12 Novembro 2024
"Mas o retorno de Trump à Casa Branca significa que desaparecerá toda uma retórica a que os democratas estadunidenses estão indissoluvelmente ligados e na qual agem como cavaleiros andantes lutando contra dragões escolhidos por eles a cada situação: as evocações ofensivas... o espírito de Munique, o novo Hitler que quer conquistar a Europa, as terríveis acusações... crimes contra a humanidade... povos assassinados...", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 08-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É melhor jogar abertamente. O que resta das deflagrações que encolheram o poder dos Estados Unidos, reduzido a União Europeia a mero elemento do campo estadunidense, empurrado uma ao lado da outra Rússia e China, apagado meio século de astúcias diplomáticas e ideológicas para separá-las e torná-las mutuamente suspeitas, feito emergir o jogo sucessivo à Guerra Fria que será o Sul contra o Norte e colocado a ONU definitivamente no sótão com as velharias do século XX? Restam, no cômputo geral, quatro verdadeiros senhores do mundo, quatro “imperadores”, Estados Unidos, Rússia, China e Índia, os únicos capazes de brutais cesarismos. E uma série de perguntas: quem é amigo, quem é inimigo, quem somos “nós”, europeus?
Um grande debate estratégico se abriu ruidosamente e dominará os próximos quatro anos da segunda presidência de Trump. Não é certo que efeitos positivos não possam advir dele e se evite, não apenas se fale de paz, segurança e ordem internacional, a deflagração da atual cacofonia e que o fogo fique ardendo sob as cinzas. Seja ele um audacioso empirista, como alguns decantam, ou apenas um oportunista sem escrúpulos, a ficha internacional de Trump, sempre difícil de prever, poderia oferecer a possibilidade daquela cúpula dos Grandes que é a única maneira de pôr fim aos conflitos atuais, especialmente na Ucrânia, e a construção de um equilíbrio que possa se manter por vários anos. Refiro-me a uma cúpula que não se assemelhe a Yalta, que foi um encontro entre vencedores para dividir as esferas de domínio, mas sim ao clássico insuperável da diplomacia entre potências, Westfália, que costurou o mundo dilacerado pela feroz Guerra dos Trinta Anos.
Isso não quer dizer que os diplomatas estejam novamente prestes a trocar beijos e abraços, que lembranças amargas não queimem os lábios: as partes não se arrependem de nada e continuam a suspeitar que as outras estejam secretamente fomentando ofensivas futuras. Mas o retorno de Trump à Casa Branca significa que desaparecerá toda uma retórica a que os democratas estadunidenses estão indissoluvelmente ligados e na qual agem como cavaleiros andantes lutando contra dragões escolhidos por eles a cada situação: as evocações ofensivas... o espírito de Munique, o novo Hitler que quer conquistar a Europa, as terríveis acusações... crimes contra a humanidade... povos assassinados... Talvez também o desaparecimento de uma série de adjetivos injuriosos como colonialistas, imperialistas, belicistas, impérios do mal, agora normais nas relações entre os novos blocos. Um incêndio mental que intoxicou qualquer reflexão nos últimos dois anos e meio. Os desenvolvimentos militares da guerra no centro da Europa apontam tragicamente nessa direção.
Kiev está perdendo. Todos os dias, em um conivente silêncio embaraçado e culpado, o avanço russo implacável, metódico, lento e indiferente às perdas, como é bárbaro hábito daquele exército, tritura e engole quilômetros de novos territórios no Donbass. Corre o risco de ser anulada aquela que foi a vitória ucraniana e ocidental na primeira fase da agressão russa, ou seja, ter impedido que Putin garantisse para si todos os despojos. Os políticos são contidos e restringidos por um obrigatório pragmatismo e deveriam evitar os clichês das piores dissertações filosóficas típicas de exames de maturidade: moral e realismo, convicções e responsabilidades, ética e geopolítica.
Cuidado, ladeira escorregadia. O planeta é caótico, vítima de perigos múltiplos e mortais, cada escolha coloca a verdade última à beira de um abismo e, mais uma vez, os monstros que surgiram - fanatismo, terrorismos, guerras totais - não se deixam facilmente reduzir a um denominador comum. O tempo dos quatro imperadores pode facilmente se prolongar no caos de um período de Reinos Combatentes ainda mais confuso e cruel do que aquele das frágeis duas décadas estadunidenses. A definição de uma (nova) ordem internacional torna necessário estabelecer quem são os verdadeiros detentores da Força em condições de estabelecer níveis recíprocos de segurança e regras para evitar o retorno ao caos. Uma verdade desagradável que não desperta primados de popularidade: mas sem essa escolha, a possível cúpula se reduziria a uma fútil encenação, uma batalha para a plateia, um buraco na água, uma ilusão.
O poder de Trump, Putin e Xi, atômico ou não, está escrito nos fatos, e a Índia se acrescenta por suas ambições fundamentadas. E porque ter permanecido “neutra” sobre a Ucrânia entre a Rússia e a OTAN garante a Modi um papel de moderador e árbitro. Seria uma ideia patafísica pensar que entre os Quatro Grandes existe uma comunidade de valores cultivados por uns e por outros, esquecendo-se de que é justamente em nome desses valores que eles se excomungaram mutuamente. Mas certamente não se deve discutir entre eles sobre visões de mundo opostas, pretensões englobantes que muitas vezes derivam e levam ao caos.
Pois a única qualidade reconhecida a Trump é a do homem de negócios afeito a transações em busca do proveito, pode aceitar o que os apóstolos do Ocidente considerariam blasfemo, tréguas baseadas no uti possidetis (e o que mais?), esferas de influência, espaços neutralizados para evitar confrontos diretos. O material didático para acabar com os conflitos.
E a Europa? De um dia para o outro, nos descobrimos nus enquanto corríamos em direção a felicidades compulsórias, expostos quase sem defesa ao novo desafio pós-nuclear. A Europa está assistindo ao Grande Jogo dos Quatro Grandes como espectadora. Estes são tempos em que ser um gigante duplo, econômico pela graça do euro e moral pelo papel de guardião do templo dos direitos, é inútil diante da pergunta cínica: mas quantos tanques vocês têm? A União perdeu, no início da crise ucraniana, a possibilidade de propor um esquema simples de autoafirmação que teria servido como declaração de independência, ou seja, de se colocar em oposição ao império estadunidense e à Rússia prevaricadora, e de se tornar mensageira de uma multipolaridade inevitável na qual teria encontrado um papel; e um assento na mesa das negociações futuras. Mesmo sem tanques.
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Os quatro imperadores do mundo que ficaram para jogar a partida global. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU