05 Fevereiro 2024
"A síntese do argumento do professor pode ser apreendida no primeiro período onde se lê que “Ao encerrar-se o ano de 2023 e passados 22 meses desde o início da guerra na Ucrânia, duas coisas estão absolutamente claras: a primeira é que os russos já venceram a guerra, do ponto de vista de seus objetivos políticos e militares;" escreve afirma Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
Ninguém minimamente informado sobre questões internacionais desde uma perspectiva brasileira passa indiferente às análises do professor José Luis Fiori. O nobre e distinto professor emérito da UFRJ é, antes e acima de tudo, uma usina de ideias e interpretações. Sempre agudas. Nunca triviais. Constantemente relevantes. Bem ao estilo old school. Longe do common sense. Feito para inspirar debates e reflexões.
Uma de suas intervenções mais recentes desse tipo vai contida em seu artigo A vitória estratégica da Rússia, em 2023.
O texto abarca a dimensão mundial da nova fase da tensão russo-ucraniana, saiu publicado no número 3 do periódico Observatório Internacional do Século XXI no início deste ano de 2024 e foi logo reproduzido nos mais variados lugares. Especialmente aqui, no GGN, no último dia 19 de janeiro. [vide https://jornalggn.com.br/geopolitica/a-vitoria-estrategica-da-russia-em-2023-por-jose-luis-fiori/ ].
Como na maior parte das vezes, nesse texto o professor Fiori mobiliza muitas imagens, interpretações e convicções pessoais. Tudo numa escrita elegante, envolvente e convincente. Soterrando o leitor numa avalanche de dados e informações. Tantos dados e informações que, às vezes, chega a inebriar que lê meditando.
Numa primeira leitura vai impossível não sucumbir à persuasão imediata. Numa segunda mirada vai virando possível se descolar um pouco da força dos argumentos e da exposição do professor. Logo em seguida, após as impressões mais sedimentadas, começam a surgir possibilidades de diálogo. Lendo pela terceira ou quarta vez fica possível até contraposições. No fundo, quem sabe, o objetivo-último do autor do clássico Os moedeiros falsos. Por ser assim, com toda a vênia, avante contrastar.
A síntese do argumento do professor pode ser apreendida no primeiro período onde se lê que “Ao encerrar-se o ano de 2023 e passados 22 meses desde o início da guerra na Ucrânia, duas coisas estão absolutamente claras: a primeira é que os russos já venceram a guerra, do ponto de vista de seus objetivos políticos e militares; e a segunda é que os Estados Unidos e a Inglaterra não admitirão jamais a sua derrota, devendo manter seu apoio ao exército ucraniano e à sua “guerra de atrito” com as forças russas, mesmo sabendo não já não existe nenhuma possibilidade real de vitória”.
Não é o caso de se retornar à querela conceitual para a se dimensionar se trata-se ou não de uma guerra isso que se passa em terras eslavas desde fevereiro de 2022. Esse problema já justificou diatribes e conversas indigesta como aquela mantida em “De volta a ‘Guerra sem fim’”, publicada aqui no GGN tempos atrás [vide https://jornalggn.com.br/opiniao/de-volta-a-guerra-sem-fim-por-daniel-afonso-da-silva/].
Também não merece muita discussão a primeira parte do argumento do professor que reconhece que “os russos já venceram a guerra, do ponto de vista de seus objetivos políticos e militares”.
Bem antes de fevereiro de 2022 isso já era uma realidade e o professor Fiori – na trilha dos melhores analistas internacionais do planeta como o finado Henry Kissinger e o bem vivo John Mearsheimer – sabe bem disso. A impotência das sanções ante a Rússia foi apenas mais um revelador das insuficiências do eixo Washington-Londres-Paris-Berlim-Bruxelas.
Mas a segunda parte do argumento merece retornos mais demorados.
“...os Estados Unidos e a Inglaterra não admitirão jamais a sua derrota, devendo manter seu apoio ao exército ucraniano e à sua ‘guerra de atrito’ com as forças russas, mesmo sabendo não já não existe nenhuma possibilidade real de vitória”.
Com toda a vênia ao nobre professor, jamais existiu a possibilidade de vitória sobre a Rússia. A presente “guerra por procuração” em solo ucraniano nunca deixou de ser a continuação da provocação norte-americana ante aos resquícios do Mundo Soviético após 1989-1991. Europeus – notadamente, os continentais – caíram, pouco a pouco, nas armadilhas de Washington que sempre desejou bloquear a ascensão da China e do Oriente Médio enfraquecendo a Rússia ao longo do presente século.
Virou cômico, depois de 2022, ouvir o presidente francês e variadas autoridades europeias afirmarem peremptoriamente que “a Rússia não pode ganhar a guerra”. É interessante se notar esse tropismo – para não dizer mau-caratismo – induzido.
A Rússia jamais declarou guerra à Ucrânia. Conseguintemente os russos jamais estabeleceram prazo para se desengajar do território ucraniano. O objetivo não é venceu militarmente a Ucrânia. O propósito é restaurar a preponderância da soberania russa sobre a Eurásia. Discutir se isso é legítimo ou não seria outra conversa geopolítica bem longa e complexa. De toda sorte, o presidente Putin nem os russos têm pressa. Eles querem somente impedir a “ocidentalização” da Ucrânia. Trata-se, sim, de uma questão nacional. Mas sobretudo de uma questão civilizacional.
No famoso discurso de Munique de 2008, o presidente Putin já mobilizava essa convicção. Mas ao longo de 2022 e 2023, inclusive autoridades diplomáticas russas fizeram a todos entender que “não existiria sentido num mundo sem a Rússia”. Europeus e norte-americanos fazem-se de desentendidos diante dessa recomposição do trágico. Preferem jogar damas enquanto os russos movem peças de xadrez.
Não foi, assim, ao acaso que o Doomsday Clock, o Relógio do Apocalipse da desgraceira nuclear, ficou a 1 minuto e meio do fim do mundo nestes dois anos de tensão. 2022-2024. Londres e Washington se iludem porque querem.
O presidente Gorbachev, pouco antes de morrer em agosto de 2022, chamou essas autoridades à razão; e Henry Kissinger fez o mesmo até seus últimos suspiros em novembro de 2023. Ambos sabiam que conduzir a eterna tensão entre o Ocidente e o mundo eslavo a essa situação dramaticamente trágica representa, antes de tudo, a demonstração de uma degeneração intelectual, moral e cultural indigna para herdeiros de Tolstói e para herdeiros dos founding fathers.
Nesse sentido, pouco importa o autoengano anglo-saxônico. Se “Estados Unidos e a Inglaterra não admitirão jamais a sua derrota” não será a primeira vez. O professor Fiori sabe melhor que ninguém que Estados Unidos e Inglaterra (e europeus em geral) não venceram nenhuma guerra depois de 1945. É notório e notável que eles – europeus e norte-americanos – foram tecnicamente humilhados em todos os expedientes desde então e, para construir uma imagem do contrário, investiram pesadamente na indústria cultural para inventar uma narrativa de triunfos. Quando essas máscaras começaram a cair, não foi sem sentido nem sem razão o descrédito integral de tudo que sai de Hollywood.
Recompondo a análise nesses termos, o que se viu em 2023 não foi – com o perdão da petulância e novamente com toda vênia – “A vitória estratégica da Rússia”, mas a aceleração da derrota estratégica do Ocidente.
O 7 de outubro de 2023 foi o álibi perfeito para Washington, Londres e Bruxelas desertificarem a sua presença em Kiev. Ninguém quer ouvir falar do presidente Zelensky no Congresso dos Estados Unidos nem na Casa dos Comuns tampouco no Parlamento europeu.
Hoje todos sabem que foi apoiando iludindo os ucranianos que os europeus tornaram os extremistas da Itália e da Hungria mais frequentáveis, alimentaram a vitória de gente estranha nos Países Baixos e abriram o caminho para essas cobras criadas figurarem como favoritas para as próximas eleições europeias. No caso norte-americano, só um milagre pode inibir o retorno do presidente Donald J. Trump.
O Ocidente jamais será o mesmo depois destas tormentas.
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A derrota estratégica do Ocidente. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU