16 Fevereiro 2023
Jesus, a primeira vítima da hostilidade dos samaritanos, torna-se o Bom Samaritano, a personificação divina da misericórdia. Ele tem todos os motivos para condenar e punir os samaritanos, mas faz de um Samaritano o herói da amizade social. Tal é, de fato, a maravilha inesperada da cultura do encontro: ela transforma as vítimas da injustiça em protetoras de seus perseguidores.
A reflexão é de Peter C. Phan, professor da Cátedra Ignacio Ellacuría de Pensamento Social Católico do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos na Georgetown University, nos Estados Unidos.
O artigo é publicado por America, 09-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Assim como seus antecessores Bento XVI e João Paulo II, o Papa Francisco muitas vezes introduz o tema de seus escritos por meio de uma exegese espiritual de um evento do ministério de Jesus ou de um texto bíblico.
Enquanto em suas exortações apostólicas Evangelii gaudium e Querida Amazonia, e em sua carta encíclica Laudato si’, os apelos de Francisco à Bíblia são numerosos, mas difusos, ele se concentra em textos específicos na Amoris laetitia e especialmente na Fratelli tutti. Trata-se do Salmo 129,1-6 na primeira e de Lucas 10,25-37 na segunda, e ele os apresenta como os leitmotive de seu magistério básico sobre o amor na família e a amizade social, respectivamente.
Aqui, gostaria de examinar o modo como o Papa Francisco interpreta a parábola do chamado Bom Samaritano, a quem Francisco chama de “um estranho no caminho”. Observando na Fratelli tutti que essa parábola é “uma luz no meio do que estamos vivendo” [n. 56] em nossa vida contemporânea, que ele descreve como um lugar de “sombras de um mundo fechado”, Francisco apresenta o Samaritano como o protótipo da fraternidade e da amizade que cria a “cultura do encontro” e constrói pontes de amor entre todos (n. 2).
Lucas situa a parábola do Bom Samaritano, que é única nele, no contexto da viagem de Jesus da Galileia a Jerusalém para cumprir a missão que Deus lhe confiou. Nessa “narrativa de viagem” (9,51-19,27), Lucas registra os vários milagres e instruções de Jesus, muitas vezes na forma de parábolas.
O Evangelho fala de diversas questões concernentes à vida cristã, como as viagens missionárias, o uso dos bens e a oração. Um incidente durante a viagem de Jesus a Jerusalém é seu encontro com um doutor da lei que quer testá-lo com a pergunta sobre o que deve ser feito “para herdar a vida eterna” (10,25).
A história em Lucas 10,25-37 tem duas partes. A primeira (10,25-28) contém a pergunta do doutor da lei sobre o caminho para alcançar a vida eterna, a contrapergunta de Jesus sobre o ensino da Torá sobre essa questão, a resposta do doutor da lei citando os mandamentos gêmeos sobre o amor a Deus e o amor ao próximo em Deuteronômio 6,5 e Levítico 19,18, e depois o reconhecimento de Jesus sobre a correção da resposta do doutor da lei. Está implícita nessa primeira parte a afirmação de Jesus sobre a validade da Torá e sua capacidade de levar à salvação.
A segunda parte (10,29-37) contém a pergunta adicional do doutor da lei sobre a identidade do próximo, a resposta de Jesus por meio de uma parábola sobre um viajante de Jerusalém que descia para Jericó, que é roubado e cuidado por um samaritano, A pergunta de Jesus ao doutor da lei sobre quem é o próximo do viajante ferido, a resposta do doutor da lei e depois o mandato de Jesus a imitar o comportamento do samaritano.
O comentário do Papa Francisco sobre a parábola do Bom Samaritano a situa no contexto mais amplo das relações humanas como um todo, que ele chama de “fraternidade” e de “amizade social”.
Como um prelúdio a seus comentários sobre a parábola, Francisco cita a pergunta de Deus a Caim sobre o paradeiro de seu irmão Abel e a resposta de Caim: “Sou, porventura, guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). O Papa Francisco argumenta que a própria pergunta de Deus não deixa espaço para a indiferença moral diante do sofrimento dos outros, mas, ao invés disso, “habilita-nos a criar uma cultura diferente, que nos conduza a superar as inimizades e cuidar uns dos outros” (n. 57).
O papa continua citando a afirmação de Jó sobre alguns de nossos direitos comuns, derivados do fato de termos sido criados pelo Deus único, como fundamento de nossa fraternidade e amizade social (Jó 31,15). Para sublinhar essa unidade, o papa recorda a metáfora da humanidade de Santo Irineu como uma melodia de diferentes notas em que cada pessoa não é percebida separadamente das outras, mas como parte da melodia como um todo (n. 58).
O Papa Francisco observa que, nas primeiras tradições judaicas, o dever de amar e cuidar dos outros era restrito aos irmãos judeus, mas depois foi expandido para incluir todos os humanos, imitando a compaixão de Deus por todos os seres vivos (n. 59). No Novo Testamento, a formulação talmúdica negativa do rabino Hillel do mandamento “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você” foi transformada em um mandamento positivo: “Em tudo, faça aos outros o que gostaria que fizessem a você” (Mt 7,12).
O papa comenta: “Este apelo é universal, tende a abraçar a todos, apenas pela sua condição humana, porque o Altíssimo, o Pai do Céu, faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus’ (Mt 5,45)” (n. 60).
Sobre o amor ao estrangeiro, Francisco recorda que, em relação à Escritura judaica, diz-se que sua base é a memória dos hebreus de que eles mesmos foram estrangeiros no Egito (Ex 23,9). É no contexto do amor a todos e não apenas aos membros do próprio grupo, seja qual for, que a parábola do Bom Samaritano faz sentido, segundo Francisco: “Ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou de acolá” (n. 62).
Em seu comentário sobre a parábola do Bom Samaritano, o Papa Francisco descreve os personagens da história: os ladrões, os três transeuntes e a vítima ferida. Hoje, os ladrões não são simplesmente indivíduos maus, mas incluem “as sombras densas do abandono, da violência usada para mesquinhos interesses de poder, acúmulo e repartição” (n. 72). Os dois transeuntes que ignoram o ferido e passam para o outro lado da estrada incluem pessoas religiosas, representados na história pelo sacerdote e pelo levita, que se julgam próximos de Deus mesmo quando abandonam os que sofrem.
A vítima ferida hoje não é apenas a vítima do roubo e da violência física, mas também todos aqueles que, em uma sociedade globalizada, estão “abandonados pelas nossas instituições desguarnecidas e carentes, ou voltadas para servir os interesses de poucos, fora e dentro” (n. 76).
Para compreender plenamente o caráter revolucionário da parábola de Jesus sobre o Bom Samaritano, é necessário observar o pano de fundo por trás da pergunta do doutor da lei sobre quem é o “próximo”, a quem as Escrituras judaicas mandam amar como a si mesmo. A questão decorre dos debates na época de Jesus sobre quem pertence ao povo de Israel, o povo de Deus, e é, portanto, objeto do amor do próximo.
A parábola de Jesus em resposta à pergunta do doutor da lei rompe com sua estrutura teológica e legal. Sua contrapergunta ao doutor da lei: “Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” (Lc 10,36) inverte a pergunta do doutor da lei, dizendo-lhe para não perguntar quem pertence ao povo de Deus – e quem, portanto, é objeto do amor do próximo –, mas sim sobre qual conduta cabe aos membros do povo eleito de Deus.
O mais subversivo – e ofensivo para os judeus piedosos – é que Jesus apresenta a conduta de um samaritano como o modelo exemplar de amor ao próximo ou (para usar as expressões favoritas de Francisco) de “fraternidade” e de “amizade social” para os judeus. Como Francisco observa mais tarde (n. 82), os samaritanos eram evitados pelos judeus, que os viam como mestiços, “impuros, detestáveis, perigosos” que praticavam uma religião heterodoxa e meio pagã.
Enquanto os judeus sustentavam que Deus escolheu o Monte Sião em Jerusalém como o lugar sagrado da adoração ortodoxa, os samaritanos acreditavam que Deus escolheu o Monte Gerizim, perto de Siquém. O Papa Francisco destaca a ironia de Jesus: “O paradoxo é que, às vezes, aqueles que dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes” (n. 74).
O Papa Francisco não considera a conduta do Bom Samaritano simplesmente como um ato privado de caridade. À contrapergunta de Jesus sobre quem é o verdadeiro próximo da vítima do roubo, provavelmente um judeu, o doutor da lei responde: “Aquele que usar de misericórdia para com ele” (Lc 10,37).
Lucas não registra a resposta de Jesus ao doutor da lei desta vez, para observar a correção de sua resposta, como ele faz na primeira parte da história em réplica à resposta do doutor da lei à pergunta sobre como alcançar a salvação. Simplesmente ouvimos Jesus dizer: “Vá e faça o mesmo”. A crença verdadeira (ortodoxia) deve se traduzir em ação verdadeira (ortopráxis).
Para o Papa Francisco, um verdadeiro próximo deve agir socialmente e também politicamente. Juntos, devemos ser “parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas” (n. 77). Essa ação começa com um simples desejo: “É preciso apenas o desejo gratuito, puro e simples de ser povo, de ser constantes e incansáveis no compromisso de incluir, integrar, levantar quem está caído” (n. 77). Podemos começar, diz Francisco, “por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último ângulo da pátria e do mundo” (n. 78). O ato de amor ao próximo do Samaritano inspira o estalajadeiro a agir da mesma forma; assim, ele se expande cada vez mais, criando um efeito cascata.
Francisco chama essa dinâmica do amor ao próximo de “cultura do encontro”, da qual o Samaritano é o exemplo paradigmático. Nessa cultura, todos se tornam “próximos sem fronteiras”. Como escreve Francisco, Jesus “não nos convida a interrogar-nos quem é vizinho a nós, mas a tornar-nos nós mesmos vizinhos, próximos” (n. 80).
Observe-se que há uma estranha reviravolta na lógica da parábola do Bom Samaritano. Seria mais lógico que Jesus respondesse à pergunta do doutor da lei sobre quem é o nosso próximo fazendo de um samaritano a vítima do roubo e de um judeu o generoso cuidador. Dessa forma, o judeu, que desprezava e odiava o samaritano, seria ensinado a ser um bom próximo do samaritano, praticando com ele a fraternidade e a amizade social.
Em contraste, Jesus parece ter feito tudo errado ao fazer do judeu a vítima e do Samaritano o generoso cuidador. O Samaritano, vítima de discriminação étnica e religiosa, tem todo o tipo de razões para ignorar o judeu e passar por ele, como fazem o sacerdote e o levita. No entanto, ele cuida bem dele e torna-se, assim, o paradigma da cultura do encontro. O Samaritano “desafia-nos a deixar de lado toda a diferença e, em presença do sofrimento, fazer-nos vizinhos a quem quer que seja” (n. 81).
Além disso, Lucas torna ainda mais impressionante a representação de Jesus sobre o Samaritano como modelo de amizade e hospitalidade, ao colocar a parábola em seu Evangelho logo após a história de um vilarejo samaritano que se recusou a receber Jesus e seus discípulos (9,51-56). Devido à hostilidade e à falta de hospitalidade dos samaritanos, os discípulos Tiago e João perguntam a Jesus se ele queria que mandassem descer fogo do céu e consumi-los. Jesus voltou-se e repreendeu seus discípulos, diz Lucas.
Jesus, a primeira vítima da hostilidade dos samaritanos, torna-se o Bom Samaritano, a personificação divina da misericórdia. Ele tem todos os motivos para condenar e punir os samaritanos, mas faz de um Samaritano o herói da amizade social. Tal é, de fato, a maravilha inesperada da cultura do encontro: ela transforma as vítimas da injustiça em protetoras de seus perseguidores.
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Por que o Papa Francisco vê o Bom Samaritano como a parábola do nosso tempo. Artigo de Peter C. Phan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU