O autor nos convida a pensar a política não como algo harmonioso, mas como um exercício aberto e contestado. “A revolução é feita pelos seres humanos como eles são. Quem quer a harmonia celestial, vá para o céu”, dizia Manuel Sacristán.
A entrevista é de Nicolas Filgueiras, publicada por El Salto, 09-07-2024.
Juan Ponte (Oviedo, 1983), atualmente diretor geral da Agenda 2030 no Principado das Astúrias e responsável pela formação na Izquierda Unida, acaba de publicar El capitalismo no existe: necroteología del mercado (Trea Ensayos). O seu livro abre um caminho de reconvenções anticapitalistas – da esquerda para a direita – e constitui uma valiosa bússola para se orientar em tempos de incerteza. O seu livro recolhe a batalha filosófica de alguém que nos convida a pensar a política não como a reconciliação dos santos na terra – a revolução é levada a cabo pelos seres humanos tais como eles são. Quem quer a harmonia celestial, vá para o céu, diria Sacristán, mas como um exercício constantemente aberto e disputado, sem vocabulários finais ou de destino.
o autor fala dos discursos que procuram a harmonia através do regresso à soberania nacional, da família ou da comunidade, partilha as razões pelas quais considera que o capitalismo não é individualismo e, entre outras coisas, apresenta-nos um Adam Smith diferente daquele dos manuais escolares. As suas respostas, sempre atravessadas pelas suas referências a Marx ou Althusser, informam-nos que o capitalismo ataca a propriedade e que é incompatível com o liberalismo, bem como que se o socialismo vai regressar a uma comunidade perdida, então, o socialismo é uma treta. No fim da conversa, não parece esmagador, por mais difícil que pareça, pensar na emancipação no século da melancolia.
Qual é o lugar de enunciação do livro? O que te motivou a escrevê-lo?
Uma preocupação com as articulações entre as diferentes frentes de luta que confrontam todas as formas de dominação é o que me move. Esta preocupação tem as suas raízes na minha própria participação nos movimentos sociais e sindicais e na ação política local, no meu caso como chefe da Área de Atendimento ao Cidadão da Câmara Municipal de Mieres. Além de ser o berço do movimento operário nas Astúrias, é uma referência territorial do feminismo popular, como demonstra o fato de no anterior 8 de março, as Astúrias terem sido a única Comunidade Autônoma que descentralizou o seu protesto da capital para lá.
O livro começa forte, com nada mais e nada menos do que uma dedicatória “Aos capitalistas de todos os partidos”.
Reviro a dedicatória de Hayek “A todos os socialistas” em seu livro Caminho para a servidão. Você pode pensar que com esta dedicação pretendo corrigir o antagonista, mas na realidade faço algo mais radical: pretendo transmitir até que ponto estamos impregnados do imaginário capitalista. É um alarme pela falta de alternativas. Num contexto de crise civilizacional, não basta ir contra ela apontando o ressentimento do direito ou estabelecer um catálogo de benefícios e direitos, o que é uma condição necessária, claro, mas não suficiente. Trata-se de estabelecer, como diria Gramsci, uma “fantasia concreta”, lançando novas formas de vida.
No livro proponho que se comece renunciando ao prazer e acabe sentindo prazer na renúncia. Você começa reprimindo o desejo e acaba sentindo vontade de reprimir. No capitalismo acontece a mesma coisa: você começa a contar o prazer, como o tio Gilito, e no fim tem uma sensação de prazer no simples ato de contar. Mas isto acaba por ser uma operação vazia, oca e sobretudo, como diria Marx, compulsiva. Trata-se de confrontar essa compulsão cega e muda que é o capitalismo.
Li seu livro logo depois de Tempo perdido, de Clara Ramas. Penso que há um cruzamento de leituras muito interessante entre a sua ideia de que a melancolia é o tom afetivo do nosso tempo, e a sua crítica à crescente “arquepolítica”, esse anseio de regressar a uma realidade harmoniosa anterior aos tempos decadentes. Essa vontade de ‘voltar para casa’ pode acabar numa defesa de voltar ao tempo dos nossos pais, da família, da nação, da comunidade, do Estado-nação, da natureza... Cada um tem o seu paraíso perdido particular. O que você pode nos contar sobre isso?
Esses discursos atravessam tanto a direita quanto a esquerda e são caracterizados pela saudade do retorno ao mesmo corpo. A arquepolítica é a tentativa de retorno a uma sociedade compacta, sólida, harmoniosa, sem sintomas, em que tudo cabe com tudo (totum intra totum). É uma tentativa falhada na medida em que é impossível, mas também tem consequências políticas catastróficas, capazes de um “desastre sombrio” nos termos de Badiou. A ideia baseia-se no mito da comunidade perdida, segundo o qual o individualismo capitalista moderno causou a destruição da comunidade primitiva. O individualismo se tornaria o pecado que causa a desintegração da comunidade orgânica, que nada mais é do que a concretização política do Corpo místico de Cristo. Esta ideia já está na primeira Epístola aos Coríntios, quando Paulo compara os cristãos da Igreja a um só corpo.
Esta concepção mística infiltrou-se em Pierre Leroux, que cunhou o conceito de socialismo em 1832, entendendo-o como um esforço para restaurar a comunidade perdida face ao individualismo capitalista. Quando Althusser disse que o socialismo “c'est la merdé”, disse-o num sentido totalmente rigoroso: se o socialismo está a devolver ou a restaurar uma comunidade perdida, isso é uma treta, porque uma comunidade tão idílica nunca existiu nem existirá.
O significado partilhado é uma espécie de nostalgia de um mundo perdido caracterizado por notas de proximidade e harmonia, algo que se vê muito claramente nos Diego Fusaro, nos castanhos-avermelhados, nos críticos do globalismo e em alguns populistas laclausianos. Por que Juan Manuel da Prada emociona tanto? Chamaram tanto de esquerdistas? Bem, porque ambos são sustentados pelo mesmo esquema ontológico e ambos partem de um mito contrarrevolucionário idêntico. Também li recentemente o livro de Clara Ramas e compartilho a sua tese de que estas posições (no capitalismo) não são conservadoras, mas sim reacionárias.
No livro acrescento que a esta tese teológica, à arquepolítica, acrescenta-se uma vulgarização sociológica que consiste num contraste reducionista entre a Gemeinschaft, ou seja, a comunidade orgânico-romântica, e a Gesellchaft, a comunidade mecânica. Em COMUNTOPÍA, César Rendueles deixa bem claro que o que Durkheim ou Weber disseram não corresponde a este contraste metafísico: Durkheim sabe que nem tudo pertence ao reino do individualismo subjetivista e que as sociedades humanas necessitam de sistemas cooperativos e de projetos partilhados; e Weber, por um lado, criticou a distopia de um mundo hiperadministrado soterrado pelo cálculo e pela previsibilidade, como pode ser visto na metáfora da “gaiola fria de ferro”, mas em nenhum momento nega que a sociedade seja permeada por sentimentos, que são essenciais para que funcione.
Você propõe uma leitura contracorrente da interpretação de que o capitalismo promove a nossa “individualização”.
O que afirmo, para provocar, é que o capitalismo não é individualismo. E aproveito-me de Marx, que na Sagrada Família diz que os membros da sociedade burguesa não podem ser átomos num vácuo absoluto. O ser humano é um ser social que não consegue abstrair-se das suas condições materiais nem pode viver separado do restante. Devemos abandonar esta abordagem de que primeiro houve uma comunidade, depois os laços sociais foram quebrados e agora só restam átomos.
Quero aqui deixar uma mensagem a certos populismos laclausianos: o vínculo social nunca se dissolve. Quando se diz que “o laço social está em perigo” estamos a cair num formalismo: a crítica não se trata de denunciar a dissolução dos laços sociais, que estão sempre a ser feitos e desfeitos; a crítica consiste em analisar qual vínculo social está em perigo, qual está sendo dissolvido. Lembremos o que Marx e Engels disseram sobre a família no manifesto: não são os comunistas que destroem a família, mas é o capitalismo que faz com que a organização da família se module e se transforme historicamente.
Um indivíduo nunca pode ser totalmente egoísta até crescer como um átomo porque está sempre inserido em diferentes configurações grupais: classes sociais, estilos de vida, faixas etárias, grupos de status, identidades sexuais e de gênero... O individualismo não existe, existem dispositivos de individualização que tentam converter contradições estruturais em problemas individuais ou biográficos. Temos um exemplo privilegiado no self-tracking: usamos uma pulseira que mede a frequência cardíaca, os batimentos cardíacos, os passos que percorreu, as calorias queimadas, os e-mails que enviou ou as horas de sono.
Por que você considera isso um mecanismo de individualização?
Porque se tenta converter um problema estrutural (os cuidados de saúde e a necessidade de sistemas de cuidados) num problema individual. Dizem-nos: “você consegue, você tem que ser um empreendedor por si mesmo” ou “você tem que investir na sua própria saúde”. Nesta quantificação de você e de mim, procuramos responsabilizar as pessoas que estão doentes pela sua própria saúde precária, posicionando-as como membros de uma classe degenerada, com vontade frágil e fraca. É uma versão atualizada do clichê da preguiça dos pobres: "os pobres têm problemas de saúde porque não se cuidam e não trabalham, porque são preguiçosos e vadios". Se não o fizer, a culpa é sua, quando na realidade tudo isto é um álibi para a privatização da saúde pública.
Há outro exemplo que realmente me impressionou. É comentado por David Owen, secretário de Relações Exteriores de Thatcher e psiquiatra de formação, que estava com sua esposa e Margaret Thatcher tomando um café na Câmara dos Comuns. A Dama de Ferro é abordada por uma de suas constituintes e, muito chateada, ela conta que seu filho estava sofrendo de depressão. Thatcher não só não demonstrou qualquer empatia com a dor dos outros, mas também lhe disse que a causa da doença do filho era a sua falta de motivação. A saúde mental como problema estritamente individual. Aqui não há individualismo atomizador, mas mecanismos de individualização. Não há uma ruptura do vínculo social, mas sim uma transformação dele.
Você diz que “o capitalismo não é individualismo, mas sim dividualismo”.
Sim, e para explicar isso recorro a Marx. Ele sustenta que o capitalismo, o capital, fragmenta os trabalhadores ao absorver a energia dos seus cérebros, músculos, nervos e mãos... Nesta crítica o foco está em como o capital impulsiona toda uma série de empregos parciais que transformam a classe trabalhadora em mecanismos automáticos. Isto é muito interessante se considerarmos que a ideologia do empreendedorismo brinca com a ideia de plenitude. O empreendedor é uma pessoa plena. A realidade face a isto é que as práticas capitalistas levam a uma parcialização biopolítica dos esforços da classe trabalhadora. Para isso, aliás, o controle do seu tempo é um requisito essencial. Esse é o critério de mensuração da geração de mais-valia. É por isso que Marx usa a metáfora do capital vampiro: o capital nada mais é do que trabalho morto que só ganha vida sugando, como um vampiro, o trabalho vivo.
O capital produz dois grandes efeitos: primeiro, converte os corpos dos trabalhadores em fatores de produção (reificação); e segundo, transforma o tempo de vida em tempo de trabalho. Se o seu tempo de vida se tornar tempo de trabalho, outros controlarão o seu tempo e você perderá o seu tempo de vida. É daí que vem a expressão “tudo deve ser o nada de hoje”. Esta é a batalha política fundamental, e é por isso que a solução não é nem restaurar uma comunidade primitiva perdida nem assinar um novo contrato social. Isso é ridículo, “contar histórias”, como diria Althusser.
No livro você critica uma série de premissas e dicotomias comuns no debate político. Gostaria de lhe perguntar sobre aqueles que são mais típicos da direita. Ocorre-me o contraste entre o Estado e o livre mercado que favorece este último. Por que você considera essa dicotomia enganosa?
O que defendo é que o livre mercado não é que seja ou não seja desejável, é que é impossível. Não existe. A expressão ou frase em si é uma contradição terminológica. É como fritar neve. É como o perpetuum mobile: uma máquina que subsiste sem fontes externas de energia. Isto é impossível porque viola as leis da termodinâmica. A própria noção de livre mercado fora dos quadros estatais é impossível, porque o Estado e o mercado nascem e crescem historicamente juntos, são interdependentes. Os Estados são o útero a partir do qual os mercados são nutridos e, subsequentemente, são os seus progenitores. Existe uma relação dialética.
Por outro lado, longe de o mercado livre ser uma utopia (já que é impossível), esta noção nasceu manchada de sangue. Para que haja um mercado livre, deve haver “apropriação de terras”, como diria Rosa Luxemburgo, e é necessário que os Estados explorem e extraiam recursos materiais. A noção de mercado livre, tão eufórica, nasceu com as empresas estatutárias que monopolizaram o comércio atlântico de escravos entre finais do século XVII e inícios do século XVIII. São então substituídas por empresas privadas que passam a executar uma racionalidade mais eficiente nesta comercialização. Vale lembrar também que o mercado livre precisa de infraestruturas garantidas pelo Estado: parques industriais, aeroportos, linhas ferroviárias... Este postulado do esquerdismo infantil de que o capital quer “privatizar tudo” é falso. Não! O capital quer transferir custos para o Estado para que este gere determinadas infraestruturas e assim maximize os benefícios.
As principais inovações científico-tecnológicas da história (Siri, vacinas ou telas sensíveis ao toque) envolvem anos de investimentos milionários por parte dos estados. Não são invenções de um empresário que está numa garagem trancada. Isto vai contra o mito do empreendedor: os avanços científicos tecnológicos não são fruto de um gênio individual, mas da “inteligência coletiva”, como diria Marx. Nem pode haver circulação de capitais sem Estados que cunham a moeda, mesmo que esta seja transnacionalizada como na UE. Também são necessários aparatos ideológicos do Estado para gerar hegemonia cultural e, claro, são necessárias instituições legais para garantir a propriedade privada.
No livro você faz uma distinção entre propriedade individual e propriedade privada. Conte-nos algo sobre isso.
Uma coisa é a posse ou apropriação de algo e outra coisa é a propriedade. O Estado garante que aquilo que você se apropriou é sua propriedade privada. Esse é o paradoxo: não existe propriedade privada sem direito público. Adam Smith disse que enquanto não houver propriedade não poderá haver governo. Não. O que os materialistas diriam é: enquanto não houver Estado não pode haver propriedade reconhecida como tal, porque quem de jure estabelece a propriedade, quem faz valer o seu direito, é o Estado. É por isso que a propriedade privada não é um “direito natural”, como Locke queria.
A direita geralmente ganha o jogo sobre a esquerda na reivindicação de propriedade. Marx, desde a Ideologia Alemã e especialmente no Livro I de O Capital, distingue entre propriedade individual e propriedade privada. Para ele, como para Engels e mais tarde para Lenin, o problema da propriedade privada é que ela é uma propriedade privada e exclusiva. A propriedade privada (de monopólios, holdings, oligopólios) priva a maior parte da propriedade e vai contra a propriedade individual. Deve ser dito desta forma: o capitalismo é inimigo da propriedade.
No livro você nos oferece uma visão diferente de autores como Adam Smith ou John Locke, que aparecem como autores muito distantes de um anarcocapitalista como Juan Ramón Rallo.
Adam Smith não é um capitalista típico, pois no máximo defende uma espécie de capitalismo agrário muito distante do capitalismo industrial. Também não seria correto chamá-lo de “liberal”, visto que o termo surge depois das Cortes de Cádiz. Se formos aos seus textos (e nisso as obras de David Casassas são uma referência) descobrimos que ele defendia a limitação da propriedade privada, colocando a “prosperidade da República à frente do lucro dos ricos”, ou que também disse que “os ricos contribuem para as despesas públicas não apenas na proporção dos seus rendimentos, mas em algo mais do que essa proporção”, defendendo a tributação progressiva. Na metáfora da mão invisível, que aliás só utiliza três vezes na sua obra, Adam Smith está, de certa forma, a ironizar. O que ele está dizendo é que a sociedade só funcionaria se houvesse algo como uma mão invisível que alinhasse os interesses de todos os comerciantes vaidosos. Meu complemento: a mão invisível é justamente o que não existe. A mão invisível é, efetivamente, a comunidade harmônica, um objeto inexistente. A existência da mão invisível foi destruída pelos fatos.
Há grandes diferenças entre o que Adam Smith ou Locke defendiam, por um lado, e o que defendem a escola austríaca (Von Mises, Hayek, Rothbard), a escola de Chicago (Friedman) ou a escola norte-americana (Gary Becker), por outro. O liberalismo clássico, o do século XVIII, tentou proporcionar à sociedade política um lugar tão livre quanto possível da interferência do mercado. Ele pretendia preservar um lugar vazio de poder político. Agora, o neoliberalismo é exatamente o oposto: trata-se de ajustar o poder político da forma mais eficiente à economia de mercado. O zelo liberal clássico concentrava-se em não governar demasiado. A obsessão neoliberal é radicalmente oposta: trata-se de como intervir tanto e da melhor forma possível no comportamento humano.
Isto é visto nos liberais alemães (Röpke, Rüstow), sempre fortemente estatistas, ou no neoliberalismo norte-americano de Gary Becker, fortemente inspirado na obra de von Mises. No caso de Gary Becker, ele investiga como diferentes facetas da vida e instituições como o casamento, o cuidado, a educação ou o esporte podem ser controladas a partir do mercado. Trata-se de perceber a realidade através do modelo do homo oeconomicus, ou seja, do empresário que funciona como uma empresa que deve arbitrar individualmente as circunstâncias e lidar sempre com seu superego sádico: “Não tire férias, não desligue o celular telefone e continue trabalhando”. É curioso que esta pretensão neoliberal mantenha uma retórica contrária às políticas públicas, acusada de tentar controlar todas as variáveis sociais (gostos, desejos, opiniões...). A tarefa da esquerda é confrontar toda esta nova concepção antropológico-política. Para dizer com Hegel: trata-se de construir uma outra forma de estar no mundo.
Há uma ascensão à esquerda de certas posições que anseiam por regressar à soberania nacional ou à família (penso em Ana Iris Simón, Santiago Armesilla ou Roberto Vaquero). Quanto aos que defendem o regresso à soberania nacional, o senhor salienta que querem regressar a uma “vida intrauterina”. O mesmo poderia ser dito daqueles que desejam retornar à comunidade ou à família (“cipotuda saiu”).
A “esquerda cipotuda” é uma expressão que roubei de Ángel de la Cruz, um amigo de IU. Estas formas ligam-se mais uma vez ao mito da comunidade perdida como um mito contra-revolucionário cristão. No fundo, o que clamam é o retorno, com perdão do pedantismo lacaniano, do Outro uterino. Procuram estar bem protegidos, aquecidos e alimentados ainda no útero. Vemos isso muito claramente quando enfrentam as ameaças da globalização. É uma espécie de mitologema apotropaico: uma espécie de proteção e talismã contra o desvio artificial da sua identidade primitiva e a perda da sua imunidade essencial. Na minha opinião, esta suposição metafísica ingênua de que se pode regressar a uma soberania imaculada, harmoniosa e pouco conflituosa é, novamente, algo que nunca existiu, nem existe nem existirá.
Conte-nos sobre aqueles que querem retornar à soberania nacional face ao “globalismo”.
A dicotomia entre soberania nacional e globalização é mal definida. A globalização requer nutrição constante dos Estados-nação para a sua existência. Na verdade, há cada vez mais Estados-nação. O que chamamos de globalização é mais uma recomposição dos Estados em blocos regionais, mas não significa de forma alguma um enfraquecimento dos Estados. Os Estados, envolvidos na sua própria dialética, continuam a existir e são cada vez mais fortes.
Por um lado existe uma espécie de cenário cosmopolita em que há uma confluência harmoniosa de todos os Estados, como se estes fossem um manto protetor. Não existe um quadro cosmopolita e harmonioso de interesses estatais. O que existe é uma luta entre estados. Por outro lado, também critico este tipo de tentativa de regresso à vida intrauterina da soberania nacional. Essa vontade de “voltar para casa”, se me permitem outro pedantismo, essa vontade de permanecer no útero, é ativada no medo do desconhecido, do unheimlich. Isto é muito falso, mas é verdade: os supostos flagelos do globalismo anseiam por uma fetalização psíquica coletiva. Tentar regressar à soberania nacional é um pouco como quando as guildas do início do século XIX tentaram lutar para regressar ao tempo perdido.
No livro você apresenta uma visão não estatista do Estado. Você fala em apostar na colaboração público-comunitária.
Critico o fetiche da colaboração público-privada, que significa socializar as perdas e privatizar secretamente os lucros, despejando convenientemente fundos e subsídios sobre instituições privadas. Ultimamente Mazzucato tem criticado fortemente o negócio de consultoria privada, que ele chama de “a grande fraude”. Pela minha própria experiência municipal, o que defendo é a colaboração público-comunitária.
O que não é o mesmo que nacionalizar!
Não! Parto da crítica de Marx à burocracia no 18 Brumário de Luís Bonaparte: o Estado “é um organismo parasita horrível”, “é uma jiboia”. Eu assino isso. Defendo estar dentro, contra e fora do Estado. Você tem que estar por dentro porque acredito na política institucional como porta-voz das demandas e desejos populares. Nesse sentido não sou um movimento. Mas devemos ser contra, inoculando um vírus com uma lógica que vai na contramão do ritualismo burocrático. O ritualismo burocrático que acontece nas administrações públicas faz com que a única coisa importante seja cumprir satisfatoriamente o procedimento formal. É claro que devemos cumprir os procedimentos porque queremos viver em Estados que garantam a lei. Apenas faltando. Mas o ritualismo burocrático inibe o conteúdo. E acontece que talvez o conteúdo desse procedimento seja que uma pessoa não esteja na porra da rua, casos de falta de moradia, problemas de moradia, desnutrição, casos de violência de gênero... Não defendo um socialismo ou um comunismo libertário que seja baseia-se apenas nos bens comuns fora dos Estados. Defendo uma colaboração público-comunitária. O Estado tem que ser hospitaleiro, um facilitador.
Concorda que uma das tarefas da esquerda nas instituições é produzir sociedades civis mais vigorosas, ou seja, contribuir para um maior tecido associativo? Vamos lá?
Vamos lá sim. O Estado tem que ser um “facilitador ativo”. Nisso sigo Mazzucato: Estado ativo é aquele que não segue os ditames das consultorias privadas. Não estou a olhar para ninguém, mas a estratégia industrial de uma comunidade não pode ser determinada por uma empresa de consultoria privada. Porque essa é a ausência não só de política (impolítica), mas de democracia. Se uma empresa de consultoria privada dita a estratégia industrial de um país, não há democracia.
Os projetos políticos devem ter o apoio das administrações públicas com iniciativa comunitária, insisto, que às vezes deixamos a linguagem ao inimigo. Sempre dizemos iniciativa privada. Não. Você perdeu a batalha. Devemos falar de iniciativa comunitária e fortalecer o tecido associativo-cultural. Mas com isto não quero cair no que Mark Fisher chamou de política popular: isto de falar do horizontal e da comunidade, ignorando a necessidade de grandes investimentos e de um Estado. Trata-se, como diria Luciana Cadahia, de construir uma República do cuidado : um Estado plebeu que se opõe ao público-oligárquico.
Não se trata apenas do mantra de “nacionalizar sectores estratégicos”. Que eu concordo com isso. Vamos determinar quais são estratégicos e nacionalizá-los. Mas aí, seguindo Raymond Williams, se não houver socialização do poder, se não houver democratização da organização do trabalho, isto é uma ficção jurídica e, portanto, também não há democracia. Isto é muito mais complexo do que nacionalizar sectores estratégicos (uma condição necessária, mas não suficiente): trata-se de democratizar os processos de organização do trabalho.
Sobre a participação cidadã. Fui vereador de participação durante oito anos. Sem transferência de poder isto também é uma ilusão. Ok, nós nos damos voz, nos tornamos visíveis, mas se não houver transferência de poder de nada vale. Portanto, só podemos traçar um futuro alternativo e diferente a partir da colaboração pública comunitária, dos bens comuns articulados com os Estados. Trata-se de desenhar um futuro alternativo diferente, de mostrar, com todo o peso que o termo representa para Rancière, que existe um futuro.
No livro você critica essa ideia de que a família é um “quebra-mar do delírio globalista”. O que você nos diz sobre essas crenças na família como zona de conforto não capitalista?
É mais uma vez o esquema metafísico da comunidade primitiva ao qual devemos regressar. O que mencionamos antes como um retorno àquela rota comunitária, intrauterina, em que estamos todos bem confortados, alimentados e aquecidos. Parte da esquerda pensa que a família está protegida do capital, que é um “quebra-mar do capital”, que a família nos protegeria dos estragos que gera.
A família é um laboratório de capital e todas as práticas empreendedoras são inoculadas na família. O neoliberalismo entende a família como um bastião moral, como um bastião do tecido político. A família é o local onde as tarefas de cuidado e dependência são desempenhadas pelas mulheres. É um espaço também dominado pela masculinidade. É a área chave da reprodução social (alimentação, saúde, habitação, educação) e, portanto, é a condição necessária para o trabalho produtivo. Em termos estruturais: se não houver relações de cuidado e dependência no lar e na família, não há reprodução do capital. É por isso que Betty Friedan disse que poderia tornar-se um “campo de concentração”.
Não é uma esfera separada ou harmoniosa. Não importa o quanto eles pensem nisso como um retorno para casa.
O retorno para casa é o útero. Você não pode contrastar entre o lar e o outro. Temos que remover o par refúgio-medo. Esta dupla estabelece a demarcação entre a proteção da família e o desvio da sua identidade, a comunidade como refúgio e o afastamento da sua suposta harmonia, a força do Estado e o enfraquecimento da sua soberania, o equilíbrio dinâmico do mercado e a perturbação de sua ordem espontânea… No livro uso a metáfora Casa Usher de Poe avisar que já existem rachaduras na casa, o que acontece é que elas são quase imperceptíveis. Poe diz que apenas o olhar de um observador atento pode apreciar a fratura que já existia. A primeira coisa não é a harmonia, mas a fratura, brecha e a incompatibilidade. Não há paz na terra, nem abrigo dos soberanos, nem segurança do Leviatã. Não há harmonia pré-estabelecida. Uma política sem fissuras, sem lágrimas, sem refrações é impossível. E, claro, também é catastrófico. Qualquer desejo de restaurar uma comunidade em que tudo se encaixe envia a democracia para o lixo.
Aí poderíamos recuperar as leituras da psicanálise: quando você tenta realizar um objeto, geralmente é profundamente decepcionante. Nunca enche.
Porque esse objeto não existe. Porque é uma distorção imaginária sua, porque não existe objeto perdido. Você não pode recuperar um objeto que supostamente perdeu, porque esse objeto, como você pensa, nunca existiu. Essa comunidade de abrigo, quebra-mar, refúgio, ventre, não existe, nem existirá nem existiu. O que a esquerda tem que fazer é propor outras reuniões. Não é voltar atrás ou voltar, mas sim construir a partir do presente com perspectivas futuras. O que está em jogo não é definir um novo conjunto de benefícios e direitos, o que estamos em jogo é traçar um novo modo de vida. Não há nada mais material do que isso.
Embora nenhum ator político consiga terminar o seu projeto, todo projeto político é um potencial fracasso, algo que entra em conflito com os discursos vitoriosos de qualquer ator político a ser considerado. Falhas potenciais iluminadas com imagens de vitória. Não fomos feitos mais para perder do que para ganhar?
Todos nós que temos certa influência em Lacan pensamos que toda vida é perda (risos). Ontologicamente, quem tem medo de perder está perdido. Quando Lacan diz que tudo é perda, ele nos diz que não existe harmonia original que devamos preservar. O que estas esquerdas e direitas partilham é que deve haver o que os gregos chamavam de Arkhé: um princípio, uma ordem, um fundamento. É a posição do tio Gilito, do constipado, daquele que guarda tudo, daquele que busca e almeja a harmonia. Mas a perda é uma coisa e a derrota é outra. Nem tudo são derrotas. Historicamente, há acontecimentos emancipatórios que desafiam a ordem determinada existente e a distribuição de funções estabelecida. É quando irrompe a parte dos que não têm parte, ou como diria Jean-Luc Nancy, “a comunidade dos que não têm comunidade”. É importante saber que nem tudo é derrota e que, à medida que novas formas de vida forem fundadas, elas estarão novamente sujeitas a outras distribuições de funções. E assim por diante até o planeta desaparecer. Não tenha um final feliz.
Agora, só porque não existe final feliz não significa que não haja vitórias. Há momentos em que são fundadas novas instituições e coletivos de igualdade. E aqui temos que lutar. A direita fala do ressentimento, não da liberdade, porque a liberdade é inimiga da obediência. Liberdade não é submeter-se aos déspotas: nem à ditadura dos mercados nem à burocracia dos Estados. Liberdade é a não submissão a poderes arbitrários. A liberdade é alcançada libertando-se. O que disse Marcelino Camacho sobre “Como reivindicar o direito à greve?: fazendo greve”. Como a liberdade é reivindicada? Libertar-nos das estruturas de dominação que nos dilaceram. O oposto da liberdade não é a necessidade (como para os kantianos), mas a obediência.