18 Fevereiro 2021
"Uma coisa é afirmar dificuldades para viver a Campanha da Fraternidade Ecumênica, reconhecer limites no texto base, ver pedras no caminho do diálogo. Outra coisa é negar in totum a proposta da Campanha, como fazem alguns. Não se pretende tirar as pedras do caminho, mas interromper a caminhada. E utiliza-se as pedras para construir muros e atacar com atitudes irreflexas, ultraconservadoras, fundamentalistas, xenofóbicas. Quem assim age, não faz apenas uma hermenêutica divergente do magistério eclesial, mas busca sua invalidação", escreve Elias Wolff, professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Teologia – PUCPR, que realizou estágio pós-doutoral em Teologia pela Lutheran School of Theology em Chicago e atualmente colabora com o Conselho Mundial de Igrejas como membro da Rede Ecumênica Ecumênica da Água.
Toda Campanha da Fraternidade tem valor, e mais ainda se for ecumênica! De um lado, as igrejas que no Brasil promovem a quinta edição da Campanha da Fraternidade Ecumênica neste ano de 2021, expressam coerência com o Evangelho que exige um testemunho comum da fé em Cristo e da prática do amor no mundo em que vivemos. De outro lado, é um contrassenso ter que realizar “campanhas” para conscientizar o valor de algo que já deveria ser uma realidade em nosso meio: a fraternidade. A pertença de todas as pessoas e etnias à mesma natureza humana deveria, de per si, assegurar a fraternidade universal entre os povos. E como o papa Francisco na Encíclica Laudato Si', n. 16, nos conscientiza de que “tudo está estreitamente interligado”, isso deveria fazer com que as relações entre o ser humano e a totalidade da criação assegurassem também a fraternidade criatural. Mas não é o que acontece. Tanto as atitudes discriminatórias e preconceituosas e xenofóbicas entre pessoas, etnias, culturas e credos, quanto a fragilização dos biomas e dos ecossistemas pela exploração inescrupulosa dos recursos naturais, mostram que estamos distantes de uma cultura da fraternidade, entre nós humanos e de nós para com toda a criação. Os muros são levantados cotidianamente, formando guetos socioculturais e religiosos no mundo em que vivemos.
Por isso, urge favorecer toda iniciativa que possibilite o encontro, o diálogo, a interação e a cooperação entre as diferenças, sejam elas socioculturais ou religiosas. É preciso criar a “cultura do encontro numa harmonia pluriforme” (Evangelii gaudium, n. 220). Isso tem urgência no contexto de globalização que, por um lado, aproxima os povos, suas culturas, seus estilos de vida e suas formas de crer. Por outro lado, manifesta ambiguidades que deixam claro que nem toda aproximação significa convivência pacífica, interação, enriquecimento mútuo. Se, de um lado, crescem as possibilidades para melhor conhecer e admirar o outro; por outro lado, há quem alimente tensões e conflitos que fazem com que as diferenças se excluam mutuamente. Em contexto de pandemia do novo coronavírus e da COVID-19, ficou mais transparente como a proximidade entre as pessoas e os povos pode tanto gerar relações de fraternidade, quanto disseminar vírus.
Isso mostra que o mundo globalizado tem sérias ambiguidades. A raiz delas está na lógica do sistema financeiro e mercadológico que rege a globalização. Essa lógica busca manter a hegemonia de impérios que se sustentam por novos modos de colonizar os povos. Com isso se homogeneíza estilos de vida; se uniformiza comportamentos pelo consumo dos mesmos produtos econômicos e culturais; as pessoas são valorizadas pelos bens adquiridos e as etiquetas que expõe dos produtos que consomem. Na sociedade consumista, afirma-se a tese darwiniana da seleção das espécies. E gera-se a cultura do descarte da pessoa empobrecida, idosa, ou com alguma enfermidade que a impede de produzir e consumir. A geografia econômica e social das nações mostra isso. Em nosso país 29% das famílias consomem 46% dos alimentos produzidos [1], o que mostra que os bens de consumo são produzidos a um público seleto. O Brasil é planejado para poucos.
A consequência é o agravamento das divisões sociais. As estatísticas falam por si: temos hoje no Brasil em torno de 14 milhões de desempregados; dados do IBGE publicados em 17/09/2020, mostram que 10,3 milhões de brasileiros/as sofrem com a insegurança alimentar [2]; 11 milhões de brasileiros são analfabetos - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua Educação, publicada em 15/07/2020 [3]?; outras 222 mil vivem nas ruas [4]. Isso tudo acirra situações de violência em todas as formas, com agravante aumento da violência doméstica e do feminicídio.
Essa realidade, por si só, justifica a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. Nada do que é humano nos deixa indiferentes. Mas como ação ecumênica e de Igrejas, a Campanha da Fraternidade não se justifica apenas sociologicamente. Suas razões de fundo são doutrinais, teológicas, espirituais e pastorais. O ecumenismo se fundamenta na fé em Cristo que quer que todas as pessoas que acreditam nele vivam unidas (Jo 17, 21). A unidade é dom do próprio Cristo que “derruba o muro da divisão” (Ef 2,14). E então as pessoas cristãs dão ao mundo testemunho do amor cristão que as tornam “um em Cristo” (Gl 3,28); “somos um só corpo em Cristo, e cada membro está ligado a todos os outros” (Rm 12, 5). Essa unidade não é para formar um clube de amigos, ou um corporativismo ideológico, mas para fortalecer a missão de proclamar o Evangelho ao mundo (Mt 28, 19), testemunhando o amor de Deus à toda a humanidade e promovendo a “vida em abundância” (Jo 10, 10). A comunhão das Igrejas na fé em Cristo se expressa concretamente no amor solidário a exemplo do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). Fraternidade é um compromisso de amor, como Jesus nos orienta nas Bem Aventuranças: “Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40). Assim, a Campanha da Fraternidade Ecumênica expressa de um modo privilegiado a autenticidade da fé no Deus que é Amor (cf. 1Jo 4,8) e nos irmana em Cristo. Por isso cristãos e cristãs de diferentes igrejas afirmam conjuntamente: “Cristo é nossa paz” (cf. Ef 2,14).
Tal é o que afirma o papa João Paulo II no n. 10 da Encíclica Ut Unum Sint (UUS): “Os fiéis católicos enfrentam a questão ecumênica com espírito de fé”. É uma fé eclesial, uma vez que “querer a unidade significa querer a Igreja” (UUS, n. 9). Todas as Igrejas envolvidas na Campanha da Fraternidade têm orientações concretas para seus membros viverem o ecumenismo. Para os fiéis católicos é normativo o ensino do Concílio Vaticano II, que tem a promoção da unidade cristã “um dos seus principais objetivos” (Unitatis redintegratio – UR, 1). E o concílio afirma que a solicitude para com a causa ecumênica “vale para toda a Igreja, tanto para os fiéis, quanto para os pastores” (UR 5). A Encíclica do papa João Paulo II reforça: “O caminho ecumênico é caminho da Igreja” (UUS n. 7s). E trata-se de um caminho “irreversível” (UUS n. 3). O papa Bento XVI afirmou a importância do ecumenismo com “gestos concretos” no seu primeiro discurso aos cardeais eleitores, ainda na Capela Sistina. E o papa Francisco segue na mesma direção do Vaticano II e de seus predecessores. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sempre se sustenta no magistério da Igreja para afirmar seu compromisso ecumênico de favorecer a comunhão na fé em Cristo, no amor evangélico e na colaboração com as diferentes Igrejas, religiões e pessoas de boa vontade, visando construir em nosso meio uma sociedade de justiça, fraternidade e paz.
Desde a sua primeira edição no ano 2000, a Campanha da Fraternidade Ecumênica enfrenta resistências. E este ano não é diferente com a 5ª. edição da Campanha da Fraternidade Ecumênica. O curioso é que as resistências maiores vêm da parte de membros da Igreja Católica. Como entender isso se temos orientações claras que orientam o ecumenismo? São diversos fatores, entre eles: a ignorância do ensino do Concílio Vaticano II e do magistério eclesial pós-conciliar; ou no caso de conhecimento desse ensino, as resistências expressam não recepção do mesmo na vivência da fé. Não poucas pessoas católicas fazem uma aceitação apenas parcial do magistério eclesial, conforme conveniências da subjetividade espiritual pessoal ou de grupos. É o que se constata em negações da doutrina católica sobre o ecumenismo. Por exemplo, não se reconhece a eclesialidade das diferentes Igrejas como afirma o Vaticano II (UR 3; LG 15); que a Igreja de Cristo tem uma “presença operante” (UUS 11) nas diversas Igrejas da Reforma; que não há nelas “vazio de Igreja”, (UUS 13); que há salvação nas diferentes Igrejas pela ação do Espírito que ali está; (UR 3); que existe “verdadeira santidade” nas diferentes igrejas (UUS 1. 84). Foi no pontificado de Pio XII que pela primeira vez a Igreja Católica afirmou que o ecumenismo é uma “moção do Espírito Santo” (Instrução do então Santo Ofício, De Motione Oecumenica, 20/12/1949). E o papa Pio XII excomungou o teólogo Leonard Feeney por afirmar que não há salvação fora da Igreja Católica. Enfim, as atitudes anti-ecumênicas do século XXI nos meios católicos expressam distanciamento do magistério conciliar e pós conciliar, e um grave anacronismo doutrinal e teológico.
Tal fato é mais que dissenso teológico. Expressa posturas sectárias no interior da Igreja. Uma coisa é afirmar dificuldades para viver a Campanha da Fraternidade Ecumênica, reconhecer limites no texto base, ver pedras no caminho do diálogo. Outra coisa é negar in totum a proposta da Campanha, como fazem alguns. Não se pretende tirar as pedras do caminho, mas interromper a caminhada. E utiliza-se as pedras para construir muros e atacar com atitudes irreflexas, ultraconservadoras, fundamentalistas, xenofóbicas. Quem assim age, não faz apenas uma hermenêutica divergente do magistério eclesial, mas busca sua invalidação. E fantasia possuir um magistério in persona, que numa pretensa defesa da doutrina a confundem com uma ideologia pessoal ou de grupos – enquanto afirmam que “ideológicos são os outros”, que falam de libertação, justiça, fraternidade e paz. Há uma incapacidade mental e espiritual para compreender o sentido evangélico dessas propostas. Por isso nega-se a Doutrina Social da Igreja como se fosse alheia ao Evangelho das Bem-Aventuranças. Por uma errônea compreensão da verdadeira Tradição dificulta-se à Igreja a missão de “interpretar os sinais dos tempos” para o aggiornamento da sua missão, e a enclausuram no tradicionalismo. Em nome da fé em Cristo, contradiz-se a essência do Evangelho, a caridade, com atitudes de intolerância, desrespeito e ódio para com as diferenças. Fica, então, claro porque promovem a não contribuição com a Coleta do Fundo da Solidariedade da Campanha da Fraternidade Ecumênica, como se não fosse um gesto de amor e solidariedade. Enfim, pessoas que assim se comportam só conseguem afirmar a própria identidade, negando a identidade dos outros. O papa Francisco mostra como é triste termos de “reconhecer que os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem ‘fazer parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital’” (Fratelli tutti, n.46).
É de se perguntar se quem assim age é de fato membro da Igreja Católica. Afirma o número 14 da Lumen gentium: “São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos”. A fé, os sacramentos e o regime de comunhão expressam a identidade integral de um membro da Igreja Católica. Diz o mesmo número que sendo essa Igreja necessária para a salvação de seus fiéis, “não se salva quem nela está incorporado apenas com o corpo, mas não com o coração”. Quando falta o sentire cum ecclesia as realidades da fé e do mundo, quando não há “perseverança na caridade”, na verdade não se está inteiramente na Igreja. Urge intensificar a conversão dessas pessoas. O ecumenismo é um caminho de conversão, como proposta de comunhão em Cristo, vivida na fraternidade, no diálogo, no amor e na paz. Afinal, a salvação consiste em pertencer à oikoumene, concretude do Reino de Deus, onde Ele “será tudo em todos” (cf. 1Cor 15,28).
[1] LAMEIRINHAS, Roberto. “Estudo do IBGE aponta para redução da segurança alimentar no Brasil”. Disponível aqui. Acesso 12 fev. 2020.
[2] SILVEIRA, Daniel. “Fome no Brasil: em 5 anos, cresce em 3 milhões o nº de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, diz IBGE”. Disponível aqui. Acesso 12 fev. 2020.
[3] TOKARNIA, Mariana. “Analfabetismo cai, mas Brasil ainda tem 11 milhões sem ler e escrever”. Disponível aqui. Acesso 12 fev. 2020.
[4] IPEA. “População em situação de rua cresce e fica mais exposta à Covid-19” (16/06/2020). Disponível aqui. Acesso 12 fev. 2021.
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