06 Junho 2024
É uma grande emoção ser recebido na Pontifícia Universidade S. Anselmo, em Roma, por Marinella Perroni, onde leciona Novo Testamento. Doutora em Filosofia e doutora em Teologia, Perroni presidiu a Coordenação Teológica Italiana (CTI). Ela é uma das mais importantes e ouvidas teólogas do país. Suas publicações são numerosas no âmbito do Novo Testamento e ela dirige, com Stella Morra, a série “Sui generis” para a editora Effatà.
A entrevista é de Stefano Zecchi, publicada por Rocca, n. 12, 15-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bom dia, Marinella. Como está?
Não é fácil responder. Posso dizer que estou bastante bem se penso apenas na minha situação individual. Porém, se tento pensar em mim no mundo, fica difícil responder que estou bem.
Há muitos anos “Jogos de guerra” era um filme e hoje, infelizmente, é morte e desespero, fome e destruição.
Não apenas ouvimos os seus ecos distantes, mas percebemos o seu horror na nossa casa, dentro de nós. E as únicas sentinelas parecem ser os nossos jovens: gritam, protestam, talvez de forma desordenada, mas certamente de uma forma muito mais composta que os senhores da guerra, completamente insensíveis ao grito daqueles que pedem paz e justiça. É assim que estou.
…e a Igreja Católica, como está?
Se é difícil explicar o estado da minha “saúde” pessoal, dizer algo sensato sobre a saúde da igreja católica é quase impossível. A igreja católica é algo imenso e fugidio, uma realidade que pertence ao mundo e partilha em todos os sentidos o seu destino, mas que, além disso, é chamada a prestar contas da sua fé e da sua esperança ao seu Senhor.
Um bilhão e duzentos milhões de pessoas que vivem nas mais diversas situações, desde os horrores da perseguição pela fé até às formas mais arraigadas de indiferença para com Deus e o mundo.
A Igreja Católica, por outro lado, não é diferente de todas as outras igrejas históricas.
Pelo menos no que chamamos de “Ocidente”. Uma hemorragia constante de fiéis que deixam as comunidades cristãs está aí para todos verem. Em alguns casos, assume a forma daquilo que, embora indevidamente, é chamado de "desbatismo". Para além dos nomes, o significado é claro: a recusa de pertencer a uma comunidade de fé na qual você foi admitido sem o seu conhecimento e que - este é o ponto decisivo - lhe pede para assumir uma história feita de páginas radiantes, talvez até heroicas, mas também de muitos erros, injustiças, ofensas à dignidade dos homens e das mulheres quando não ao próprio Deus. Não se trata de uma crise de necessidade de religião, de referência ao divino, caso contrário não seria possível explicar a grande influência que têm as diversas seitas que, especialmente no mundo protestante, oferecem uma alternativa "fácil" à pertença a uma igreja histórica que carrega o peso das suas culpas de ontem e de hoje. Um fenômeno do qual, no entanto, nem mesmo a igreja católica está excluída, com a sua abundância de formas de superstição religiosa que só podem deixar desconcertados.
Pertencer a uma “igreja histórica” exige a capacidade de exprimir a própria fé e esperança nos meandros da história, feita de um hoje muitas vezes desanimador e de um futuro imperceptível, para não falar de um passado desconcertante. A fé judaica e cristã, porém, não podem existir sem história, não podem se deixar entregar ao mito.
Você é uma das mais importantes teólogas e biblistas italianas. O que significa ser teólogas hoje?
Se eu tivesse respondido ontem a essa pergunta, teria dito com firmeza que significa ficar à margem, ser condenados à insignificância. Afinal, o próprio Papa Francisco disse que era melhor que os teólogos ficassem fechados na sua própria ilha, por serem inúteis para aqueles que vivem no continente. Ontem à noite, porém, fui ver um espetáculo em que Neri Marcorè encenou a Buona novella de Fabrizio de André, acompanhando-a de longos comentários sobre os textos dos evangelhos, principalmente os apócrifos, mas também os canônicos. Não só o fez com uma seriedade que fascinava, mas soube explicar os resultados da pesquisa histórica e exegética das últimas décadas com uma linearidade que encantou o público, finalmente libertado de esquemas interpretativos incompreensíveis por serem totalmente inaceitáveis e por laços e lacinhos moralistas que hoje ofendem até o bom senso. Percebi que também o trabalho dos exegetas pode ser útil se encontrar os canais adequados da divulgação e que as pessoas podem reconciliar-se, se não com uma consciência de fé, pelo menos com um conhecimento que não ofende a inteligência.
Em virtude do batismo, somos sacerdotes, reis e profetas, homens e mulheres. Infelizmente, quase sessenta anos depois do Concílio Vaticano II, os padres ainda têm um papel central, podemos dizer de poder, na vida da comunidade, os leigos, homens e mulheres ainda estão à margem e não são protagonistas na vida da Igreja, apesar do Papa Francisco. Há esperança de se chegar a uma verdadeira corresponsabilidade na vida da Igreja?
Apenas com uma condição: que se supere definitiva e finalmente o binarismo clero-laicato que garantiu a solidez da igreja medieval e que a igreja católico-romana continuou a apoiar de todas as maneiras em resposta à Reforma protestante, mas que hoje é o primeiro entrave a qualquer possibilidade de implementar aquelas reformas de que justamente a própria igreja católica tanto necessita.
Infelizmente - pode parecer inaceitável no início do terceiro milênio cristão - não conseguimos superar o obstáculo do reconhecimento do quanto a Reforma, positiva ou negativamente, deu à história da igreja nem, por outro lado, as Igrejas que saíram da Reforma parecem dispostas a uma aproximação finalmente capaz de dar à Europa, que já está em crise do ponto de vista político, o contributo de que necessita para redescobrir a ligação histórica entre as diferentes raízes da sua cultura. É a grande vergonha que está condenando as igrejas, todas elas, à insignificância, que favorece a desilusão e o abandono, que determina o declínio da confiança por parte dos fiéis. E, talvez, já seja tarde demais e nos livros de história se estudará o contributo que as igrejas cristãs deram ao declínio da Europa porque, em vez de se reconhecerem, de se perdoarem e de buscarem juntas novos caminhos, ficaram paralisadas dentro dos seus recintos.
Nas nossas liturgias dominicais, os leigos têm um papel marginal, não de protagonistas. O padre, infelizmente não preside, mas celebra, tudo está centrado não na assembleia eucarística, mas em quem preside. Um exemplo claro, a oração dos fiéis, é tudo menos dos fiéis, é para os outros, sem falar na reforma do missal... Como podemos mudar, como podemos nós, homens e mulheres, tornamo-nos protagonistas dentro da comunidade?
Infelizmente, se permanecermos presos em certos becos sem saída, acho muito difícil a possibilidade de tornar vivas as nossas liturgias. A liturgia deveria ser a expressão de uma igreja viva e, numa época em que a vida é medida também pela velocidade das mudanças, uma igreja velha e de idosos dificilmente encontra uma forma de acompanhar. A mudança de uma palavrinha ou de uma reverência vem sempre “de cima” e parece uma reforma imensa! Infelizmente, porém, é difícil sair disso: as liturgias vivas são o produto de comunidades vivas, mas é muito difícil para um “hospice” ser uma comunidade viva!
Será que os viri probati se tornarão uma realidade?
Talvez, quem sabe, quem sabe onde e quem sabe quando! Mas – perdoe a franqueza! - para mim parece um remendo (mais ou menos novo) num vestido velho. Pelo menos entre nós. Talvez possam realmente contribuir para sustentar o caminho de outras igrejas nacionais ou continentais onde está em curso o desenvolvimento quantitativo e qualitativo dos fiéis.
Mas: quais são os critérios de escolha e quais as condições? Se o coração da sua identidade não é a sua formação teológica e pastoral, mas a sua promessa de abster-se das relações conjugais, bem...
Em que ponto está a “Comissão sobre o diaconato das mulheres” convocada pelo Papa Francisco?
Dadas as circunstâncias, só poderia encalhar e encalhou. Por diferentes razões: a falta de autêntica vontade política de usá-la por parte de Francisco, a escolha das pessoas feita de tal forma que só poderia terminar na constatação da própria inadequação (a primeira comissão) e da própria inutilidade (a segunda). Acima de tudo, porém, o fato de a questão do diaconato fazer parte de todo o sistema ministerial da igreja católica que deveria ser reformado e não se trata de dar um agradinho às mulheres com um "diaconato feminino", talvez pensado como complementar àquele masculino e recortado no pacote de virtudes atribuídas à mulher ideal que os homens de igreja ainda sonham que deveria e possa existir! O diaconato não é feminino nem masculino, é o acesso ao ministério diaconal que deve ser possível a todos os batizados.
Estamos vivendo uma Terceira Guerra Mundial aos pedaços, como diz o Papa Francisco. Nesse contexto atual, as igrejas podem se tornar sinais e instrumentos de paz? O Evangelho da paz ainda faz sentido?
Gostaria de responder sem rodeios: as igrejas foram capazes de acompanhar as guerras com capelães e enfermeiras que garantiram pelo menos alguma forma de humanização do horror, foram (e ainda são!) também capazes de tecer louvores à “guerra santa” e de abençoar as armas: encontrar maneiras de excomungar as guerras ou pelo menos abençoar as armas da paz, entretanto, parece não ser possível...
Papa Francisco? Vox clamans no deserto! Onze anos se passaram desde a eleição do Papa Francisco ao trono de Pedro, qual a sua opinião sobre este pontificado?
Acaba de ser publicado na Alemanha um livro intitulado “O Papa da decepção”. Eu vi o índice: uma lista de promessas e expectativas e uma longa lista de desilusões. Acredito que em parte seja verdade, mesmo que às vezes o problema é a ingenuidade das expectativas. Depois dos dois pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, ambos caracterizados por fortes instâncias repressivas (basta pensar nas centenas de condenações de teólogos que foram impedidos de ensinar, quando não de falar!).
Talvez o Papa que veio do outro lado do mundo também estivesse investido de expectativas demasiado altas porque é uma doença católica projetar tudo sobre o Papa, uma espécie de apoteose in pectore que, normalmente, não pode acontecer. Na minha opinião este pontificado tem grandes méritos e o que podia fazer, depois de trinta anos ou mais, de sistemático congelamento das instâncias conciliares, o fez: mexeu as águas, fez circular o ar... foi um papado de semeadura, não de colheita. Veremos o que o futuro nos reserva.
A exortação apostólica Amoris laetitia e o esclarecimento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo suscitaram debate e perplexidade. O que pensa sobre isso?
Que infelizmente este pontificado tem o mérito de ter aceitado assumir na sua agenda problemas e questões que as pessoas vivenciam diariamente, mas nem sempre teve a inteligência para enfrentá-los com competência e visão ampla. Nem sempre os homens colocados nos lugares-chave para o exercício da autoridade foram escolhidos por Francisco com a necessária capacidade de seleção. Além disso, levamos também em conta a ameaça contínua e barulhenta de cismas por parte de redutos eclesiásticas tão vergonhosos quanto poderosos. Ser pontífice nunca é fácil, mas fazê-lo numa igreja mantida sob mão de ferro durante muitos anos é certamente ainda mais difícil: Francisco atua com os homens que tem à sua disposição.
Antes de concluir a nossa conversa, eu gostaria de lembrar uma pessoa querida por muitos de nós, Michela Murgia. Que lembranças você tem de Michela?
Os grandes lutos precisam ser seguidos de pelo menos um ano de silêncio. Para mim, acima de tudo, a emoção ainda é forte, acompanhada por uma espécie de negação em elaborar uma “memória”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Por uma comunidade viva e contemporânea. Entrevista com Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU