28 Agosto 2023
A pandemia gerou muito sofrimento na sociedade mundial, mas, ao mesmo tempo, estimulou diversos intelectuais a escreverem sobre as primeiras consequências, em diferentes populações e dimensões, da propagação do vírus. Um deles é o conceituado médico psiquiatra e psicanalista argentino Santiago Levín, autor de Volver a pensarnos, que não pensou em um livro técnico do ponto de vista da teoria, mas, sim, analisou os problemas deixados pela pandemia do ponto de vista psíquico, com um olhar muito pessoal e, em alguns casos, vivencial.
Ao longo de 160 páginas, o ex-presidente da Associação de Psiquiatras da Argentina (APSA) esmiúça problemáticas como a depressão e a ansiedade, relembra casos de pacientes que atendeu, reflete sobre a morte, menciona situações que ele mesmo viveu, mas sempre a partir de sua própria experiência como ser humano - não só profissional -, sem abandonar seu aspecto afetivo na narrativa. Mais do que um livro intelectual, é um livro escrito a partir dos próprios sentimentos que os dois anos de coronavírus despertaram em Levín.
Parafraseando Eduardo Galeano, Volver a pensarnos é um livro sentipensante. “Um dos títulos possíveis era Volver a encontrarnos e minha proposta foi mudar o verbo para ‘pensar-nos’, pois me parece que uma das coisas mais necessárias, neste momento da nossa cultura humana, é reativar a capacidade de pensar. Pensar como atividade reflexiva. E reflexiva sobre si mesmo, sobre nós mesmos, acerca do que estamos fazendo com nossas vidas, com nosso mundo, com as próximas gerações, com os projetos”, diz Levín em conversa com o Página/12.
A pandemia pegou o mundo de surpresa e permitiu ver de modo muito decisivo, segundo o autor, o grau de “fracasso civilizatório que gera um desastre ecológico sem precedentes, um tipo de vínculo distante da solidariedade e mais próximo do egoísmo e do hedonismo, gera cinco milhões de mortes de crianças menores de cinco anos por falta de alimentos no mundo, ou seja, quase uma pandemia de coronavírus por ano sobre a qual não se fala”.
Por outro lado, o psiquiatra apresenta um dado alarmante: “A pandemia permitiu ver uma onda de suicídios muito agravada por ela própria, especialmente na faixa infantil e juvenil, como nunca tinha sido visto antes. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, até 2050, a depressão será a principal causa de doença em todo o planeta, superando - como já acontece neste momento - as doenças cardiovasculares. Se a depressão passará a ser a característica mórbida número um de nossa civilização, algo estamos fazendo e pensando muito mal como civilização”, alerta Levín.
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 21-08-2023. A tradução é do Cepat.
No livro, diz que uma menina, durante a pandemia, fez você ver que, além de todas as consequências que o vírus trouxe, estão também as de ordem subjetiva. Como observou isto?
Isso foi uma cena em uma praça pública. Uma mulher estava sendo fotografada pelo seu companheiro, que lhe disse: “Esta foto é sem máscara, tire a máscara”. Ela tirou a máscara. Eram pessoas de meia-idade. E uma menininha que vinha com mais duas amiguinhas, com suas máscaras obrigatórias, olhando a cena, cobriu o rosto e disse: “Opa, opa, opa, deu para ver tudo”.
Isso me levou a pensar, sem pretender qualquer originalidade a este respeito, que para toda uma geração de meninos e meninas pequeninos, que estava justamente na fase em que se começa a sair do grupo familiar primário e a compartilhar com companheiros e companheiras desconhecidos e a aprender os laços de solidariedade, crescer vendo que metade do rosto está coberto, por tanto tempo, certamente deixa a marca do proibido, do tabu, daquilo que não se pode olhar. Como se fosse a roupa íntima cobrindo o nariz e a boca.
Minha conclusão, ali, é que se isso acontece com uma menina em uma praça de um país do sul do mundo, quanto impacto na subjetividade geral a pandemia de coronavírus deve ter deixado em razão das mudanças bruscas em nossos costumes cotidianos, em nossa forma de criar laços, na interrupção dos beijos e abraços, nas famílias que pararam de se reunir.
Isso, fazendo uma análise exclusivamente de classe média, porque seria necessário ver também o impacto na subjetividade das pessoas que vivem em condição de pobreza, que não podiam manter o distanciamento social devido à superlotação e que não tiveram acesso ao Wi-Fi para ficarem conectadas e informadas 24x7. E o impacto que teve na subjetividade global o fato de que é a primeira pandemia na história humana da era digital.
Essa experiência de cataclismo e de final iminente só pode ser alcançada com uma interconexão proporcionada pela tecnologia digital, que tem tantas coisas positivas e tantas coisas negativas.
Ao longo do livro, ensaia várias definições de saúde mental. Qual é a que você pensa nesse tempo de pós-pandemia?
Penso que é preciso diferenciar ao menos quatro significados quando se usa o conceito de “saúde mental”. E, às vezes, misturam-se e nós que tentamos fazer comunicação não conseguimos nos entender ou fazer entender. “Saúde mental”, com letras minúsculas, é a saúde mental individual, quando se fala da própria saúde mental ou de uma pessoa.
Existe também a Saúde Mental, que escrevemos com letras maiúsculas, que é saúde mental pública, como política pública. As políticas públicas relacionadas à saúde mental não incluem apenas a saúde, mas também educação, comunicação, moradia, ecologia, vínculos, subjetividade etc.
Depois, existe a saúde mental como campo disciplinar, que é um campo figurado no qual convergem diferentes disciplinas: Medicina (com a Psiquiatria), Psicologia, Antropologia, Direito, Filosofia. E um montão de saberes e práticas não profissionais que constituem o campo da saúde mental.
E em quarto lugar, a saúde mental é também um eixo transversal, um ângulo a partir do qual se pode analisar qualquer instante do acontecer humano: na gravidez na adolescência, nas tentativas de suicídio, nas atitudes frente à morte, nas concepções sobre o amor, na existência ou inexistência de discursos de esperança em relação ao futuro, nas concepções sobre o sentido da vida. Tudo isso é também saúde mental de um ponto de vista mais transversal e mais filosófico.
Quais são as diferenças entre a subjetividade e a subjetividade social, mencionadas por você no livro, e como as analisa nos tempos atuais?
Subjetividade é um conceito não muito antigo. Na realidade, está muito próximo de nós. Há algumas décadas, confundia-se psiquismo com subjetividade, na teoria. Alguns autores na Argentina, muito notoriamente Silvia Bleichmar, contribuíram para distinguir o que é o psiquismo, como aquilo que é mais universal (do ponto de vista freudiano transcultural, modos de funcionamento do aparelho psíquico na concepção freudiana), de subjetividade, ligada a formas que vão mudando de tempos em tempos, nas quais os sujeitos sociais concebem a si mesmos.
Isso tem a ver com os valores, com a ideia de futuro, com uma certa ideia de política, que vão conformando a subjetividade da época, o que cada sociedade considera que é um sujeito pertinente, um sujeito desejável, um sujeito adaptado. Isso tem a ver com valores que são transmitidos através das instâncias produtoras de subjetividade, que são classicamente a educação, a escola, a Igreja, a religião, a família, o cinema, as redes sociais, a comunicação estatal.
Então, existem diferentes tipos de subjetividades e um modelo de funcionamento psíquico que coexistem na mesma pessoa. Em momentos de grandes crises, produzem mudanças na subjetividade que precisam de tempo para serem compreendidas. A pandemia desvendou e revelou fenômenos, alguns dos quais se desconfiava e outros absolutamente novos. E precisaremos de décadas de estudo, de teses de doutorado, de ensaios, de arte, de ficção, literatura, cinema e teatro para terminar de compreender o efeito a longo prazo de um fenômeno como a pandemia na subjetividade mundial.
Por exemplo?
Uma das coisas que mudou, que consideramos positiva, apesar de ter uma origem dolorosa, é que estamos falando mais do que nunca de saúde mental. E isto foi dito pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, em maio de 2020, muito precocemente, no início da quarentena no Ocidente. Disse: “Vamos prestar atenção na saúde mental porque haverá um aumento muito grande na demanda por cuidados em saúde mental”.
Naquele momento, líamos aquela declaração com muita surpresa porque a máxima autoridade institucional do planeta estava falando de saúde mental. Algo raríssimo. A saúde mental é a Cinderela da saúde, a que tem menos orçamento, a que é considerada um verso, um desenho na lousa, a que é considerada um gasto, a que dá pouco dinheiro ao sistema, só gasta, gasta e gasta. E naquele momento a saúde mental parecia ter conquistado maior valor social, não apenas como um direito garantido por leis e convenções internacionais, mas também como um objeto de atenção na construção de um tipo de vida desejável, melhor do que a que temos hoje.
E isso está relacionado às horas de trabalho, tipo de trabalho, trabalho remoto, com uma nova geração de jovens que não quer trabalhar dez ou doze horas por dia, que não quer fazer plantão, que não quer fazer trabalhos sacrificados. Também está relacionado a novos modos de sensibilidade ao que acontece com os outros. E aí nós, profissionais da saúde mental, passamos a ser requeridos com uma frequência que antes era incomum.
No livro, você questiona se nós, humanos, poderemos encontrar uma maneira de viver juntos que não prejudique ninguém. O que responder, a partir do fato de que se esperava um mundo mais solidário, após a pandemia?
A partir da Associação de Psiquiatras da Argentina (APSA), juntamente com uma fantástica equipe de comunicadores, propusemo-nos a falar de “solidariedade de rebanho”, fazendo um jogo de palavras com a tão escutada “imunidade de rebanho”, dando a entender que a pandemia, como um fenômeno global, não era apenas um assunto biológico ou microbiológico, mas que também era realmente uma questão profundamente cultural, de convivência, que volta a colocar sobre a mesa a necessidade de redesenhar uma utopia, que é uma das palavras que está no subtítulo do livro. E também de redesenhar uma política, tendo em conta essa utopia.
Eu acredito que a pandemia não deixa um mundo melhor, deixa um mundo pior. Todos nós perdemos. A pandemia é a perda pura. Portanto, o clima predominante é de luto. Embora haja momentos mais hipomaníacos de triunfo ou de “tudo já acabou”, voltamos a nos deparar com um mundo com a riqueza mais concentrada, com grandes crises bélicas, econômicas, humanitárias, de superpopulação, com novas crises de saúde que antes desconhecíamos. E isto deveria nos levar a perguntar em que tipo de mundo gostaríamos de viver.
É aí que entra o conceito de utopia. Utopia entendida como propunha Eduardo Galeano: aquilo que empurra para frente, que nunca se alcança, mas que vai puxando para frente, levando a realizar coisas para se aproximar dela. E tudo o que se faz para se aproximar de um mundo melhor é o que se chama de política, no melhor dos sentidos. Não a política para enriquecer uns à custa de outros, mas a política como a atividade humana mais elevada e mais amorosa, que é a de unir forças para que não falte nada às pessoas.
A palavra “solidariedade” é muito importante porque volta a colocar sobre a mesa que nós, seres humanos, somos todos iguais do ponto de vista filosófico, ontológico e legal, mas cada um tem suas próprias fragilidades. E em diferentes fases da vida, todos precisamos de alguma ajuda. É aí que a solidariedade como instrumento civilizatório, inclusive como estratégia política, que tantas vezes salvou a humanidade, pode ser um fundamento ético de uma construção narrativa de futuro que gere esperanças, pois sem esperanças também não há saúde mental. O mundo, do modo como está, é absolutamente inaceitável.
Como agir para que se torne aceitável?
Temos que fazer um debate sobre quais são os fundamentos éticos de nossas narrativas, que são as que depois são utilizadas na política.
Diz também que não há saúde mental sem reflexão sobre as violências. Acredita que a sociedade amadureceu graças à luta das mulheres?
Sim, sem dúvida. Os feminismos abriram os olhos de nós todos e todas. Esse é outro aspecto que devemos levar em conta. Isso é prévio à pandemia. O fato de que as tarefas de cuidado geralmente recaiam sobre corpos com anatomia feminina deve ser revisado. Os discursos que hoje chamamos de “movimentos ecológicos”, “movimentos feministas”, são aqueles que hoje trazem maior dinamismo e capacidade de pensar em um futuro melhor.
Não há um futuro melhor sem feminismo, sem igualdade de gênero. Não há um mundo melhor sem considerar o desastre ecológico que estamos descarregando sobre a nossa própria casa. E também não há futuro melhor sem uma revalorização da política, que é o instrumento de mudança. E a saúde e a educação são dois pilares indispensáveis em qualquer formulação de uma utopia.
Os países que se admira, que ocasionalmente tiveram tempos de prosperidade e justiça social, deram muita atenção à educação e à saúde. É a educação que nos torna livres, que nos permite gerar pensamento crítico e criativo. E a saúde não apenas como a ausência de doença, mas como reflexão sobre esse processo que significa a própria vida, que culmina na morte, que tem acidentes pelo caminho.
Saúde não é estar sempre contente, nem sempre saudável. Por isso, é muito importante a definição que se tem de saúde e de saúde mental. A saúde mental está, em todo caso, na flexibilidade, na capacidade de sentir amor e na capacidade de sentir pena quando o outro sente pena. E aí está a solidariedade. A saúde mental que me interessa como definição é aquela que leva a estender a mão para ajudar alguém conjunturalmente em uma situação de maior fragilidade. A doença mental, a loucura, é um desses casos de maior fragilidade que requer o cuidado de todos.
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“Sem esperanças não há saúde mental. O mundo, do modo como está, é absolutamente inaceitável”. Entrevista com Santiago Levín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU