09 Setembro 2024
O artigo é de Daniel Hallado, Provincial da Terceira Demarcação das Escolas Pias, publicado por Religión Digital, 08-09-2024.
Desde o anúncio da visita do Papa Francisco, foi anunciado o lema que a moldará em Timor-Leste: “Deixe a sua fé ser a sua cultura”.
Nas diversas reflexões explicativas fala-se em colocar a fé como base da identidade do povo, especificamente da identidade e da cultura católica. Espera-se que a viagem sirva para tornar esta fé mais ardente e trazer unidade ao povo. E, em qualquer caso, o povo receberá o Papa como manifestação da bênção de Deus.
Por parte do Vaticano, o lema é explicado como “viver a fé em harmonia com a cultura de acordo com as tradições do povo de Timor-Leste”.
Para compreender um pouco o valor da identidade católica de Timor, não basta voltar à colonização portuguesa. Isto trouxe a primeira evangelização em algumas áreas do país. Mas a ligação com a identidade foi forjada ao longo da ocupação indonésia: a fé católica foi percebida pelo povo como um “fato diferenciador” em relação à ocupação, ao qual se somou o importante papel que a Igreja Católica teve como pilar da resistência: preservar as igrejas como ambiente em que se pudesse falar a língua local mais comum, o tétum, denunciando abusos, acolhendo os perseguidos, dando testemunhos corajosos. Este papel levou a muitas conversões ao cristianismo, como católicos. Também significou prestígio, influência e, por enquanto, poder para a Igreja Católica.
Além deste fator histórico e sócio-político, podemos considerar a notável recepção que a fé tem tido em relação à cultura (ou melhor, às culturas) locais: muitas vezes expressam que assim como Israel teve o Antigo Testamento, eles têm as suas tradições que cumprem o mesmo papel, chegando a identificar vários aspectos das suas tradições como um pré-anúncio de Cristo. Não percebi nada parecido em outras culturas animistas de outros continentes.
Ambas as realidades são, sem dúvida, riquezas deste povo e desta Igreja, mas não estão isentas dos perigos correspondentes.
A cultura tradicional é animista e não só permanecem os seus valores e tradições positivas, mas também os seus medos de espíritos, maldições... e particularmente uma verticalidade difícil de superar, da qual o seu forte clericalismo possivelmente ecoa na Igreja. Estes aspectos da cultura tradicional precisam ser iluminados por uma fé libertadora, que se baseie nos seus valores profundos e a partir daí supere a negatividade. Mas para isso é preciso também fazer um estudo profundo sobre o que está por trás das culturas e como trabalhar esse diálogo. Quase não há nada escrito sobre isso e o recentemente falecido bispo de Baucau quis lançar algumas bases.
Na verdade, a forma como as Assembleias de Deus (grupo maioritariamente protestante na ilha de Ataúro) abordam a fé é muito diferente: a maioria delas rejeita completamente a cultura tradicional. O resultado é agridoce: por um lado, assimilaram mais vários valores cristãos, uma ética mais consistente, uma maior solidariedade... mas, por outro lado, não se desligaram completamente da sua cultura, que muitos mantêm escondida e, como geralmente acontece nesses casos, mal configurada.
O escolhido é um bom lema, um convite necessário, mas que deve conduzir, como referi, a uma reflexão profunda e a um plano de trabalho. A isto deveríamos possivelmente acrescentar, se assim se pode dizer, uma maior cristianização da fé católica. Explico: pela sua relação com a cultura, o reconhecimento de Cristo como Senhor, Salvador, Filho de Deus entrou muito bem e, com ele, a liturgia costuma ser muito bem cuidada e preparada pelo povo com seus pastores. Mas a catequese está subordinada aos sacramentos, e a dimensão social cristã da fé (servir a Cristo nos mais necessitados) é muito fraca, como se manifesta no escasso papel atribuído às atividades da Caritas, por exemplo, ou na fraca estrutura da educação católica, sem falar no papel auxiliar reservado aos leigos.
Neste sentido, o convite do Papa à sinodalidade e a reflexão que esta Igreja está a fazer sobre a matéria pode ser um caminho que, por um lado, se ligue ao melhor das tradições timorenses, iluminando-as, deixando-se enriquecer por elas e melhorando-as e, por outro lado, desenvolve a identidade católica, superando uma visão da religião em que o Reino de Deus é algo bastante pessoal e íntimo.
Acrescentemos que na preparação quisemos trabalhar com as cartas Laudato si’ e Fratelli tutti, que também apontariam esta linha de mudança, e em todas as comunidades cristãs foi rezado um texto longo e inspirado para que a visita fosse bem-sucedida.
Do lado político também foi feito um trabalho considerável, preparando o local, organizando movimentos e logística, financiando... mas esse trabalho incluiu a realização de obras na cidade, eliminando barracas de vendas populares e inúmeras casas que, possivelmente, não tinham direito de estar ali, mas a forma, a rapidez e o volume de pessoas atingidas geraram duras críticas e decepções por parte de boa parte da população e de alguns eclesiásticos.
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O Papa em Timor Leste. Deixe sua fé ser sua cultura. Artigo de Daniel Hallado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU