21 Outubro 2024
O mundo está como que suspenso no ar aguardando o resultado das eleições presidenciais americanas, com mudanças políticas internacionais em correspondência com o sobe-desce das pesquisas (e de sua interpretação). Todos no aguardo do vencedor, na esperança de ter se alinhado com ele a tempo. Tudo como se o resultado das eleições fosse resolver a questão interna daquele país, da qual - gostemos ou não - os destinos do mundo ainda dependem em grande parte.
O artigo é de Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 20-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nós nos alimentamos dessa ilusão com uma fé que beira a magia - porque os Estados Unidos, mesmo depois das eleições presidenciais, continuarão sendo um problema: para si mesmos, em primeiro lugar; e depois, como consequência, para toda a frágil e instável rede das relações internacionais. Os políticos da Itália, da Europa e de todos os lugares deveriam estar cientes disso; mas, na realidade, ainda acreditem que quem vier a ocupar a Casa Branca resolverá todos os seus problemas de qualquer maneira.
Mas seja quem for o/a novo/a inquilino/a da residência presidencial de Washington não poderá fazer isso - uma cesura, essa, sem precedentes na ordem mundial pós-bélica e pós-Guerra Fria. Não poderá fazer isso porque se verá governando uma nação dividida em pedaços, já desgastada pela exaustiva guerra dos valores que pôs em campo para afirmar o domínio de um lado sobre o outro. Dando adeus àquela cultura democrática que os Estados Unidos pretenderam ensinar e impor em todos os cantos da terra.
Se os políticos podem se dar ao luxo de serem miseravelmente pragmáticos em relação aos alinhamentos, o mesmo não deveria acontecer com a Igreja Católica - principalmente aquela estadunidense. Se não se pode silenciar sobre os valores, mas apenas sobre aqueles não negociáveis (como se todos os outros beirassem a irrelevância), tampouco se pode silenciar sobre a violência verbal, a falta de escrúpulos sociais e a incoerência moral com que esses valores são politicamente postos em prática e/ou defendidos no espaço público.
O silêncio da Igreja Católica dos EUA em relação a essa violência verbal e ao ímpeto de estigmatização que arrasta consigo prejudica e coloca em risco aqueles mesmos valores de que grande parte do catolicismo estadunidense se ergueu a paladino em busca de seu messias.
A última cena dessa contradição não percebida foi o “Alfred Smith Memorial Foundation Charity Dinner”, realizado na última quinta-feira em Nova York. Organizado pela diocese do Card. Timothy Dolan, a noite proporcionou um púlpito a partir do qual Donald Trump pôde proferir seu sermão, carregado de ressentimento, violência e ataques pessoais, sem ser perturbado - sob os olhos complacentes de um cardeal da Igreja Católica responsável por uma das metrópoles mais importantes do mundo.
No discurso de Trump, há infinidade de opções para encontrar amplos e bons motivos pelos quais a Igreja Católica estadunidense não deveria ter oferecido a ele, numa bandeja de prata, a oportunidade de transformar uma noite de arrecadação de fundos para caridade em um comício político de mau gosto “Temos alguém na Casa Branca que mal consegue falar, mal consegue juntar duas frases coerentes e parece ter as faculdades mentais de uma criança. Trata-se de uma pessoa incapaz de fazer qualquer coisa, que não tem um mínimo de inteligência. Mas chega de falar de Kamala Harris”.
A tradição quer que, desde a década de 1960, quando Nixon e Kennedy compareceram juntos ao Charity Dinner, em anos de eleição presidencial ambos os candidatos são convidados - somente em 1996 a arquidiocese de Nova York decidiu não o fazer, muito provavelmente porque Clinton havia posto seu veto a uma lei que impedia o aborto em fase avançada (naquela ocasião, para manter o equilíbrio, o candidato republicano Bob Dole também não foi convidado). Com a mudança na candidatura democrata, Kamala Harris recusou o convite para comparecer, alegando motivos de agenda. Também é provável que ela tenha desistido do convite para evitar um confronto/embate com um ambiente tão hostil a ela quanto a Igreja Católica de seu país. Se certamente não era possível desconvidar Trump no último momento, também não é correto ter deixado passar sob o completo silêncio o conteúdo e o tom de seu discurso no Jantar Beneficente de Nova York.
Entretanto, a diocese e seu cardeal tiveram todo cuidado de não fazer isso. Terminando por colocar seu selo de aprovação não apenas no que Trump disse, mas também, e principalmente, em como ele o disse. Dando assim mais uma contribuição ao envenenamento do clima civil dentro da nação estadunidense. Batizar a linguagem de Trump dessa forma não é tanto alinhar-se politicamente, mas sim - e isso é muito mais grave - endossar a violência dos tons, e a violência contra as pessoas, como veículo apropriado para a prática pública dos valores que a Igreja americana vê encarnados na pessoa de Trump - que os concede com a magnanimidade que caracteriza a condescendência com que um imperador absoluto concede migalhas a seus súditos.
Dessa forma, em vez de uma ferramenta para solucionar a profunda divisão do país, a Igreja Católica nos EUA se torna parte integrante e veículo do próprio problema que os Estados Unidos se tornaram para si mesmos. Uma perda grave não apenas para o país, mas, de forma mais ampla, para a Igreja Católica como um todo - em particular, para os esforços diplomáticos da Santa Sé que visam restaurar um mínimo de ordem e coerência com o direito internacional para a geopolítica do caos que atualmente impera sobre o destino imediato do mundo.
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EUA: uma Igreja que não está à altura. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU