04 Mai 2024
"Entendo aqueles que se queixam da perda do sagrado. Mas estou convencido de que se conhecessem o sagrado como Jesus o viveu e como a Igreja deveria vivê-lo, não teriam as dificuldades que denunciam", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, maio de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Continua na Igreja o debate sobre o “sagrado” e o seu necessário reconhecimento na vida cristã. Infelizmente, há uma ambiguidade na palavra “sagrado” e, consequentemente, uma multiplicidade de diferentes entendimentos. Muitos hoje falam da necessidade do retorno do sagrado na liturgia, acusam a atual liturgia devido à reforma conciliar de ser desprovida de sagrado e, portanto, atribuem-lhe a responsabilidade pela sua incapacidade de rezar e de colocar-se em comunhão com o Senhor. Ora, justamente pelo perdurar de tantas polêmicas, volto a esse tema, lembrando que se “sagrado” significa alteridade a ser reconhecida e respeitada, então podemos afirmar que o sagrado é algo bom. Por exemplo, a percepção de que o espaço litúrgico é diferente do espaço da nossa vida cotidiana é algo bom e necessário. Assim como ter na mão o pão eucarístico é ter na mão não o pão comum, mas o corpo do Senhor. Os exemplos poderiam ser muitos, sem, contudo, fazer coincidir essa consciência com a concepção dos especialistas da religião que definem o sagrado como aquilo que pertence a um espaço separado, intangível, inviolável, que deve inspirar medo, temor e respeito.
Aqui devemos ser claros e não ter medo em afirmar a diferença cristã em relação ao sagrado das religiões. Sobre esse ponto há também uma ruptura entre o Antigo e o Novo Testamento, entre a Torá e o Evangelho! Jesus, na esteira dos profetas, lutou contra essa concepção do sagrado. Se para a Torá sagrado é um espaço para Deus como o templo e, portanto, sagradas são todas as regras ligadas ao templo e ao seu funcionamento, para Jesus o sagrado deve ser procurado noutro lugar. Por isso ele declara que o templo não é mais lugar de adoração a Deus, e o purifica para devolver-lhe apenas o propósito desejado por Deus: casa de oração para todos os homens, para toda a humanidade!
Se o fundamento e a dinâmica do sagrado eram a “separação”, em Jesus, pelo contrário, o que é necessário é a solidariedade, a comunhão que luta e resiste contra toda separação. Jesus não foi feito sacerdote e sacerdote de sacerdotes, separando-se do povo, separando-se da tribo de Levi, separando-se dos sacerdotes (tribo da qual não fazia parte!). Mas em movimento inverso desceu, despiu-se; de Deus que era, se fez homem como nós, carne frágil, fraca e mortal. Se o Sumo Sacerdote do povo subia cada vez mais para o Santo, Jesus do Santo, da santidade divina que possuía desceu a ponto de ser contado entre os pecadores como amaldiçoado por Deus e pelos homens - diz o apóstolo Paulo — para ser plenamente solidários conosco. Uma solidariedade que estabelece a purificação, perdoa os nossos pecados e nos faz pertencer a ele.
Essas são as razões. Jesus declara que o espaço de Deus não é um templo, não está nas ações religiosas, mas nas relações entre seres humanos, em viver o último e definitivo mandamento: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei!” (Jo 13,34), no serviço mútuo e sobretudo no serviço prestado aos últimos, aos mais pobres.
Na parábola de Lucas 10,29-37, chamada “do bom samaritano”, Jesus nos revelou que o sagrado não está onde o sacerdote e o levita pensam e por isso se sentem isentos de mostrar misericórdia ao homem que caiu nas mãos dos bandidos: um homem ensanguentado ou morto, era impuro e teria sido um verdadeiro impedimento ao seu exercício de culto no templo. Em vez disso é justamente um herege, um samaritano que, ao mostrar misericórdia, curando e ajudando aquele pobre coitado, realiza um gesto de salvação observando a Torá, o mandamento do amor ao próximo. É no seu gesto que deve ser procurado o sagrado, gesto de obediência ao Senhor que quer a comunhão com toda a humanidade, com toda a criação.
O sagrado se situa, em primeiro lugar, na relação com os outros e por isso o templo material deve dar lugar ao templo que é o nosso corpo, corpo individual e corpo social, isto é, a comunidade cristã. O espaço sagrado é o que Jesus indicava: o seu corpo; é o que Paulo identificava no corpo dos cristãos, corpo de Cristo e templo do Espírito Santo.
Não deveríamos esquecer a advertência de Paulo aos Coríntios: “Quando vocês se reúnem como Igreja não é para comer a Ceia do Senhor!” (cf. 1Cor 11,18-20). Porque os Coríntios faziam uma refeição, uma ação religiosos e de culto, mas não realizavam existencialmente em seu corpo pessoal e comunitário o que faziam em nome de Jesus Cristo, não viviam a comunhão fraterna. Se procurássemos o sagrado no nosso reunir-se para ser edificados como corpo de Cristo e para ser lugar de comunhão para toda a humanidade, estaríamos na verdade cristã.
Porque o nosso movimento da separação à comunhão é a ação que Deus realiza na história para toda a humanidade criada por ele e amada em seu Filho Jesus Cristo.
Se vivemos essa sacralidade também poderemos experimentar o sentido da alteridade necessária para nos aproximarmos do espaço dedicado a oração, para culto e liturgia, para celebrar com estilo e não de forma desleixada ou mesmo mundana. Muitos dos nossos irmãos que censuram a Igreja pela perda do sagrado são perturbados por liturgias nas quais não há mais reverencial primazia da Palavra e da presença do Senhor: há, infelizmente, um grande protagonismo de quem preside a liturgia com ações e invenções tolas e, por vezes, desrespeitosas com o que se celebra.
Muitas vezes há tagarelice eclesial que não deixa espaço ao silêncio da escuta e não há rigor nem estilo em celebrar o grande mistério da Eucaristia. Entendo aqueles que se queixam da perda do sagrado. Mas estou convencido de que se conhecessem o sagrado como Jesus o viveu e como a Igreja deveria vivê-lo, não teriam as dificuldades que denunciam.
No entanto, é impressionante como o lema “sagrado” é usado hoje para indicar diversas urgências da fé e da liturgia vivida. É estranho, mas mesmo alguns que se definem como “não crentes” culpam a liturgia católica pela perda de sagrado. Há, portanto, necessidade de clareza sobre esse tema que ajude os cristãos no discernimento do sagrado, que não é o misterioso, não é o mágico, mas é um locus privilegiado para a comunhão com Deus. A incensação durante a liturgia não é realizar uma ação sagrada, mas uma ação humaníssima em que os cinco sentidos humanos participam de uma experiência “outra”, na qual fumaça e perfume nos indicam a comunhão da nossa liturgia com a liturgia do céu. Fazer uma reverência à cruz ou à Eucaristia não é realizar uma ação sagrada, mas colocar o nosso corpo em adoração ao Senhor com temor e agradecimento. Vestir vestimentas simples, mas eloquentes, pelos presbíteros durante a liturgia não é usar “vestimentas sagradas”, mas fazer um sinal e levar a compreender que quem preside a assembleia é o Senhor!
A Igreja primitiva vangloriava-se de não precisar do sagrado como os pagãos para prestar culto ao seu Senhor. Nós, infelizmente, em muitos casos tornamo-nos herdeiros do culto pagão em costumes que chamamos expressões da religião ou do culto popular. Já o profeta Isaías insistia em Israel, denunciando como o povo de Deus dava valor sagrado ao sábado e aos dias de jejum, mas não compartilhava a justiça, não repartia o pão com o faminto, não acolhia em casa o sem teto, não vestia o despido! (cf. Is 58,3-10). O sagrado para nós, discípulos de Jesus, se situa principalmente na relação com os outros. Isso também é cristianismo, a “religião da saída da religião” (M. Gauchet)