14 Mai 2024
Esta é uma ocasião em que a psicanálise pode fornecer ferramentas à política para interpretar esta época, para entender por que o ressentimento social e a amargura podem influenciar no humor e nos levar a tomar decisões e questionar vontades. É o que a psicanalista francesa Cynthia Fleury compreende em seu livro Curar o ressentimento (editora Bazar do Tempo), no qual explica seu modo de ver o estado de ebulição do mundo.
Recentemente, Fleury escreveu que a luta contra “o rancor é o verdadeiro sentido da terapia”. Voluntariamente ou não, a filósofa vai ao limite desses conceitos para levantar hipóteses políticas sobre o mundo de hoje. Aborda este assunto nesta entrevista, realizada por e-mail, poucos dias antes de sua chegada a Buenos Aires, onde participará da mesa de abertura de A Noite das Ideias – 2024.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 08-05-2024. A tradução é do Cepat.
O lema do encontro será “Linhas de falha”. Como o relaciona com seu pensamento em geral e com a sua apresentação em particular?
Vivemos em um mundo que está sendo colocado à prova por um acúmulo de vulnerabilidades sistêmicas: pandemias, inundações, aquecimento global, movimentos migratórios, megaincêndios, terrorismo... e isto está abalando tanto a vida dos indivíduos quanto a dos sistemas sociais e políticos. Em A Noite das Ideias, vou passar por todas essas metamudanças, com a digitalização do mundo e a era do Antropoceno no topo, para explicar como estão impactando em nossas vidas, nossas formas de ser, nossa saúde física e mental, gerando muita ansiedade psíquica, inclusive medo do colapso e ressentimento.
Todos nós temos a possibilidade de nos tornarmos amargos e ressentidos?
O impulso do ressentimento está presente em todos nós. Todos nós experimentamos ruminações de pensamentos sombrios, pensamentos hostis e pensamentos de desvalorização de nós mesmos e dos outros. No entanto, nem todo mundo se vê afetado pelo ressentimento, no sentido deste sentimento se enraizar profunda e duradouramente em seu interior. Felizmente, a maioria das pessoas é capaz de sublimar o seu ressentimento, ou seja, de superar a sua tentação ressentida, libertando-se dela e redescobrindo o seu poder de agir, de esperar algo dos outros e do mundo.
Freud e Lacan detectaram o impacto da amargura e do ressentimento e como tratá-los na consulta?
Digamos que Freud definiu com precisão a capacidade de sublimação como o único antídoto contra a pulsão de morte e o ressentimento. Sublimar é se distanciar dos instintos primários, simbolizar, ser capaz de aceitar a frustração, não considerar que toda renúncia, todo limite, produz uma despossessão de nós mesmos. O trabalho analítico e filosófico, qualquer trabalho crítico sobre si mesmo, também sabe distinguir entre o sofrimento vivenciado, inclusive a injustiça vivenciada, e o ressentimento que acreditamos ser o resultado.
Isto é epistemologicamente falso: o ressentimento não é uma tradução psicológica e política direta da injustiça e do sofrimento vivenciados. Você pode estar ressentido sem nunca ter vivido uma injustiça, um sofrimento real ou mesmo um trauma. Ao contrário, você pode ter passado pelos piores traumas e não sentir nenhum ressentimento.
A amargura leva à depressão? Também pode provocar ansiedade?
A experiência da amargura é uma prova e, como toda prova, exige que o sujeito reconfigure sua forma de ver, adapte-se, ative as funções inibitórias do cérebro, ou seja, saia dos mecanismos de repetição e invente. A amargura produz mal-estar, mas não necessariamente depressão, ainda que possa estar correlacionada com sentimentos ansiosos. No entanto, não é possível evitar a penúria, a amargura, a experiência do desencanto, a finitude, a morte, o luto e a adversidade. Para resistir a tudo isso, o sujeito se vê obrigado a inventar uma espécie de dança com estes acontecimentos.
O rancor e o ressentimento podem ser positivos?
O que “mantém erguido” um sujeito? O que mantém erguida uma sociedade? Não é violência, nem o ressentimento, mas a sublimação da violência. Não a negamos, mas a sublimamos, tanto através da simbolização individual como através das forças de sublimação coletivas da educação, da cultura e do cuidado em geral. Parece que hoje somos cada vez menos capazes disto. A partir daí, a violência se apodera de nós e tudo pode acontecer: guerra civil (stasis) ou guerra exterior (polemos), mas, claro, não a política da forma como a definimos no Estado social de direito.
Sei que preferiríamos acreditar que o ressentimento é a tradução política exata da injustiça, mas infelizmente isto está completamente errado. É possível vivenciar a pior injustiça, o pior sofrimento, sem jamais produzir ressentimento, do mesmo modo que é possível jamais ter vivido um trauma e continuar sentindo ressentimento.
Até que ponto um ressentimento pode se tornar violento?
Não se trata de negar que existem injustiças intoleráveis e que devemos combatê-las politicamente com todas as nossas forças. Para a pergunta se o ressentimento é o melhor motor do progresso histórico, a resposta é não. No ressentimento, o sujeito se torna incapaz de compreender a beleza do mundo. Tudo é difamado e desvalorizado. No entanto, para se manter vivo e mentalmente saudável, o sujeito precisa se alimentar do mundo. Quando se está preso no odor da difamação, é como se a pessoa não respirasse nada além de ar viciado e poluído, e se fere internamente e produz uma estratégia de destruição.
Em Nietzsche e Scheler, o ressentimento é definido como uma forma de autoenvenenamento, uma ruminação negativista dolorosa, uma intoxicação que se torna obsessiva. O aprofundamento do ressentimento se une, então, a um delírio de vitimismo e à incapacidade de agir. Esta última, esvaziada da sua substância, transforma-se por vezes em ação violenta. O ressentimento é sintomático do ser humano e remete a leis psíquicas. Pode se ver mais ou menos acentuado e reforçado por condições externas mais objetivas, como a insegurança econômica, social e cultural que reforçam este impulso.
E o que acontece quando esse estado de amargura é compartilhado socialmente? É um assunto que pode condicionar a democracia?
O desafio para um psicanalista ou um filósofo político e moral é compreender por que alguns indivíduos desenvolvem a “capacidade” de lutar contra o ressentimento e outros não, e sobretudo como. Para proteger o nosso Estado de direito, podemos configurar nossas instituições de tal forma que também sirvam para lutar contra o ressentimento coletivo, dando aos cidadãos as ferramentas para resisti-lo. O ressentimento não pode ser o principal motor da história, a menos que queiramos orquestrar seu contexto retrógrado e reacionário.
No entanto, a democracia e os sistemas políticos podem sofrer amargura? É algo que se pode entender como uma psicopatologia coletiva, uma epidemia social?
O período em que vivemos contém condições objetivas que reforçam este impulso. A degradação das sociedades ocidentais e a percepção de degradação das classes médias e trabalhadoras parecem validadas pelas crises de moradia, de poder aquisitivo e de desemprego, e pela mercantilização da sociedade, que dá uma sensação de redução e mercantilização do indivíduo. Se nos falta dinheiro, perdemos necessariamente o acesso a coisas que, no passado, eram transmitidas de outra forma, por meio de formas de contratualização mais abertas e não monetárias.
A intensificação e generalização da mercantilização das trocas leva a um sentimento em que o indivíduo é definido pelo seu poder aquisitivo. É um fato que, há cerca de vinte anos, a precariedade e a metropolização que desvitaliza as regiões se tornaram uma realidade. Há muitos nomes para isso: “perdedores” da globalização, “supranumerários”, “inúteis”, “invisíveis”. Estamos, portanto, em um momento em que o impulso do ressentimento pode ser reativado. Este impulso pode se acalmar ou, ao contrário, explodir.
Todos os sistemas políticos podem produzir ressentimento, mas a democracia tem a exigência estrutural de restabelecer a igualdade, o que a torna ainda mais frágil do que um sistema autoritário, totalitário ou ditatorial que não se propõe a produzir um sistema igualitário. Esta exigência torna a democracia ainda mais sensível ao fenômeno do ressentimento.
Você escreveu um livro intitulado ‘Ce qui ne peut être volé: Charte du Verstohlen’, com o designer Antoine Fenoglio. O que não podem roubar de nós?
Quando escrevemos a Carta de Verstohlen, com Antoine Fenoglio, sem dúvida, buscava-se defender, de forma muito prática, esta ideia de humanismo na cidade. Buscamos inspiração em diversas cartas de arquitetura, urbanismo, ordenamento do território, patrimônio etc.
Muitos textos serviram como marco, de forma mais ou menos prescritiva e restritiva, e com influências muito variáveis para o nosso urbanismo, nossas formas de viver, de conservar e restaurar o patrimônio, de ordenar o território, de pensar em nossas “habitabilidade”, do infinitesimal à grande escala: As Sete Lâmpadas da Arquitetura (1849), Movimento Arts and Carfts (1860), Manifesto da Bauhaus (1919), Carta de Atenas (1931; 1933), Carta de Veneza (1964), Design para o mundo real (1971), Declaração de Amsterdã (1975), Carta de Nairóbi (1976), Declaração de Vancouver (Habitat I, 1976), Carta de Itaipava (1987), Carta de Washington (1987), Carta de Aalborg (1994) , Carta de Burra (1999), Carta de Cracóvia (2000), Declaração de Quebec (2008), Habitat III (2016), Manifesto Care (2020).
Queríamos escrever uma carta que defendesse dez pontos inegociáveis para viver no mundo e alcançar a “boa vida”. Nada menos. Dez pontos para dizer o que não podem nos roubar: o acesso ao horizonte, à perspectiva, à beleza, as quatro funções do silêncio, a generatividade do vulnerável, o tempo longo, a possibilidade de permanecer e de vir a ser, a saúde física e mental, ou simplesmente a qualidade de vida, o cuidado com os mortos, o direito de experimentar, a arte do furtivo – da qual deriva o termo Verstohlen, que significa furtivamente em alemão –, as humanidades, a necessidade de indagar...
“Pinte a sua aldeia e pintará o mundo.” Poderíamos reutilizar esta frase, atribuída a Leon Tolstoi, e pensar no consultório psicológico como uma janela aberta para o que acontece no mundo?
O momento da sessão – e este lugar do escritório e do divã – é muito emblemático da relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, pois o que é contado aí traça tanto a novela familiar e sua neurose quanto o que podemos chamar de novela societal e suas múltiplas disfunções. Comecei uma análise ainda adolescente e não tinha vocação de analista. O que estava em jogo era a “história familiar”, uma compreensão melhor dos pais, do luto e da intimidade.
Teoricamente, eu tinha dividido as duas coisas na minha cabeça: por um lado, a via universitária com a tese de metafísica e, por outro, a via mais pessoal. Depois, as coisas mudaram, porque a minha carreira de professora-pesquisadora, estudando as ferramentas da regulação democrática e as suas disfunções, levou-me ao encontro com um novo tipo de interlocutor, especialmente ligado ao sofrimento no trabalho. Tornei-me analista, bastante tarde, para escutar a especificidade deste sofrimento eminentemente político.
Sobre o que os pacientes falavam? Da disfunção do Estado de direito em geral, do delírio do mundo econômico, da desumanização do mundo do trabalho. Sua “vulnerabilidade” pseudopessoal ficava muito atrás, sua “história familiar” praticamente ausente. O centro da atenção era o colega, o chefe, a meta inatingível, a pressão inútil, a precariedade, as vexações narcisistas. E quando você se distanciava disso, emergia o absurdo do mundo, os resíduos, a energia nuclear, o terrorismo. De fato, era o nosso Estado de direito o que desconstruíamos no divã.
Existe um continuum entre a filosofia política e a psicanálise, no sentido de que, em um Estado de direito, a palavra do sujeito é absolutamente constitutiva do questionamento político e institucional, e na sessão analítica, falar de neurose familiar abre espaço (muito) para falar de psicose coletiva. Passo parte do dia trabalhando sobre questões teóricas e, à tarde, escuto as pessoas que enfrentam a dissonância entre os princípios e as práticas democráticas.
A França tem muitos intelectuais notáveis em todos os campos (Foucault, Deleuze, Derrida, Lacan, Ricoeur...). Até que ponto você sofreu influência e contou com a ajuda deles e até ponto se tornaram figuras sufocantes para pensar o novo?
Muitos autores desempenharam um papel decisivo em minha genealogia intelectual, em especial a Escola de Frankfurt, de Adorno a Axel Honneth, mas as referências filosóficas contemporâneas mais francesas também desempenharam um papel importante: Foucault e a sua filosofia clínica, Ricoeur, Lévinas, Jankélévitch.
O mapa democrático se transforma constantemente a cada mudança de governo. Há cerca de dez anos, a ascensão dos partidos de extrema-direita e conservadores abala o mundo (Trump, Bolsonaro, Meloni, Milei, Erdogan, Orbán, Vox...). Neste caso, se voltarmos no tempo, que sintomas ou sinais foram dados pelo sistema para o surgimento desses partidos? Podemos considerá-los fruto da amargura e do ressentimento?
O fascismo – como os grandes totalitarismos – não é apenas um momento histórico. É também um momento psicológico. Como tal, pode voltar a ocorrer. Seria um erro acreditar que é um fenômeno do passado. É possível que as experiências psíquicas individuais de um grande número de pessoas confluam e, juntas, deem origem a um movimento em que nos vejamos coletivamente arrastados. Não vamos mentir para nós mesmos: nosso tempo é o momento de um ressentimento muito forte e é um fenômeno que pode ser observado em muitos lugares do planeta.
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“Nosso tempo é o momento de um ressentimento muito forte”. Entrevista com Cynthia Fleury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU