02 Setembro 2024
No artigo os autores avaliam o que está em jogo no Brasil em que parcela significativa do governo federal, boa parte dos parlamentares e do Poder Judiciário, insistem que as demandas dos indígenas por demarcações de terras causam transtornos.
O artigo é de Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima, membros do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Regional Sul, publicado por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 30-08-2024.
“Amazonas, Pantanal, Serras Mineiras em chamas. Segue o velho drama. Quanto mais fogo, maior a exploração. Que situação! Se nas vistas é fumaça que arde, no coração pula o não querer ser covarde. É lutar mais firme em favor da mãe terra. Sem armas, mesmo sabendo que isso é guerra” – Dom Vicente Ferreira, Bispo da Diocese de Livramento de Nossa Senhora (BA). Membro da Comissão de Ecologia Integral e Mineração, via rede X, 21/08/2024
Parcela significativa do governo federal, assim como boa parte de parlamentares e do Poder Judiciário, vem insistindo que as demandas dos povos indígenas e quilombolas por demarcações de terras causam transtornos, uma vez que os seus direitos, conforme estão determinados pela Constituição Federal de 1988, desagradam setores produtivos, especialmente aqueles que se dedicam à exploração agrícola, agrária, madeireira e minerária.
Diante dessa insatisfação, os governantes buscam subterfúgios extraconstitucionais para dar uma resposta às sociedades nacional e internacional através de proposições paliativas, visando mitigar ou compensar os direitos que estão sendo negados.
Eles basicamente propõem que, dada a situação conjuntural, interna e externa, os povos precisam aceitar, como única alternativa, as iniciativas de compra de terras, ao invés de demarcar aquelas que lhes seriam de direito.
“Propõem que os povos precisam aceitar, como única alternativa, as iniciativas de compra de terras, ao invés de demarcar aquelas que lhes seriam de direito”
Na avaliação dos governistas, não haverá outra saída, ou seja, há de se chegar ao entendimento de que é melhor receber “as migalhas das mesas fartas” do que serem alijados de qualquer benefício, inclusive os sociais, porque serão mantidos, aqueles que lutam por demarcação de terras, nas margens, sob a miséria e violência.
Essa proposição não contém nenhuma novidade diante do que já se fez, ou se apresentou em anos passados, inclusive por governantes de caráter fascista.
A perspectiva – mitigadora – é a que predomina em praticamente todo o sul do país, onde, ao longo das décadas, se adotou, como solução, a concessão de pequenas áreas de terras para assentar indígenas, ou mesmo a compra de terra nua – via desapropriação, ou outras negociações entre as partes.
Tem-se, no Rio Grande do Sul, uma realidade onde as únicas terras efetivamente demarcadas são aquelas reservadas ainda nos tempos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no século passado. As poucas áreas destinadas aos povos através de procedimentos demarcatórios foram, em grande medida, negociadas, destinando-se aos indígenas as piores terras.
Não há, portanto, nenhuma novidade nessa proposta que agora é apresentada como a mais brilhante e justa iniciativa dos que gerenciam a política indigenista. Pelo contrário: trata-se, mais uma vez, de contornar o que determina a Constituição Federal, sempre em prejuízo dos povos indígenas e de seus direitos.
Portanto, as mobilizações dos povos e de seus aliados que têm por objetivo defender direitos não são meramente ideológicas, ou utópicas, ou ideias tradicionais e do passado. Defender direitos é defender a história e a resistência dos povos que, lá atrás, deram suas vidas para que na Constituição Federal fossem reconhecidos os seus direitos originários. Deram suas vidas pela terra e por todos os demais direitos ligados a ela.
O que está em jogo agora no Brasil, quando se observa os subterfúgios criados pelos de cima?
Há três questões essenciais:
E não nos enganemos. A tese jurídica definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2023, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, de repercussão geral, sobre o marco temporal e os direitos originários, não foi satisfatória para o governo e muito menos para os tais setores produtivos. Diante dessa insatisfação, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023. Como as duas regras aparentemente se confrontam, decidiu-se pelo estabelecimento de outros acordos e negociações, buscando manter os territórios sob o domínio do capital.
E os indígenas e os quilombolas, como ficam, se estão na margem ou submetidos aos facínoras – fazendeiros, jagunços, policiais, milícias, capitães do mato – do latifúndio?
Para eles, agora, assim como foi ontem, se reedita o mais do mesmo, ou seja, deixar de lado os direitos em troca das promessas de possíveis benefícios sociais e compensações de terras – poderão acessar algumas terras, não necessariamente as originárias. Todavia, se assim não o fizerem, nada terão no dia de amanhã. Mas, se mesmo assim insistirem nessa lógica do direito, ficarão mais 30 anos na margem, nas beiras das estradas, em situação de vulnerabilidade.
Não nos iludamos, pois essa é a tese jurídica perfeita e que se concretizou no Brasil colônia e atual. E por que é perfeita? Porque ela está sendo introduzida nas mentes de todos, inclusive nas nossas, uma vez que não são apresentadas outras alternativas a não ser a de que se aceite o que eles estão reeditando.
Não nos iludamos. O governo Lula III não executa nem mesmo o baixo orçamento federal voltado para as comunidades indígenas e quilombolas. Análise do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que, no primeiro semestre de 2024, para a ação de regularização de territórios quilombolas, se gastou tão somente o valor de R$ 3,4 milhões, correspondente a apenas 2,3% dos R$ 144,3 milhões disponíveis para o ano de 2024. Para a regularização fundiária de terras indígenas, o governo executou apenas R$ 28,8 milhões de um montante autorizado de R$ 315,5 milhões – ou seja, menos de 10% do orçamento destinado à ação. Assim tem ocorrido nos vários governos. Abrindo mão de direitos, esse quadro mudará?
Não podemos deixar de lembrar da falta de regularização de terras quilombolas no país. São mais de 5 mil áreas reivindicadas no Brasil, não chegando a 200 aquelas que foram regularizadas. E, mesmo as regularizadas, o foram através de concessões ínfimas de terras. Abrindo mão de direitos, essas terras serão reconhecidas e regularizadas?
E como funcionam as regras para a titulação dos Quilombos? O básico daquilo que se propõe como “viável” para a resolução do impasse envolvendo as terras indígenas: desapropriação e/ou a compra de terra nua.
Talvez as respostas dadas aos quilombolas, ao longo das décadas, sirvam para o aprofundamento de nossa reflexão sobre os direitos dos Povos Originários e das Comunidades Tradicionais.
A tese dos que frequentam o andar de cima dos palácios não resolverá o problema, já que o capital se vincula também ao racismo sistêmico e estrutural. Os racistas não aceitam que indígenas e quilombolas tenham terras e direitos.
Foi assim lá atrás, em 1850, quando houve, pelo imperador Dom Pedro II, a promulgação da lei de terras. E, por incrível que possa parecer, é a mesma lei sendo reeditada agora através de manobras discursivas, legislativas e jurídicas. E ela não permite sonhar com a terra e nem com o direito de poder lutar por ela.
Cremos que temos uma resposta a essas inquietações. Direitos não foram feitos para serem negociados!
Ao baixarmos a guarda agora, daremos razão ao ministro Gilmar Mendes, que busca sufocar os direitos indígenas. Ao baixarmos a guarda agora, a tese do marco temporal vigorará sem as restrições impostas pelo julgamento de repercussão geral do STF. Ao baixarmos a guarda agora, os que governam o Brasil vão dizer que tentaram dar terra aos indígenas e quilombolas, mas não foi possível porque não havia quem as vendesse a eles. Ao baixarmos a guarda agora, as terras eventualmente compradas serão aquelas sem valor de mercado, degradadas, com rios e córregos poluídos, que vão alagar as casinhas das famílias quando vier a chuva.
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Negociar direitos não deve ser condição, muito menos opção única. Artigo de Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU