"É verdade que não se pode viver uma liturgia autêntica sem que esta propicie educação social, mas também é verdade, e é lindo se o assumirmos, que viver bem as liturgias já é um princípio de socialização, de elevação, de educação", escreve Pietro Groccia, doutor em Teologia pela Pontifícia Faculdade da Itália Meridional e membro extraordinário da Sociedade Italiana de Pesquisas Teológicas - SIRT, em artigo publicado por Settimana News, 02-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vamos começar por uma pergunta: o que é a liturgia? A liturgia é culmen et fons [1] de toda a atividade da Igreja e através dela se exerce o sacerdócio de Cristo que associa a sua santa Igreja, a manifesta e a implica [2], per ritus et praeces, para que se cumpra a sua própria glorificação e ofereça ao Pai o culto perfeito. Em suma, é a contemporaneidade do sacerdócio de Cristo.
É, portanto, uma ação salvífica que se mantém ao longo dos séculos e que é reproposta no tempo pela Igreja, através de sinais sensíveis desejados pelo próprio Cristo.
Por isso, para compreender o valor da missa, explicou o Papa Francisco em uma entrevista ao La Stampa, “devemos primeiro compreender o significado bíblico do 'memorial'. Não é apenas a memória dos acontecimentos do passado, mas os torna de certo modo presentes e atuais”. Cada Eucaristia é, portanto, uma passagem pascal. A missa, de fato, não é um sentir algo, mas um acordo entre os irmãos na experiência de Cristo ressuscitado.
O teólogo Bruno Forte em Trinità come storia se pergunta: “O Deus dos cristãos é um Deus cristão? Essa pergunta, aparentemente paradoxal, surge espontaneamente se considerarmos a forma como muitos cristãos retratam o seu Deus”. Parafraseando sua própria pergunta, todos deveríamos nos questionar: as nossas liturgias são autenticamente cristãs? São transparência do Invisível? Reflexo pessoal daquele Rosto que se manifesta nos sinais sagrados? Penetram na profundidade do mistério ou são acentuações do enfático e, não raro, manifestam-se amorfas e massificantes? O rito exprime a verdade do seu significado, ou se deixa aprisionar pela espetacularização que, na suntuosidade dos paramentos, às vezes repropõe estetismos barrocos obsoletos? As nossas liturgias trazem Deus ao homem e o homem a Deus em Cristo?
A dimensão mais profunda da arte de presidir deveria ser a de fazer aparecer o mistério e de fazer desaparecer o próprio eu. “Em alguns - destaca o Papa – nota-se uma atenção ostensiva à liturgia, à doutrina e ao prestígio da Igreja [...]. Assim, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos. (EG 99)”. E, se quisermos permanecer fiéis à verdade, é preciso dizer que em nossas liturgias aprecia-se não poucas tentações autocelebrativas, as quais, teatralizando o evento, não raramente exaltam o ministro em detrimento do Mistério. Quando, por outro lado, deveria valer para o liturgista a palavra de João, o precursor: "Oportet illum crescendo, me autem minui" (Jo 3,30).
“A liturgia - dizia Romano Guardini - é sim emoção, mas deve ser uma emoção sob um controle muito estrito”. As emoções são fenômenos articulados que incluem uma interação entre fatores subjetivos e objetivos, filtrados por sistemas neurais/hormonais, que podem dar origem, se não inspecionadas, a sensacionalismos emocionais, até um misticismo tipicamente autorreferencial, cuja eficácia pode facilmente ser sujeita aos desvios de projeção ou delirantes de síndromes paranoides agudas.
A dignidade da liturgia de que se fala indevidamente - inclusive contestando o Papa - não é uma pose, mas um sinal de investidura e reverência amorosa que reporta ao mistério. A missa - o papa gosta de repetir frequentemente - é refazer o calvário, não é um espetáculo" reduzido a um lugar de fruição estética. A deterioração da qualidade litúrgica da Missa produz um esmaecimento do primado desta, no que diz respeito às práticas devocionais de uma religiosidade individual, alérgica às formas institucionalizadas da elaboração cristã.
À luz dessas considerações, devemos nos examinar seriamente sobre todas as degenerações que vivemos e, às vezes, cultivamos, externamente, em nome de uma vaga conexão ao assim-chamado religioso.
Segundo alguns sociólogos do sagrado, a causa mais profunda da crise que desestruturou a Igreja está no obscurecimento da prioridade de Deus na liturgia. Aliás, para ser mais preciso, como dizia A. Del Noce, uma sacralização da secularização usurpou o templo de Deus. A própria secularização, sinal distintivo do nosso tempo, é postulatória de uma fé purificada das contusões de um sagrado confuso e pluralista, que, ao ostentar um retorno da transcendência, consegue o efeito de inculcar deslumbramentos de transcendência e nostalgias de absoluto.
Os pós-cristãos, isto é, aqueles que na turbulenta história de um mundo em agitação, abalados por tantas sugestões da vida, manipulados por influências psicossociais, tomados por visões de vida em leitura secular, exclusivamente terrena, estão profundamente em crise de fé, postulam uma reinterpretação mais genuína e verdadeira da proposta do Evangelho.
Portanto, a própria crise do cristianismo oferece-se como uma nova oportunidade para repropor a questão de Deus. Porém, existe o pedido de um Deus vivo e pessoal que esclareça todo mistério e desfaça toda ambiguidade.
Essa é a tarefa fundamental da liturgia na era secular: tornar o Deus humano presente numa sociedade sem Deus, ser a sua epifania no meio dos homens. Uma das prioridades da Conferência das Igrejas da Itália em Florença é ter ficado cientes de que a concretização do novo humanismo em Jesus Cristo não pode abstrair-se da natureza intensamente humana da liturgia.
De fato, na liturgia tudo tem sentido, tudo é caminho para o mistério, tudo é dom, é vida. Ora, é precisamente a atual fenomenologia cultural da liturgia que provoca a reflexão teológica que coloca novamente em jogo a compreensão da diferença qualitativa do Cristianismo como lugar de uma retomada da questão da essência. Uma reta visão da liturgia pressupõe sempre uma teologia de referência tanto no campo cristológico quanto eclesiológico.
Com uma linguagem simples e direta e com uma visão da universalidade da Igreja, o Papa Francisco, convicto de que é a partir de como vivemos a liturgia que construímos o futuro de Deus, para a ressignificação cristã da mesma, ou melhor, para conter derivas que banalizam as verdades do mistério, promulgou o motu proprio Traditionis custodes.
Não vou entrar no mérito do documento, não sou liturgista nem canonista, mas estou convencido, compartilhando as preocupações do pontífice, de que a liturgia deve ser mais entendida, compartilhada, vivida. E para entender a liturgia, a forma privilegiada é evangelizá-la. Com grande realismo, constata-se que não são poucos nas nossas assembleias que desejariam estar mais integrados na vida da fé, face ao desenrolar do evento litúrgico são como ausentes, porque não sabem o que estão fazendo.
À luz dessas considerações, pergunto-me: em vez de trabalhar, como peões com casaca de senhores, porque não nos comprometemos a recuperar o sentido da profecia para passar de uma liturgia levítica a uma profética que a torna consciente de sua intencionalidade soteriológica?
Em um tempo como o nosso, em que a hermenêutica do entendimento é atravessada pelos oncogenes de uma grave hipóxia comunicativa, que o filósofo austríaco F. Ebner identifica na queda da palavra, não cabe ouvir os vulgares protestos renascentistas dos conservadores, que em nome não da tradição, mas do tradicionalismo, vivendo de forma asséptica a lógica da Encarnação, almejam formas de restauração, especialmente no âmbito da liturgia, que hoje pareceriam, investigadas com a epistemologia do sentido, obsoletas e enfisematosas.
Uma análise cuidadosa das conotações históricas assumidas pelo movimento cristão revela até mesmo a fragilidade semântica do termo Cristianismo.
O Concílio Vaticano II, redescobrindo a essência teológica e antropológica da liturgia, recomendou uma linguagem apropriada. Sabe-se, de fato, que as palavras não são apenas indicativas, mas também indutivas ou formadoras de uma mentalidade e de uma práxis correspondentes. A reforma litúrgica foi um serviço ao povo como releitura do Evangelho a partir da práxis histórica.
À luz dessas reflexões, o verdadeiro atentado à tradição não é Traditionis custodes, mas a constatação de que as dissociações litúrgicas - para usar o idioma dos psiquiatras - permanecem sobretudo onde a comunidade não é regenerada pela eclesiologia conciliar e a liturgia ainda não se tornou culto de toda a família de Deus. O limite no momento mais sentido na assimilação dos ensinamentos conciliares é a carência da formação litúrgica dos fiéis e da formação jurídica dos pastores.
Em vez disso, deveria ter surpreendido e suscitado reação - para fins de restauração -, o motu proprio de 2007 Summorum Pontificum, onde se ousava afirmar que todo o quadro da liturgia pré-conciliar, não apenas o Missal, mas também o Ritual e muitos aspectos do Pontifícal, nunca tendo sido revogados, poderiam ser legitimamente usados, embora sob certas condições, na Igreja pós-conciliar. Ars restaurandi não ars celebrandi!
O povo tem direito a celebrações litúrgicas compreensíveis, não alienantes, mas libertadoras, não mágicas, mas profundas, que expressem o verdadeiro propósito e o autêntico espírito da liturgia, e não os estados de humor ou as histerias do celebrante. Narrar na liturgia - segundo o Papa - é perceber na trama dos eventos uma protuberância de sentido que se abre à busca da verdade.
A função clerical de liderança, entretanto, expirou e não é mais aceita. O padre não é rejeitado, mas sim a sua maneira de ser padre. E é, afinal, uma graça, um crescimento. É um caminho que, aberto pelo Papa Francisco, na força do Espírito, nos convida à conversão.
O desejo do Papa é trabalhar a serviço do povo de Deus para redescobrir a beleza de encontrar o Senhor na liturgia e assim ter a vida em seu nome. Assim, a alma da liturgia ressurgirá avassaladoramente de sua imersão no mundo, no qual é chamada a testemunhar a salvação de Deus e a celebrar a esperança do homem no contexto de uma Igreja que se torna mundo para chamar o mundo à comunhão, à hipóstase com Deus, à libertação progressiva, total e definitiva, à divinização da carne do mundo na carne de Cristo. “A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da Liturgia” (EG, 24).
Hoje o problema é desclericalizar a liturgia para torná-la autêntica. Talvez o termo possa causar incômodo ou dar margem a ambiguidades, mas inclui intensa validade e significação.
O Papa está convencido de que na construção da estratégia de sentido, a liturgia se introduz no projeto da existência, acendendo uma fé que se torna forma de vida, apreendendo seu serviço cultural como filiação a um modo diferente de ser homens e mulheres. de uma realidade composta do ponto de vista dos sistemas de referência.
É verdade que não se pode viver uma liturgia autêntica sem que esta propicie educação social, mas também é verdade, e é lindo se o assumirmos, que viver bem as liturgias já é um princípio de socialização, de elevação, de educação.
O imperativo do motu proprio consiste em reduzir a complexidade e é duplo: em primeiro lugar, convida a não desperdiçar a maior riqueza colocada pelo Concílio nas nossas mãos; mas, acima de tudo, manifesta o desejo de uma regeneração espiritual de pastores e fiéis, que não pode acontecer sem a renovação efetiva da liturgia.
[1] Cf. SC, 10.
[2] Cf. SC, 7; 26.