26 Setembro 2024
"O Papa vai muito além da antiga modalidade de interpretar a relação entre as religiões em termos conflitantes e segundo uma lógica binária, de modo que se a minha religião é verdadeira, as outras são falsas; ao contrário, como ensina o Vaticano II e como previu Justino Mártir desde os primórdios do cristianismo, nas outras religiões não estamos diante de falsidades e feiuras, mas a sementes do Verbo, porque o que há de verdadeiro, justo e belo que pode ser encontrado alhures sempre está ligado ao Logos", escreve Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, em artigo publicado por Avvenire, 22-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A viagem do Papa ao Oriente nos lembrou da necessidade de diálogo em uma perspectiva mística, na qual a unidade prevalece sobre o conflito, sem relativizar a verdade, mas considerando-a polifônica e sinfônica.
Entre os momentos mais significativos da recente viagem do Papa Francisco ao Extremo Oriente, pode-se colocar, com razão, o encontro com os jovens na sexta-feira, 13 de setembro, em Singapura. Naquela ocasião, o Bispo de Roma disse:
“Uma das coisas que mais me impressionou em vocês jovens, em vocês aqui, é a capacidade de diálogo inter-religioso. E isso é muito importante, porque se vocês começarem a discutir: ‘Minha religião é mais importante que a sua...’, ‘A minha é a verdadeira, a sua não é verdadeira...’. Aonde isso vai levar? Para onde? Alguém responda, para onde? [alguém responde: ‘À destruição’]. É assim. Todas as religiões são um caminho para chegar a Deus. Elas são - faço uma comparação - como diferentes idiomas, diferentes línguas, para chegar lá. Mas Deus é Deus para todos. E pelo fato de Deus ser Deus para todos, somos todos filhos de Deus.
‘Mas o meu Deus é mais importante do que o seu!’ Isso é verdade? Existe apenas um Deus, e nós, as nossas religiões, somos línguas, caminhos para chegar a Deus. Alguns sikhs, alguns muçulmanos, alguns hindus, alguns cristãos, mas são caminhos diferentes. Entenderam?”
Essas afirmações exigem um aprofundamento teológico à luz do pensamento mais recente, do diálogo entre as religiões e do contexto em que foram proferidas. Aqueles que gritaram escândalo pelo sincretismo, considerando que o ditado de Francisco está em descontinuidade com o magistério eclesial, esquecem a declaração do Concílio Vaticano II Nostra Aetate, na qual os aspectos positivos das diferentes filiações religiosas são avaliados, sem obviamente negar a singularidade de Cristo, o salvador da humanidade. Se essa salvação de forma ordinária é haurida na Igreja Católica, ainda assim as formas extraordinárias pelas quais Deus salva as pessoas são conhecidas somente por Ele, como atesta a Comédia de Dante, mesmo na injustamente considerada obscura Idade Média: “Mas tu quem és, que, em tribunal sentado, Julgas, de léguas em milhões distante, Se mal vês o que a um palmo é colocado” (Paraíso XIX, 79-81). Assim, a águia se dirigia ao poeta que apresentava a pergunta sobre a salvação dos não crentes.
A justificação, portanto, pertence ao horizonte do mistério, como no título de uma importante e monumental obra teológica, sobre a qual nos formamos: Mysterium salutis, publicada no imediato pós-concílio.
Em seu recente discurso, o Papa vai muito além da antiga modalidade de interpretar a relação entre as religiões em termos conflitantes e segundo uma lógica binária, de modo que se a minha religião é verdadeira, as outras são falsas; ao contrário, como ensina o Vaticano II e como previu Justino Mártir desde os primórdios do cristianismo, nas outras religiões não estamos diante de falsidades e feiuras, mas a sementes do Verbo, porque o que há de verdadeiro, justo e belo que pode ser encontrado alhures sempre está ligado ao Logos. Assim como a Nostra Aetate, na Universidade Lateranense, na qual tive a oportunidade de servir por mais de trinta anos, o teólogo tcheco Vladimir Boublik inaugurou aquela que em 1974 (há cinquenta anos) ele chamou de teologia das religiões. Um campo minado que também viu momentos de conflito e grande dificuldade, como os experimentados pelo jesuíta Jacques Dupuis, com seu Rumo a uma teologia crista do pluralismo religioso (Paulinas, 2000).
