29 Agosto 2023
A vida em sociedade traz sofrimentos, decepções, repressões, limites. Há quase cem anos, Freud escreveu sobre tudo isso em O mal-estar na cultura, dando conta da perda da satisfação pessoal que implica viver com outros, entre muitos outros argumentos. Nesse sentido, quantas vezes o ser humano pode ter se sentido vítima de uma situação injusta e ter ficado irritado, sem poder realizar outra ação além dessa?
Para Cynthia Fleury, prestigiada filósofa e psicanalista francesa, o ruminar vitimário, o reviver constante de feridas que não cicatrizam, é de alguma forma o novo mal-estar da cultura e pode, inclusive, destruir a harmonia democrática. Seu último livro, Curar o ressentimento: o mal da amargura individual, coletiva e política, aborda esses sentimentos, tanto individuais quanto coletivos.
Fleury fundou a Rede Internacional de Mulheres Filósofas, com o apoio da UNESCO, e é diretora da Cátedra de Filosofia na Unidade de Psiquiatria e Neurociências do Hospital Saint-Anne, em Paris.
A entrevista é de Alexandre Czerwacki, publicada por Clarín, 26-08-2023. A tradução é do Cepat.
Para você, o que é a amargura e qual o risco de que se transforme em ressentimento?
O amargor, o amargo, é um sabor que existe na vida. Para não afundar na amargura e no ressentimento, é preciso saber sentir o sabor do amargo. Todos nós passamos por provações trágicas, por grandes injustiças, e é falsa a crença de que o ressentimento é a tradução psíquica e política direta desses traumas e que passaremos por esse sentimento.
Existem indivíduos que passaram pelas piores tragédias e nunca desenvolveram ressentimentos, bem como, ao contrário, pessoas que estão presas ao ressentimento, sendo que, em termos objetivos, sua vida não é de forma alguma catastrófica.
Então, como se sai desse ressentimento?
O ressentimento é um fracasso da alma, do coração e da mente, mas reconheçamos que uma relação com o mundo que não passa por essa prova talvez não esteja totalmente testada. Saber admirar, reconhecer o valor dos outros, é um verdadeiro antídoto contra o ressentimento.
A amargura é um estado que vem de nossa infância ou pode ser consequência da forma como gerimos as nossas emoções na vida?
Diria que é um sentimento que se instala a longo prazo, é o resultado de diversas incapacidades do sujeito, desde a sua infância, em sublimar as frustrações que pode enfrentar. O ressentimento nasce em pessoas que não conseguem superar o que chamamos de angústia da separação. A necessidade de reparação, a frustração, a necessidade de proteção, tudo isso está relacionado à infância.
Por isso, acredito que é preciso apreciar o sabor da amargura, saboreá-la sem desfalecer. A amargura é o preço a pagar pela ausência da ilusão. Uma amargura real que, uma vez sublimada, permite surgir uma doçura possível, extremamente sutil, tão vulnerável o quanto se queira, mas de grande e magnífica raridade.
Ou seja, em algum momento da vida, é preciso saber se relacionar com o sabor amargo...
Digamos que é imperativo não transformar a experiência do amargo, de passar por situações adversas, em amargura, em ressentimento. Não se pode impedir o amargo, mas, em grande medida, a amargura pode ser contida.
Como você relaciona essas emoções do ponto de vista coletivo, diante das injustiças sociais?
Embora o indivíduo deva ser lembrado de sua responsabilidade, não podemos negar o compromisso dos Estados e das políticas públicas. E os Estados devem criar condições objetivas de pleno desenvolvimento das pessoas e fazer tudo o que for possível para lutar contra a propagação das injustiças.
Nesse momento, é preciso entender que quando um indivíduo cai no ressentimento, de forma alguma apresenta o gesto político mais eficaz para que se avance na justiça e no progresso da sociedade. O ressentimento é um motor mortífero, letal para a história política. E esse motor ativa a vingança, não o advento da justiça.
O que nos dizem as diferentes revoltas, em diversas sociedades, como na própria França e na América Latina?
Todas as democracias ocidentais assistem a esse fenômeno com traços de ressentimento, porque grande parte dos indivíduos se sente desclassificada, ao passo que outra parte se sente humilhada, presa na vida indigna. Contudo, não é conveniente generalizar.
Tomemos como exemplo o caso dos “coletes amarelos”, o movimento de protesto na França. Alguns estavam imersos no ressentimento, outros não. Por isso, não tiveram as mesmas atitudes e os mesmos comportamentos. Os primeiros destruíram, vandalizaram; os segundos tentaram fundar ações políticas, assembleias autogeridas, fizeram propostas para sair da crise.
Em seu livro, diz que o ressentimento nas sociedades pode se traduzir em ódio ao imigrante. Observa essa tendência em ascensão?
Quando o indivíduo cai na armadilha do ressentimento e este se instala em seu coração, só restam duas vias: o ódio contra si mesmo, com o possível risco de se afundar em uma depressão ou, então, o ódio contra os outros, com a consequente designação do outro como bode expiatório, que costuma ser o estrangeiro, o imigrante, o desempregado, entre outros.
Em definitivo, estamos diante de sociedades que crescem com mais amargura?
Vamos dar a triste notícia: acreditávamos que a democracia iria nos proteger, mas não é o caso. Não conseguimos educar os indivíduos o suficiente para lhes permitir sublimar sua frustração e seu impulso de ressentimento. O ressentimento como motor da história nunca produziu justiça, apenas violência e destruição.
Se quisermos uma autêntica ação política, temos que reaprender a canalizar a violência e, então, sublimar a frustração e ter o controle sob todas as derivas do ressentimento. A resistência ao ressentimento é o próprio ato pelo qual uma cultura, uma civilização, é digna desse nome. O ressentimento não é a tradução exata da desigualdade socioeconômica, é uma disfunção psicológica, uma alienação que coloca em perigo as democracias.
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“O ressentimento como motor da história nunca produziu justiça, apenas violência e destruição”. Entrevista com Cynthia Fleury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU