08 Outubro 2022
A Bíblia, no conjunto muito variado de livros que a compõem, do Gênesis ao Apocalipse, constitui um gigantesco repertório de arquétipos, símbolos, mitos e histórias que moldaram profundamente o nosso imaginário.
Podemos vê-la como uma espécie de útero sempre fecundo, sem o qual dois milênios da nossa cultura não são minimamente decifráveis. Um imenso vocabulário, uma gramática do humano em todas as suas expressões, que mostrou, e mostra ainda hoje, uma extraordinária capacidade generativa e cultural.
Não por acaso, há 40 anos, o crítico literário canadense Northrop Frye, falando da Bíblia e de suas influências na cultura ocidental, cunhou o termo, muitas vezes abusado, de “Grande Código”.
Por isso, é louvável o emprenho da editora AVE de lançar uma coleção – Imago – dirigida por Pietro Pisarra, autor daquele esplêndido e refinado divertissement que é “La mosca nel quadro. L’arte svelata” (Roma: Ave, 2021, 416 páginas).
Nessa coleção – que pretende mostrar o entrelaçamento virtuoso e circular entre a espiritualidade cristã e as imagens – foi publicado agora um novo texto que merece ser lido: “Il buon samaritano nell’arte” [O bom samaritano na arte] (Roma: Ave, 2022, 124 páginas). Um texto bem feito, acompanhado de inúmeras reproduções artísticas e que, com sabedoria, mostra como a parábola, uma das mais conhecidas, provocou – às vezes até mudando de sinal – a vida e a consciência religiosa no decorrer da história.
O livro é escrito por Paola Springhetti, jornalista e professora de Jornalismo na Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade Pontifícia Salesiana. Paola aceitou responder a algumas de nossas perguntas.
A entrevista foi concedida a Daniele Rocchetti e publicada em La Barca e Il Mare, 29-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por que um livro como esse? O que a levou a escrevê-lo?
Não sou uma historiadora da arte, mas simplesmente uma pessoa que gosta de olhar para as imagens. Sendo necessariamente coisas construídas a partir de um ponto de vista, elas nos contam histórias interessantes e muitas vezes provocativas. Se você comparar aqueles que giram em torno do mesmo tema, poderá realmente descobrir coisas que nunca pensou ou, melhor, “viu”. Aqui, além disso, estamos falando de obras de arte e, portanto, de imagens nas quais se sedimentam diversas camadas: a do relato original no qual se inspira, a da livre criatividade individual, a da sensibilidade de uma época e de um lugar em que o artista está imerso, a dos objetivos de quem as encomendou, a da técnica usada e assim por diante. A parábola do Bom Samaritano é uma das mais conhecidas e populares, mas as obras de arte têm muito a nos dizer sobre ela...
Você mostra que a compreensão teológica da parábola e, portanto, também a artística mudaram ao longo do tempo. Pode nos explicar?
O caminho que eu proponho em “O bom samaritano na arte” parte dos grandes vitrais góticos das catedrais francesas. Aqui, propõe-se a interpretação cristológica da parábola: dito em poucas palavras, significa que, no Bom Samaritano, vê-se Jesus se inclinando sobre o homem ferido pelo pecado e o salva. É uma interpretação que remonta aos primórdios do cristianismo e que, depois, foi posta ao lado – eu diria até superada – pela interpretação moral, que vê no Bom Samaritano um exemplo de altruísmo que todo cristão é chamado a imitar. Em ambas as interpretações, porém, estamos falando de amor: o de Deus pelo ser humano, o do ser humano pelos seus irmãos.
Hoje, a arte contemporânea não foge do desafio de representar o texto. Como o faz?
Geralmente, move-se sobre o fio da segunda interpretação, tentando atualizar visualmente a cena principal da história: aquela em que o Bom Samaritano se inclina sobre o homem ferido e abandonado. Há quem ambiente a cena nas periferias urbanas ou em um acampamento Rom, quem represente o samaritano com traços afro-americanos ou como uma mulher. A outra cena que parece fascinar os artistas é a do doutor e do levita que passam ao lado do ferido e o ignoram: esta também é provocativamente atualizada. Adrian Wiszniewski, por exemplo, os “encarna” em um grupo de elegantes jovens em ascensão na carreira.
O Bom Samaritano segundo o artista escocês Adrian Wiszniewski
Qual é a obra, dentre as muitas que você mostra no texto, que está mais em sintonia com a sua interpretação da parábola?
Há muitas de que eu gosto, mas talvez a que mais me chamou a atenção nesta pesquisa foi a de uma pintura a óleo que Daniel Bonnel fez em 1996: “The Good Samaritan at the door of the Inn”. Gosto dela porque inverte o ponto de vista: enquanto os outros artistas tradicionalmente representam o hospedeiro na porta e o bom samaritano que se aproxima dele carregando o ferido, Bonnel representa o Samaritano visto de frente, parado na soleira da pensão, como se estivesse esperando a permissão para entrar. Desse modo, a pessoa que olha o quadro se encontra no lugar do hospedeiro e deve decidir o que fazer: fecho a porta ou acolho?
“The Good Samaritan at the door of the Inn”, de Daniel Bonnel
A arte sempre conservou e exprime a verdade do tempo que necessariamente assume formas e modos diferentes de se dizer. Os cristãos hoje parecem temer a linguagem artística. Seu livro parece ir contra a corrente...
No século passado, desde que os artistas abandonaram a figuratividade para buscar novos caminhos de formas expressivas, a arte sacra entrou em crise. Em geral, ela se limita a repetir velhos esquemas, com resultados decepcionantes, tanto no nível estritamente artístico quanto no dos significados propostos. Há também um filão artístico, cujo mestre é o teólogo artista Marko Ivan Rupnik, que redescobriu a arte dos antigos ícones, mas certamente a pesquisa artística não pode se achatar em uma única direção. Eu não diria que os cristãos temem a linguagem artística, mas sim que eles não a possuem mais, tanto em nível produtivo (do fazer arte) quanto no nível da fruição (do olhar e entender a arte). À medida que o estudo da história da arte se tornou rarefeito nas escolas, ficou mais difícil para muitos amá-la. O meu livro faz parte de uma pequena coleção da editora AVE que, sim, vai contra a corrente, na convicção de que – se lhe prestarmos um pouco de atenção – a arte tem muito a dizer também aos homens apressados de hoje e pode ser um ponto de partida para elaborar propostas culturais e provocações de fé.
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O Bom Samaritano na arte. Entrevista com Paola Springhetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU