09 Abril 2024
“Gaza e Ayotzinapa estão entre nós todos os dias porque o sistema criou os criminosos e os alimenta com a sua escala invertida de valores, na qual tudo vale para vencer”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 05-04-2024. A tradução é do Cepat.
Segundo ele, "devemos compreender que a resistência ao sistema e aos criminosos monstruosos se torna impossível na ausência de relações sociais sólidas. É por isso que precisamos defender o comum e o comunitário, apegar-nos à terra e ao meio ambiente que nos sustenta, para fazer dos territórios espaços de resistência e de criação do novo".
A temida conjuntura atual de guerras, genocídios e crimes contra os povos ameaça transbordar e escalar para conflitos generalizados, com um final imprevisível, mas certamente catastrófico. A gravidade do que vivemos nos impõe fazer perguntas que, muitas vezes, não têm respostas, pela dificuldade para encontrar argumentos ou, simplesmente, porque seriam muito demolidoras.
Como é possível que as elites ocidentais, e boa parte da população, avancem com seus planos de dominação e destruição para manter o poder, sem se preocuparem com a vida de outros seres, nem com a sobrevivência do planeta? Como se chegou a esta situação de absoluta e cega insensibilidade?
Entendo que no pensamento crítico e na resistência não temos respostas integrais e acabadas, que devemos ir nos aproximando a partir de diversas visões necessariamente parciais para tentar alcançar uma visão de conjunto, somando partes ao hieróglifo da complexidade que a crise civilizacional implica.
Michael Brenner, professor de assuntos internacionais na Universidade de Pittsburgh, publicou o ensaio O acerto de contas do Ocidente (scheerpost.com, 08/03/24), no qual aborda aspectos da crise em curso. Sobre a derrota ocidental na Ucrânia e o genocídio na Palestina, diz: “O primeiro acontecimento é humilhante, o segundo é vergonhoso. No entanto, não sentem humilhação, nem vergonha”. Afirma que esses sentimentos “são estranhos” às elites dominantes por causa de sua arrogância e “inseguranças profundamente enraizadas”.
Brenner argumenta que aqueles que governam estão assustados, apresentam “comportamentos de pânico” e não possuem “a coragem de encarar a realidade de frente”. Consequentemente, seus comportamentos se tornam irresponsáveis, grotescos e perigosos, pois se distanciam da realidade e ficam imunes às mudanças no mundo, gerando um comportamento irracional.
Vai mais longe ao destacar que o Ocidente caminha para um “suicídio coletivo”, em consequência de um haraquiri triplo: moral, diplomático e econômico. Contudo, o mais importante surge quando acrescenta que a autodestruição “ocorre na ausência de qualquer trauma importante, externo ou interno”. Como explicar tamanha falta de sensibilidade?
Niilismo e narcisismo seriam duas marcas de identidade do Ocidente, segue Brenner em uma entrevista posterior: A verdadeira razão pela qual o Ocidente está condenado (https://acortar.link/cshyfe). Os dois termos se referem a situações em que se deixa de agir de acordo com as normas e os valores, o que leva as pessoas e os coletivos a reagirem de forma descontrolada, incitados por desejos imediatos e impulsivos que, no extremo, provocam a autodestruição.
As razões pelas quais não existem sentimentos de culpa ou de vergonha são quase inexplicáveis para Brenner, porque impedem a mudança de atitudes diante de catástrofes iminentes que vão destruí-los. O autor ensaia uma resposta: “Isso é algo que só pode existir se subjetivamente fazemos parte de um grupo social em que o status pessoal e o senso de valor dependem de como os outros nos veem e se nos respeitam”.
A questão da pertença a alguma comunidade desempenha um papel determinante nesta realidade que nos é imposta. Sem comunidade, sem laços sociais, ficamos perdidos, ficamos nas mãos de nossos demônios, porque é a pertença a um coletivo humano, em geral, que nos diz quem somos, estabelece limites e impõe valores e comportamentos.
O capitalismo se especializou em destruir e desvalorizar tudo o que cheira a comunidade. Difunde a ideia de que toda pertença nos limita, que devemos voar para longe e sozinhos. A mera palavra “limites” tem uma péssima reputação nesta fase senil do capitalismo, já que a ruptura do vínculo social é vital para o capital. A solidão do indivíduo é presa fácil do medo que o sistema inculca para nos dobrar.
O sistema também criou e multiplicou um tipo de pessoa que é capaz de assassinar e estuprar sem sentir remorso, como vemos nos bandos de narcotraficantes e paramilitares, entre outros exemplos possíveis. Homens que são capazes de cometer crimes atrozes, usando motosserras contra os seus semelhantes, como os paracos [paramilitares] colombianos e os narcotraficantes mexicanos que esquartejam as suas vítimas.
Gaza e Ayotzinapa estão entre nós todos os dias porque o sistema criou os criminosos e os alimenta com a sua escala invertida de valores, na qual tudo vale para vencer.
Da parte dos movimentos, devemos compreender que a resistência ao sistema e aos criminosos monstruosos se torna impossível na ausência de relações sociais sólidas. É por isso que precisamos defender o comum e o comunitário, apegar-nos à terra e ao meio ambiente que nos sustenta, para fazer dos territórios espaços de resistência e de criação do novo.
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O que o estuprador e o assassino em série não sentem. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU