra de São Bento –, não teria acontecido sem este Sínodo. Organizámos encontros em diferentes momentos do dia e da semana, para que o maior número de pessoas pudesse ir, e conseguimos a participação de um grupo relevante. Como resultado disso, identificámos quatro prioridades claras, que procuramos agora realizar: construir uma comunidade de pertença, formar-nos como discípulos, aprofundar a oração e a liturgia, e tornar-nos uma paróquia missionária.
Podemos dizer que outro fruto do Sínodo foi já uma maior aproximação entre as igrejas cristãs?
Sim. Um dos desenvolvimentos entre a sessão do ano passado e a deste ano é que o número de delegados fraternos aumentou. E houve, novamente, uma coletiva de imprensa muito interessante com eles. Estiveram presentes um ortodoxo, um anglicano e um menonita. E a minha sensação foi a de que estavam enormemente impressionados com a ousadia desta iniciativa, desta sinodalidade. Alguns deles disseram que estão muito impressionados com a metodologia de oração e discernimento, que é muito diferente de algumas das estruturas que existem, por exemplo, na Igreja de Inglaterra, que funciona essencialmente como um parlamento. E penso que também há certo entusiasmo quanto o papel do Bispo de Roma como sendo uma figura de unidade, que pode convocar processos que ajudem a construir a unidade das igrejas ao longo do tempo.
Nessa entrevista coletiva, perguntei se seria possível imaginarem que um dia o Papa convocaria os líderes de todas as Igrejas cristãs – talvez até de todas as religiões – para uma reunião única, não deliberativa, claro, mas para em conjunto discernir algumas das grandes questões que as igrejas enfrentam, que são muito semelhantes. E a resposta deles foi muito interessante. Disseram: “Não ficaríamos chocados se isto fosse proposto”. Portanto, penso que estamos a construir um mecanismo de discernimento eclesial que não é apenas para a Igreja Católica, mas que poderá ter um impacto ecuménico real ao longo do tempo.
Um tema que senti que ficou um pouco ausente do Documento Final foi o dos abusos sexuais do clero… Sentiu o mesmo?
Penso que os abusos – e a compreensão de que muitas vezes na Igreja os relacionamentos têm sido abusivos – são o pano de fundo para a necessidade de realizar este Sínodo e para toda a conversão sinodal da Igreja. Falo de abusos sexuais, abusos de poder e autoridade, de consciência… No início desta assembleia, tivemos uma celebração penitencial, e nessa celebração percebi que todos os pecados pelos quais o Papa estava a pedir perdão eram pecados contra a sinodalidade. Todos eles são pecados contra o tipo de relacionamento para o qual Cristo nos chama. Por isso, vejo uma relação absoluta entre a crise dos abusos e o processo sinodal. Penso que a graça da crise dos abusos, se é que posso dizê-lo desta forma, foi a de mostrar à Igreja a necessidade de uma conversão radical no seu modo de relacionamento, não só internamente, entre os seus membros, mas também, até certo ponto, com o mundo.
Então seria melhor que este Sínodo tivesse acontecido há mais tempo?
Sim, podemos sempre dizer isso. Mas sem dúvida que era necessário neste momento. E o que é claro para mim agora, no final destes três anos, é que estamos apenas no início. Este processo de conversão demorará uma geração. Suponho que, em qualquer período da História da Igreja, a mudança é lenta porque é orgânica… E devo dizer que notei muitas vezes, ao longo desta viagem, que algumas das pessoas que estão mais impacientes por mudanças são aquelas que esperam muitas vezes que o Papa aja de uma forma muito autoritária. E acho que estamos a tentar fugir disso. Estamos a tentar dizer que na verdade a Igreja muda através da convergência ao longo do tempo. E esta convergência acontece através de processos de discernimento, discussão e oração. E esse é um processo lento. Mas as mudanças são profundas e duradouras porque são processos verdadeiramente orgânicos. E são guiados pelo Espírito. O objetivo da sinodalidade é levar a sério a ideia de que o Espírito Santo conduz a Igreja.
No seu livro O Pastor Ferido [edição portuguesa Vogais] tinha escrito que a sinodalidade é o coração da reforma de Francisco. Acha que este vai ser o seu principal legado?
Uma forma de pensar o pontificado de Francisco é que ele nos chamou a uma renovação das três relações fundamentais da nossa existência: com o nosso Criador, com o mundo criado, e com as criaturas. Se a fraternidade é a expressão ou um apelo à renovação das nossas relações uns com os outros no sentido social mais amplo, a sinodalidade é a forma como expressamos a renovação dessas relações dentro da Igreja, mas obviamente de uma forma muito orientada para o exterior, missionária. E nesse sentido, sim, estou feliz por dizer que a sinodalidade será o seu grande legado.
Tenho pensado nisto desde que li a última encíclica, Dilexit nos. Creio que no centro do seu ensinamento está um apelo à renovação das nossas relações, abraçando ou deixando-nos abraçar pela misericórdia amorosa de Deus, e permitindo que isso nos mude na forma como somos. E os frutos disso estão na forma como nos relacionamos com o mundo natural (de que ele fala na Laudato Si’), e na forma como nos relacionamos também uns com os outros, tanto fora como dentro da Igreja (de que ele fala na Fratelli Tutti).
Essa pode ser uma explicação para o fato de a encíclica Dilexit nos ter sido publicada a dois dias do final do Sínodo?
Pois, pensei que alguém perguntasse sobre isso na coletiva de imprensa de apresentação da encíclica, mas não aconteceu. Tínhamos sido informados em agosto de que a encíclica seria lançada em setembro. Penso que o plano original era que a encíclica fosse apresentada antes da assembleia, porque ajudaria a enquadrá-la. Não sei o que aconteceu, mas o mais provável é que simplesmente não tenham conseguido fazê-lo a tempo, porque estes documentos passam por vários processos, são produzidos em oito línguas, e a tradução por vezes é demorada. Mas o Papa deve ter querido na mesma que a encíclica estivesse ligada ao Sínodo, e de certa forma ela fornece uma espécie de contexto espiritual para receber o Documento Final. E vejo uma ligação entre ambos, apesar de a palavra “sínodo” não ser mencionada em lado nenhum da encíclica...
Pode explicar melhor que ligação é essa entre a encíclica e o Sínodo?
A encíclica mostra-nos que a forma como Deus se relaciona conosco é através do amor gratuito, que não é conquistado. E que ao aceitar essa gratuidade somos transformados e, por sua vez, essa passa a ser a forma como nos relacionamos com os outros. Ou seja, é a dinâmica da nossa relação com Deus que se reflete na forma como nos relacionamos uns com os outros. E no centro disto está a gratuidade. Não somos amados porque somos bons, mas tornamo-nos bons porque somos amados. E é isso que a nossa sociedade tem tanta dificuldade em aceitar… Porque vivemos num mundo onde somos persuadidos a ser rivais que precisam de lutar por tudo. Precisamos de ganhar, até o amor um do outro tem de ser conquistado. E há esta terrível pressão de desempenho… E penso que o que a Dilexit nos faz é convidar-nos a entrar numa economia muito diferente, se assim posso dizer, a economia do amor divino, que, na medida em que somos capazes de ser transformados por ele, transforma a forma como somos com os outros.
E é aqui que está uma ligação explícita com o Sínodo: na nossa interação uns com os outros, a nossa tarefa não é persuadirmo-nos uns aos outros. O meu papel não é conquistar-te, persuadir-te… Eu entro na minha relação contigo oferecendo-me como presente e recebendo-te como presente. E de alguma forma, a partir disto, somos capazes de chegar aonde o coração se encontra com o coração, portanto, este é um relacionamento verdadeiro. E a não ser que tenhamos essa relação, estaremos condenados à rivalidade ou à dominação. Assim, a transformação espiritual e teológica para a qual esta encíclica nos convida é a mesma transformação para a qual somos convidados na conversão sinodal.