Gaza, Ucrânia e o desmoronamento da ordem mundial baseada em regras

Foto: Anadolu Agency

04 Outubro 2024

"O que está em jogo agora não é apenas a sobrevivência nacional da Ucrânia e da Palestina, mas também a sobrevivência do direito internacional e de tudo o que resta da decência humana básica. A violência e a brutalidade dos últimos dois anos devem nos impulsionar a todos – seja no Sul ou no Norte, no Oriente ou no Ocidente – a realizar uma introspecção honesta e profunda sobre o tipo de mundo em que queremos viver", escreve Chelsea Ngoc Minh Nguyen. Ele Trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) na Indonésia (2019-2022) e para a Comissão Econômica e Social das Nações Unidas para a Ásia e o Pacífico na Tailândia (2016-2017), em artigo publicado por Nueva Sociedad, 01-10-2024.

Ele questiona: "Que tipo de geopolítica, noções de soberania, direitos humanos e legalidade são necessários para superar os desafios atuais? Caso contrário, nos deslizaremos cada vez mais para o abismo de um mundo mais violento, niilista e sem alma, no qual os fracos são esmagados em benefício de uns poucos poderosos".

Eis o artigo.

A posição frente à guerra em Gaza revela, além de um duplo padrão das democracias ocidentais, uma ruptura mais profunda que não permite vislumbrar que a solidariedade com a Ucrânia conduza a uma ordem internacional mais justa. Mas não apenas o Norte global mostra uma profunda hipocrisia: os discursos antiocidentais do Sul também permitem justificar derivas culturalistas e reacionárias.

Os últimos dois anos foram testemunhas de acalorados debates sobre o papel do "Sul global" na política internacional, com um nível que não se via desde o início da década de 1980. No início de 2022, os países do Norte global criticavam a relutância do Sul em participar nas sanções unilaterais contra a Rússia, um país que invadiu seu vizinho — em uma clara violação do direito internacional — e desencadeou uma guerra que custou centenas de milhares de vidas. Com sua negativa em participar, segundo o argumento, os países do Sul global estavam priorizando, de maneira grosseira, seus próprios interesses estratégicos acima dos princípios de soberania, integridade territorial, democracia e direitos humanos.

Para o Sul global, no entanto, a principal questão desde 24 de fevereiro de 2022 tem sido: o apoio à causa do Ocidente na Ucrânia conduziria a uma ordem mundial baseada em regras mais igualitária e consistente, ou reforçaria o status quo hierárquico, caracterizado pela aplicação e cumprimento seletivos do direito internacional em diferentes conflitos e ocupações? A resposta a essa pergunta tem sido evidente desde que começou a última guerra de Israel contra Gaza, provocada pelo ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023. O resultado tem sido um contínuo colapso da confiança na chamada "ordem internacional baseada em regras", não apenas aos olhos do Sul global, mas também diante dos numerosos movimentos feministas, ambientalistas e de direitos humanos em todo o mundo, atônitos pelo tratamento que seus homólogos ocidentais dão aos palestinos.

A indignação popular se espalhou contra uma noção liberal e periférica de humanidade que valoriza a vida dos civis de maneira diferente em diferentes guerras e ocupações. Em 21 de novembro de 2023, após o cerco e a destruição por parte de Israel do Hospital Indonésio no norte de Gaza, a organização de ajuda indonésia que administrava o hospital, o Comitê de Resgate e Emergência Médica, publicou uma contundente carta aberta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na qual afirmava: "Você destruiu as regras do jogo internacionais, insultou a autoridade das Nações Unidas, despedaçou o senso de justiça, feriu os valores humanos e maculou o rosto da civilização humana"[1].

Em 21 de outubro de 2023, o rei Abdullah II da Jordânia falou contra a descarada renúncia do Ocidente ao direito internacional no que diz respeito ao povo palestino:

A mensagem que o mundo árabe está ouvindo é alta e clara. As vidas palestinas importam menos do que as israelenses. Nossas vidas importam menos do que outras vidas. A aplicação das leis internacionais é opcional. Os direitos humanos têm limites, param nas fronteiras, nas raças, nas religiões. Essa é uma mensagem muito, muito perigosa, pois as consequências da contínua apatia e inação internacional serão catastróficas. Para todos.[2]

Apesar das contradições internas e dos "interesses nacionais" divergentes que vários Estados do Sul global perseguem, os líderes, diplomatas e cidadãos ocidentais vivem em negação, enquanto continuam ignorando essa indignação e prestando, tácita ou abertamente, apoio incondicional à ocupação israelense. Ao aplicar um duplo padrão tão evidente, minam sua própria credibilidade aos olhos de bilhões de pessoas. De fato, as consequências a longo prazo dessa divisão Norte-Sul, cada vez mais profunda e persistente, serão graves.

A moral ocidental e a ilusão de reciprocidade

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, o Ocidente foi inequívoco em sua condenação, enquanto que, mesmo no Sul global, sob camadas de neutralidade oficial, a comoção e o repúdio se generalizaram. De fato, nos dias 2 e 24 de março de 2022, foram aprovadas na Assembleia Geral das Nações Unidas duas resoluções nesse sentido, baseadas no apoio generalizado – ou, pelo menos, na abstenção – do Sul global. Entre os principais abstencionistas, o desconforto com um apoio aberto à invasão russa foi resultado não apenas da inegável violação por parte da Rússia da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e do direito internacional, mas também do fato de que as sanções unilaterais do Ocidente e a utilização de várias instituições multilaterais e da economia global como armas (weaponization) – em meio à disputa por fontes alternativas de energia e de obtenção de divisas – deixariam ainda mais frágeis e debilitadas suas economias e sociedades, já afetadas pela pandemia de covid-19. Em março de 2023, o presidente queniano William Ruto explicou a oposição de seu país à invasão russa da seguinte maneira: "Não se trata do Norte ou do Sul global, mas do que é certo e do que é errado"[3]. No entanto, ele disse isso ao mesmo tempo em que compartilhava as reivindicações fundamentais do Sul global em relação ao atual sistema internacional, incluindo os compromissos inadequados de financiamento climático, o endividamento que limita os gastos com saúde e educação, e o "nacionalismo de vacinas" discriminatório e desperdiçador observado durante toda a pandemia de covid-19.

O governo da Ucrânia, por sua vez, reconheceu suas décadas de diplomacia medíocre com o Sul global, e, em 2023, houve uma expansão sem precedentes do engajamento além do mundo transatlântico. Particularmente dignas de nota foram as reuniões preliminares realizadas em Copenhague em junho de 2023, Jidá em agosto de 2023 e Malta em outubro de 2023, às quais assistiram conselheiros e negociadores de segurança nacional da China, Brasil, Índia, Arábia Saudita, África do Sul, Turquia e Catar, entre outros, como preparação para uma "cúpula de paz global" baseada no plano de paz de dez pontos da Ucrânia.

Em geral, as atitudes que condenaram a neutralidade do Sul global ou o apoio relutante à Ucrânia ofuscaram as percepções do Ocidente em 2022 e 2023. No entanto, os dados de exportação das principais economias da União Europeia revelaram um intenso intercâmbio comercial com a Rússia por meio de uma série de países terceiros, o que complica as acusações ocidentais de que os prolongados esforços de guerra russos são favorecidos, principalmente, pela cumplicidade do Sul global. Ao mesmo tempo, os diplomatas ocidentais e ucranianos fizeram grandes esforços para reunir apoios em todo o Sul global.[4] Tratava-se menos de enviar armas à Ucrânia em tempos de guerra e mais do imperativo de a Ucrânia desenvolver relações de longo prazo no Sul global, à luz do fato objetivo de que os acontecimentos geopolíticos, tecnológicos e econômicos do século XXI se concentrarão cada vez mais nessa parte do mundo.

Durante as reuniões de Copenhague, um funcionário da UE afirmou que qualquer paz justa na Ucrânia "deve ser baseada nos princípios da Carta das Nações Unidas e nas leis internacionais relativas à integridade territorial e à soberania". No entanto, essa certeza política e moral por parte do Norte global, que aparentava ser sólida como uma rocha frente à guerra da Rússia contra a Ucrânia, pareceu evaporar com a guerra de Israel contra Gaza e a escalada da violência na Cisjordânia.

Da mesma forma, em 2015, França e México propuseram conjuntamente restringir o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU em casos de genocídio abjeto e crimes contra a humanidade. A proposta apelou a um caráter de urgência e obteve um apoio internacional mais amplo após a invasão russa da Ucrânia, e, em julho de 2022, foi apoiada por 106 Estados-membros da ONU, incluindo a Ucrânia. No entanto, até hoje, a França continua sendo o único membro permanente do Conselho de Segurança que a apoia, e o impulso alcançado se desmoronou após a represália coletiva contra os civis palestinos e a devastação sem precedentes de Gaza que começou a se desenvolver após 7 de outubro de 2023.

Entretanto, talvez o desvio mais devastador do ponto de vista moral e jurídico tenha sido o total apoio diplomático, financeiro e militar do Ocidente ao ataque punitivo de Israel em toda a Palestina. As reações contrastantes do Ocidente à invasão russa da Ucrânia e os riscos de uma ocupação israelense prolongada e ampliada sobre o povo palestino colocaram fundamentalmente em dúvida se os gestos de cooperação tácita do Sul global em relação à Ucrânia durante os últimos dois anos se traduzirão algum dia em reciprocidade da Ucrânia e do Ocidente em relação a outras questões prementes que afetam o Sul global, incluindo (mas não se limitando à) questão da Palestina.

Empatia pela Ucrânia, apatia por Gaza

Em uma tentativa de justificar a violência contra uma população sitiada, tanto governos poderosos quanto meios de comunicação influentes emitiram retratos desumanizadores dos civis palestinos, incluindo crianças. Nas palavras da Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA, na sigla em inglês), "os habitantes de Gaza sentem que não são tratados como outros civis. Sentem que o mundo está equiparando todos eles ao Hamas"[5].

Essas representações fazem parte de um padrão mais amplo de apatia interminável em relação ao sofrimento palestino. Esse padrão soa tragicamente semelhante às justificativas da Rússia para invadir a Ucrânia, citando uma suposta necessidade de "desnazificar" a população ucraniana e incorporá-la ao "mundo russo". Aos olhos da Rússia e de Israel – forças de ocupação segundo o direito internacional –, tanto o sentimento de nação ucraniano quanto o palestino são falsos e só podem ser redimidos por meio de uma "libertação" civilizatória através do extermínio. Esse desprezo pelas justificadas aspirações e pelas genuínas reivindicações políticas, tratando os movimentos de resistência locais como meros fantoches de potências geopolíticas nefastas, muitas vezes justificou, em diferentes momentos históricos, uma destruição incalculável, como ocorreu durante a Guerra do Vietnã (1955-1975).

Em 27 de outubro de 2023, após a aprovação de uma resolução da Assembleia Geral da ONU que exigia uma trégua humanitária e a proteção dos civis em Gaza, Malásia e Indonésia, que votaram a favor das resoluções sobre a Ucrânia em 2022, criticaram as respostas contrastantes da Ucrânia e do Ocidente, fazendo comparações diretas entre os apelos dos civis na Ucrânia e na Palestina. Nas palavras de um diplomata indonésio: "Aqueles que não apoiaram esta resolução são os que gritam alto pelas vítimas civis na guerra da Ucrânia. Lamentavelmente, não reconhecem as vítimas civis, especialmente as crianças, que foram massacradas em combates completamente desproporcionais em Gaza".

O segundo aniversário da invasão russa chegou em um momento de hesitação no impulso global em favor da Ucrânia e do Ocidente. Em 24 de fevereiro de 2024, os países do Norte global se abstiveram de maneira incomum de apresentar uma nova resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas em apoio à Ucrânia, em grande parte por temerem que fosse confirmada a diminuição do apoio a esse país em todo o mundo. Essas resoluções não vinculantes, que têm poucas implicações práticas ou aplicação, buscam, no entanto, mobilizar e manter a relevância global para a duradoura causa da Ucrânia. A mesma abordagem tem sido crucial para a luta política e legal dos palestinos, como demonstram as mais de 180 resoluções da ONU relacionadas à Palestina aprovadas desde 1948.

No Diálogo Raisina, realizado em Nova Déli em 24 de fevereiro de 2024, vários funcionários da UE sustentaram que as compras indianas de combustível russo com desconto estavam "produzindo balas russas", enquanto ignoravam seu próprio apoio à carnificina de Israel em Gaza. Essa cena serve como um caso exemplar de um ponto mais crucial: entre os principais países que no início tinham razões suficientes para apoiar simbolicamente a Ucrânia na ONU, os votos da Ucrânia e do Ocidente sobre Gaza e o tratamento da questão palestina "não serão esquecidos"[6]. Mais do que uma sensação de traição em si, os eventos dos últimos seis meses parecem confirmar um oportunismo sem princípios, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Nesse sentido, a posição de quem se absteve no caso da Ucrânia, sob um ponto de vista geopolítico estratégico, independentemente de suas justificativas morais e legais, pode de fato ter sido justificada.

A intervenção da Ucrânia na situação global atual

Em nossa era de novas rivalidades entre grandes potências, a mensagem que emana de nações menores como Palestina e Ucrânia é que, ao contrário da despolitizada era da globalização econômica capitalista (1991-2020), as aspirações políticas há muito reprimidas, e de fato a própria história, retornaram ao cenário mundial. Elas já não podem ser ignoradas em nome do comércio internacional, da liberdade de navegação e da estabilidade da ordem "baseada em regras". No entanto, existem diferenças cruciais na natureza ideológica dos conflitos na Palestina e na Ucrânia: insistir em uma aplicação mais igualitária e consistente do direito internacional em diferentes guerras e ocupações, ou revitalizar uma decadente noção liberal de seletividade hierárquica em sua aplicação. Nesse sentido, a Ucrânia, junto com o restante do Ocidente, tem grande responsabilidade por seu atual isolamento diplomático.

Após o assassinato de cerca de 1.200 civis e soldados israelenses pelas mãos do Hamas em 7 de outubro de 2023, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, deixou clara a posição de seu país ao se posicionar ao lado de Israel de uma maneira que foi além de uma legítima condenação ao ataque. Em inúmeras declarações feitas entre 7 e 17 de outubro de 2023, Zelensky descreveu o prolongado conflito palestino-israelense em termos de um quadro beligerante de "guerra contra o terrorismo", em vez de focar nos contextos histórico e legal, e na escalada da situação no período anterior ao ataque[7]. Como insinuou corajosamente o secretário-geral da ONU, António Guterres, em 25 de outubro de 2023, a história do conflito começou há 56 anos. Mas antes de 7 de outubro, 2023 já havia sido o ano mais mortal da última década na Palestina, e a organização Save the Children o descreveu como o ano mais mortal registrado para as crianças palestinas na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Enquanto isso, o atual número de vítimas fatais de mais de 8.000 crianças em Gaza desde o início da guerra (o número final quase certamente será muito maior) pode fazer qualquer pessoa com consciência sentir tanto angústia quanto indiferença.

No entanto, o Estado ucraniano, desde o seu escritório presidencial até as Forças Armadas, imediatamente fez equivalências entre Ucrânia e Israel, e entre Hamas e os civis palestinos. O escritório das Forças Armadas da Ucrânia publicou um vídeo que retrata Israel e Ucrânia travando guerras em defesa da "civilização". Na prática, incentivou-se uma maior escalada da violência. Isso contrasta nitidamente com as respostas imediatas de Singapura e Quênia, ambos parceiros próximos de Israel em matéria de defesa e segurança, que, no entanto, exigiram uma desescalada de ambas as partes e votaram a favor de um cessar-fogo na ONU em 27 de outubro de 2023.

Em 13 de outubro de 2023, Andriy Yermak, assistente de Zelensky, publicou um artigo de opinião no qual expôs sem ambiguidade "por que a Ucrânia apoia Israel". Isso foi publicado no mesmo dia em que Israel pediu à ONU que transferisse à força 1,1 milhão de pessoas do norte de Gaza em um prazo de 24 horas, uma jogada amplamente condenada como uma tentativa de limpeza étnica, ou algo que bem poderia equivaler a um genocídio, segundo uma avaliação provisória da Corte Internacional de Justiça (CIJ). Nem o pessoal, nem os pacientes, nem os recém-nascidos foram poupados e, para muitos, a transferência acabou sendo uma sentença de morte. Mesmo a Noruega e a Irlanda, dois parceiros próximos dos Estados Unidos, exigiram imediatamente moderação por parte de Israel e ressaltaram que os palestinos estavam sofrendo tanto quanto os israelenses. Nas palavras do Ministério dos Negócios Estrangeiros irlandês: "Nas leis dos conflitos armados, não existe qualquer hierarquia em relação à dor e ao sofrimento". Além dos aliados e parceiros de Israel em todo o Ocidente, nenhum outro líder de um país que reconhece formalmente a Palestina como Estado apoiou tanto as represálias desenfreadas de Israel quanto Zelensky. No entanto, como revelou uma pesquisa ucraniana de 15 de dezembro de 2023, isso vai além do presidente ucraniano: as ações militares de Israel desfrutam de um amplo respaldo dentro da sociedade ucraniana, que as vê como "a escolha por um mundo democrático e livre contra um mundo de terror medieval"[8].

Ucrânia e Ocidente começaram a expressar tardiamente sua preocupação humanitária pelos civis palestinos em 17 de outubro, somente após um ataque israelense em Gaza apagar 825 famílias inteiras do registro civil de Gaza. O ápice disso foi alcançado em 31 de janeiro de 2024, quando o enviado da Ucrânia na ONU, Sergiy Kyslytsya, posou ao lado do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e de um punhado de outros enviados da ONU em um apelo conjunto para desfinanciar e substituir a UNRWA, apesar do nível apocalíptico de devastação em Gaza e da escalada da violência dos colonos na Cisjordânia[9].

A cena contrastava nitidamente com a quantidade de países de renda média e baixa que generosamente fizeram doações para a Ucrânia no auge da invasão russa por meio de várias agências da ONU, às vezes sob pressão ocidental. Esses países também testemunharam como, ao longo de 2022-2023, uma importante ajuda ocidental para o desenvolvimento em áreas-chave (desde energias renováveis até educação) foi abruptamente cortada, já que os fundos foram desviados para apoiar os refugiados vindos da Ucrânia e para a sobrevivência do país em tempos de guerra. Esse tipo de jogo de soma zero explica por que muitos governos e povos do Sul global não compartilham a ilusão de que o fim da guerra russo-ucraniana produzirá uma "ordem baseada em regras" mais igualitária e consistente.

Isso se manifestou simbolicamente na votação da Assembleia Geral das Nações Unidas de 14 de novembro de 2022 sobre o estabelecimento de um "mecanismo internacional de reparações" para obrigar a Rússia a pagar reparações de guerra à Ucrânia: 94 países votaram a favor, enquanto 87 se abstiveram ou votaram contra. Muitos entendem que é improvável que esse mecanismo seja invocado em outras guerras ou ocupações; em outras palavras, que isso serve a uma justiça seletiva. Não se trata tanto da aplicação de duplos padrões como tais (dos quais nenhum país está isento), mas sim dos padrões das próprias democracias autoproclamadas. O resultado é uma acelerada perda de atenção e apoio à causa da Ucrânia.

O momento do Sul global?

As ações tanto da Rússia quanto da Ucrânia são sintomas, antes que causas, de uma crise geral na política internacional contemporânea, em que a própria libertação exige a desumanização das vítimas civis de outras guerras, ocupações e regimes opressivos. Por sua vez, a violência da unipolaridade – ou seja, a tentativa de rejuvenescimento de uma ordem aparentemente liberal e hierárquica baseada em regras – é contrabalançada pela violência da multipolaridade, em que apenas importam a política e a intervenção das grandes potências emergentes e suas elites governantes predominantemente conservadoras.

As guerras que estão ocorrendo em Gaza e na Ucrânia servem como um lembrete comovente de que a forma como os conflitos são retratados busca, em última análise, garantir o lugar de cada um no lado privilegiado de uma ordem mundial que já é profundamente desigual. Na verdade, isso constitui a tragédia atual do Sul global: embora estejam justificadamente indignados com as duplas medidas do Ocidente, esses mesmos países continuam incapazes de conceber coletivamente um modo de governo mais universalista e progressista, seja dentro de suas fronteiras ou no exterior. Nesse sentido, a crítica ao Ocidente por si só costuma se transformar em retrógrada.

Nesse contexto, o caso da África do Sul contra Israel perante a CIJ foi visto com bons olhos, como uma rara exceção à maré de realismo pós-colonial[10], caracterizado desde 1991 pela busca de "interesses nacionais" e imperativos despolitizados de desenvolvimento e segurança em todo o Sul global. Em consequência, muitos observadores viram as medidas provisórias anunciadas pela CIJ em 26 de janeiro de 2024 como "um momento de importância para o Sul global". Esse sentimento está em parte justificado: para muita gente comum ao redor do mundo, a empatia com o povo palestino é também um protesto contra a apatia de seus próprios governos e suas políticas exteriores cinicamente transacionais. No entanto, justifica-se certo grau de ceticismo realista em relação a esse sentimento.

O fato é que a coragem da África do Sul deve ser apreciada em contraste não apenas com a cumplicidade do Ocidente, mas também com o enfoque calculado e morno das potências globais emergentes. Muitos governos em todo o Sul global já não agem por imperativos democráticos e igualitários, como fizeram (pelo menos aparentemente) durante a maior parte do século XX. A política contemporânea por trás dos termos "Sul global" e "descolonização" tem sido cada vez mais capturada por governos e forças políticas de direita, e as lutas transnacionais do passado por igualdade e justiça política, econômica e social contra as insatisfações do universalismo liberal, as rivalidades imperiais e o capitalismo global foram substituídas pelo particularismo civilizatório e o culturalismo. A política externa da Índia, outrora definida por sua herança anticolonial, está passando por uma profunda transformação ideológica, enquanto este país tem criado uma retórica profundamente desumanizadora contra os palestinos. Muitos governos do mundo árabe continuam cautelosos em seu apoio à Palestina, conscientes de que a questão ainda é um potencial catalisador para críticas internas. Também não se deve subestimar a prolongada desunião dentro da liderança política palestina.

Na Ásia, Índia e Vietnã são talvez os únicos países que desfrutam de relações sólidas com EUA, Israel, Rússia e Irã simultaneamente, apesar de sua tradicional solidariedade anticolonial com a Palestina. Enquanto o Vietnã lutava pela libertação nacional, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) ofereceu-lhe um apoio inabalável em suas guerras com os EUA (1965-1973), os Khmer Vermelhos (1979-1989) e a China (1979-1989). Como resultado, ao contrário da Índia, o Vietnã tem votado consistentemente na ONU a favor de um cessar-fogo em Gaza e prometeu apoio diplomático e financeiro à UNRWA. Mas, além de suas proclamações formais de apoio ao Estado palestino, sua resposta geral ao ataque de Israel tem sido marcada por uma incomum mornidão e, por vezes, um silêncio inquietante. Enquanto as evocações à libertação nacional do Vietnã e os movimentos globais que protestavam contra a guerra nas décadas de 1960 e 1970 não têm feito mais do que se intensificar em todo o mundo desde 7 de outubro, essas referências permanecem quase ausentes nos discursos do governo vietnamita, na cobertura dos meios de comunicação estatais e nos debates públicos. Juntamente com a crescente cooperação bilateral em matéria militar e de segurança, o Vietnã se tornou, em julho de 2023, o segundo país do Sudeste Asiático a assinar um acordo de livre comércio com Israel. Enquanto o Vietnã anunciava que sua Assembleia Nacional ratificava o acordo em 27 de fevereiro de 2024, continuava o massacre em toda a Palestina[11]. Se Ernesto "Che" Guevara declarava em 1967 que "o Vietnã, essa nação que representa as aspirações, as esperanças de vitória de todo um mundo preterido, está tragicamente só", hoje o Vietnã foi substituído pela Palestina.

O caso da África do Sul contra Israel lembra os padrões do século XIX segundo os quais, nas palavras da historiadora do direito Ntina Tzouvala, "os advogados internacionais não ocidentais subscreviam a lógica da melhoria e abraçavam incondicionalmente o processo de transformação capitalista", enquanto "os mesmos advogados desafiavam a autodesignação de seus colegas ocidentais como únicos árbitros do processo de civilização"[12].

Desde então, essas tensões têm ressurgido periodicamente. Além disso, embora o Conselho de Segurança da ONU tenha estado paralisado pelas rivalidades entre as grandes potências e tenha sido incapaz de lidar com abjetos crimes de guerra em todo o mundo, várias agências e funcionários da ONU no terreno têm se oposto à violência organizada contra o povo palestino. O que esses fenômenos simultâneos dizem sobre o futuro é que os principais países do Sul global se tornarão mais audazes ao reivindicar o direito internacional, tentando contrabalançar as formas pelas quais ele tem sido convertido em uma arma ou renunciado com impunidade, como se vê de maneira mais evidente na Palestina. Em outras palavras, o direito internacional como fundamento normativo de qualquer reivindicação de legitimidade e justiça continuará sendo uma ferramenta vital, especialmente para o Estado palestino. O Sul global, apesar de suas próprias contradições e preconceitos, tem aqui um papel importante a desempenhar.

A lenta decadência do humanismo liberal

A resposta do Ocidente à invasão russa da Ucrânia pode acabar sendo lembrada como uma tentativa fracassada de revitalizar uma ordem liberal "baseada em regras", decadente, seletiva e hierárquica. A última guerra entre israelenses e palestinos, por outro lado, poderá ser lembrada como a guerra que mudou o mundo, porque também mudou os corações e as mentes de seus seguidores liberais em todo o Sul global. Não é tanto uma questão de Ocidente ou Oriente, mas sim do humanismo liberal, que morreu como tal. Quando os corações e as mentes mudam silenciosamente sob a superfície de uma ordem liberal poderosa e resiliente, então já se começou, de forma inevitável, a imaginar e preparar uma alternativa viável, mesmo que inconscientemente.

Em muitos sentidos, este momento lembra as lamentações de intelectuais, ativistas e estadistas anticoloniais pela traição do Norte global ao humanismo liberal em relação à autodeterminação das nações no século XX. Se as horríveis imagens da Guerra do Vietnã e os subsequentes movimentos antibélicos constituíram um momento crucial em todo o mundo, então a matança que está sendo perpetrada na Palestina e os protestos globais contra ela podem constituir outro momento semelhante. Poderia ter implicações transformadoras para a percepção que a maioria global tem dos valores e princípios do Norte global, e dar impulso a um novo mundo, multipolar e anárquico, para o qual ninguém está preparado.

O que está em jogo agora não é apenas a sobrevivência nacional da Ucrânia e da Palestina, mas também a sobrevivência do direito internacional e de tudo o que resta da decência humana básica. A violência e a brutalidade dos últimos dois anos devem nos impulsionar a todos – seja no Sul ou no Norte, no Oriente ou no Ocidente – a realizar uma introspecção honesta e profunda sobre o tipo de mundo em que queremos viver. Que tipo de geopolítica, noções de soberania, direitos humanos e legalidade são necessários para superar os desafios atuais? Caso contrário, nos deslizaremos cada vez mais para o abismo de um mundo mais violento, niilista e sem alma, no qual os fracos são esmagados em benefício de uns poucos poderosos.

Notas

[1] - Comité de Resgate e Emergência Médica: "Carta aberta ao presidente dos Estados Unidos Joe Biden", 20/11/2023

[2] -"Discurso de Sua Majestade o Rei Abdullah II na Cúpula de Paz do Cairo", Cairo, 21/10/2023

[3] -"Presidente do Quênia William Ruto pede o fim da guerra na Ucrânia" na DW, 28/3/2023.

[4] -Robin Brooks: "As exportações da Alemanha para o Quirguistão aumentaram 1200% desde antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. Esse material está obviamente indo para a Rússia. Em toda a UE, esse é um problema generalizado. As exportações da Polônia subiram 1800%, da República Tcheca 1200%, da Itália 870%, da Áustria 340% e da Espanha 140%. Putin obviamente adora isso", tuíte, 7/2/2024

[5] - "Reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU sobre a situação no Oriente Médio, incluindo a questão palestina", 30/10/2023

[6] - Richard Gowan, Devika Manish Kumar e Maya Nicholson: "A ONU já não é mais o centro de gravidade na guerra diplomática da Ucrânia" em World Politics Review, 22/2/2024.

[7] - Presidência da Ucrânia: "Quando terroristas atacam, todos que valorizam a vida devem se unir – Discurso do presidente da Ucrânia", 7/10/2023.

[8] - Instituto Internacional de Sociologia de Kiev: "Com quem os ucranianos simpatizam no conflito israelo-palestino: resultados de uma pesquisa telefônica conduzida de 29 de novembro a 9 de dezembro de 2023", comunicado de imprensa, 15/12/2023

[9] - Primeiro-Ministro de Israel: "PM Netanyahu: 'Precisamos de uma entidade como essa hoje em Gaza. Mas a UNRWA não é essa entidade. Ela deve ser substituída por alguma organização ou organizações que façam esse trabalho'", tuíte, 31/1/2024

[10] - Happymon Jacob: "Como frustrar a tentativa da China de liderar o Sul global" em Foreign Affairs, 5/12/2023.

[11] - "Vietnã e Israel assinam tratado de livre comércio" em Vietnam Plus, 25/7/2023.

[12] - N. Tzouvala: Capitalism as Civilisation: A History of International Law, Cambridge UP, Cambridge, 2020.

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