Nessas tomadas de posição, assim como naquela expressa pelo bispo de Roma, pode-se perceber o eco do De pace fidei de Nicolau de Cusa. O texto que leva esse título foi inspirado na conquista de Constantinopla pelos turcos, cuja notícia chegou ao Ocidente em 29 de junho de 1453, acompanhada de descrições eloquentes das atrocidades cometidas pelos turcos naquela ocasião.
A atualidade do texto emerge claramente da tentativa de manter o diálogo entre as religiões e a temática da paz. O cerne da reflexão de de Cuso encontra-se na fórmula uma religio in rituum varietate, que não deve ser interpretada no sentido de uma referência a uma espécie de metarreligião, como na perspectiva de René Guenon sobre o que ele chama de “a unidade transcendente das religiões”, não sem um certo sincretismo, nem em sentido propriamente convencional ou confessional.
Já em 1966, Wilhelm Hendrik van de Pol anunciava o fim do cristianismo convencional em um volume de sucesso com esse título. Hoje devemos constatar, por uma série de razões que estão diante dos olhos de todos e povoam as mídias, que o convencionalismo cristão e católico não está morrendo e se repropõe, não sem violência, em posições fundamentalistas e integralistas de diferentes filiações, representadas por aqueles que execram o sincretismo em vez de colocar-se sinceramente à escuta do que afirma Francisco. Trata-se, no que diz respeito ao pensamento de de Cuso, de um “cristianismo universal”, ou seja, etimologicamente “católico”, que, como tal, não anula as diferenças, mas tende a compreendê-las e incluí-las. Assim, Paulo, a quem o De pace fidei concede a última palavra, no diálogo no céu entre os sábios das diversas religiões, afirma que “[...] admitindo uma certa variedade, aumentará também a devoção, na medida em que cada povo se esforçará, com diligência e zelo, por tornar mais esplêndido o próprio rito, competindo com os outros povos para alcançar assim maior mérito junto a Deus e o louvor do mundo”. Finalmente, depois de examinar os livros dos mais ilustres estudiosos, “descobriu-se que todas as divergências eram mais sobre os ritos do que sobre o culto do único Deus”. E isso se deve ao fato de que “todos os homens, desde o início, sempre pressupuseram um único Deus e o adoraram em todas as formas de culto, embora o povo simples muitas vezes não percebesse isso, por estar distraído pelo poder adverso do príncipe das trevas”. É uma questão - como observaram comentaristas atentos - de uma perspectiva mística, poderíamos dizer de inclusivismo místico-especulativo, que difere tanto do exclusivismo quanto do pluralismo relativista e na qual a unidade prevalece sobre o conflito e a diversidade, sem tornar igual ou relativizar a verdade, mas considerando-a precisamente polifônica e sinfônica, em vez de monótona e, portanto, cacofônica.
Tampouco deve escandalizar o fato de que os papas, em seu magistério e em diferentes tempos, tenham destacado diferentes aspectos do mistério da salvação, enfatizando, por exemplo, com João Paulo II e o então cardeal Joseph Ratzinger, a unidade/unicidade do evento cristológico em relação ao pluralismo indicado pelo teólogo belga Jacques Dupuis, com Francisco, a pluralidade e a necessidade do encontro com a experiência religiosa subjacente às diferentes filiações como base para o diálogo, a fim de evitar confrontos e fundamentalismos que acabam alimentando os conflitos, até mesmo armados. Como de Cusa mais uma vez diria, trata-se do “paradoxo” próprio do cristianismo (coincidentia oppositorum, em sua linguagem), segundo o qual a unidade não se opõe à pluralidade, nem vice-versa, no que diz respeito à fé no Deus uno e trino que Jesus de Nazaré revelou.
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Do confronto ao encontro entre as religiões. Artigo de Giuseppe Lorizio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU