Ainda em meio à pandemia do coronavírus e à tragédia social desencadeada no Brasil, na frieza do distanciamento social e de respostas por escrito, José Luís Fiori concedeu à Margem Esquerda uma entrevista única. Para além de análises certeiras e debates teóricos, o intelectual que nunca se encaixou nas formas estanques das especializações científicas do pensamento social e político enfatiza, aqui, uma narrativa biográfica, na qual mescla eventos da sua vida com os acontecimentos da história política do Brasil e do mundo, simbiose a qual permitiu que experimentasse a estadia em vários países e a convivência com grandes cânones do nosso tempo.
A entrevista é de Gilberto Bercovici e Luiz Felipe Osório, publciada por Revista Margem Esquerda Nº. 37, Editora Boitempo. A entrevista foi enviada pelo entrevistado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Na apresentação de História, estratégia e desenvolvimento, o economista chileno, José Gabriel Palma, professor da Universidade de Cambridge, diz que Fiori é um pensador “herético” pela sua multidisciplinariedade e independência com relação a autores de referência e escolas de pensamento. De fato, Fiori se formou no Chile, quando as grandes questões em debate eram a revolução, o socialismo democrático e o desenvolvimento, e quando se formularam as principais teorias da dependência, e esses debates o marcaram definitivamente. Com o passar do tempo, formulou sua própria visão a respeito do funcionamento do sistema internacional e recolocou o debate do bloqueio do desenvolvimento latino-americano no contexto das lutas geopolíticas pelo poder global. Suas análises são marcadas pelo pessimismo da razão e pelo otimismo da vontade, na expressão clássica de Gramsci, e pela frieza com que disseca os fatos e as tendências no pleno calor dos acontecimentos. Sua produção teórica e suas análises da conjuntura nacional e internacional, sobretudo a partir da década de 1990, fazem dele um dos principais articulistas e pensadores brasileiros.
Neste denso documento, conduzido pelos professores Luiz Felipe Osório e Gilberto Bercovici nos primeiros dias de setembro de 2020, Fiori nos deixa pistas para conhecer melhor sua vida e obra em meio às transformações mundiais e aos seus impactos sobre o contexto político-econômico latino-americano e brasileiro. Desde os tempos do seu exílio no Chile, passando por vários países, e depois no Rio de Janeiro, ele discute sua história e suas conjunturas, entre livros e artigos que foram marcando sua vida e sua trajetória intelectual de lutas, derrotas e vitórias por igualdade, liberdade e o desenvolvimento soberano do Brasil.
Para iniciar esta conversa, seria interessante ouvir sobre sua trajetória. Desde o Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro foi uma longa caminhada que passou por várias cidades e destinos, incluindo momentos no exterior, e todo esse percurso estava imerso nos solavancos da história brasileira, mesclando momentos de euforia desenvolvimentista e repressão política.
Costumo pensar comigo mesmo que tive dois exílios ou duas grandes “imigrações” que marcaram minha vida intelectual, profissional e pessoal. O primeiro deles quando tinha dezenove anos e fui obrigado, pela ditadura militar, a me exilar no Chile. E o segundo, quase dez anos depois, quando fui obrigado a sair de lá por causa da ditadura militar do general Pinochet. Depois disso, em distintos momentos, vivi na Argentina, nos Estados Unidos, na Espanha, na Inglaterra, permaneci ou retornei muitas vezes à França, Itália, Alemanha, Europa Central e acabei visitando dezenas de países e centenas de cidades ao redor do mundo. Essas viagens ajudaram a forjar minha paixão pelo mundo e meu interesse pelo sistema mundial. Aprendi a importância decisiva das fronteiras e identidades nacionais, e ao mesmo tempo aprendi a não ser nacionalista, mas a ser internacionalista sem me transformar num cosmopolita ingênuo e liberal.
Não há dúvida de que meu primeiro exílio foi o que me deixou a marca mais profunda e definitiva, porque depois de sair do Brasil fui obrigado a viver toda minha juventude como “apátrida”, desde o momento em que os militares brasileiros tiraram minha identidade brasileira, obrigando-me a viver com um documento fornecido pelo governo chileno aos refugiados que se exilavam no seu território sem uma documentação nacional. Além disso, foi no Chile que fiz minha formação acadêmica, onde estudei sociologia, economia e filosofia. Por isso, aliás, meu sentimento tão forte de um segundo exílio quando saí de lá, porque já tinha minha vida praticamente formada no momento em que tive que fugir de novo. Hoje, eu não saberia avaliar se eu teria saído do Chile se não fosse pelo golpe de Pinochet. O que sei é que para mim foi muito triste deixar o país à época. Eu tinha acabado de completar 28 anos e, na verdade, ao sair de Santiago, deixei para trás minha juventude e minha segunda pátria.
Você sempre conta que tocou-lhe viver um período de grandes transformações no Chile, durante os governos de Eduardo Frei e Salvador Allende, e como foi um período de grande ebulição de ideias inovadoras até chegar o golpe militar. Qual o impacto que isso teve na sua formação intelectual?
Saí do Brasil em 1965, antes dos chamados “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira, mas acompanhei de perto a experiência chilena dos governos de Eduardo Frei e Salvador Allende, e até assisti da minha casa o bombardeio final da residência do presidente chileno. Quando cheguei ao Chile, e, sobretudo, no ambiente universitário que frequentei, o grande debate dos anos 1960 e início dos 1970 era sobre reforma ou revolução, socialismo ou capitalismo de Estado, e sobre a possibilidade da “transição democrática” para o socialismo.
O debate sobre o desenvolvimento e o “desenvolvimentismo” não ocupava lugar central na agenda das nossas discussões. A atmosfera intelectual era de grande euforia utópica, e a Revolução Cubana exercia – obviamente – enorme fascínio sobre a juventude, como prova de que a revolução era possível e se podia construir um mundo novo na América Latina. Não consigo lembrar nessa época de nenhum jovem que tivesse como seu ideal apenas o “desenvolvimento”, ou como ideologia, o “desenvolvimentismo”. O escritório central da Cepal [1] estava em Santiago, e suas pesquisas e formulações econômicas foram muito importantes, mas estiveram muito pouco presentes na minha formação acadêmica, pelo menos no meu tempo de graduação em sociologia na Universidade do Chile, embora as ideias e as propostas cepalinas tenham exercido forte influência sobre o “reformismo democrata cristão” do governo de Eduardo Frei, entre 1964 e 1970.
De qualquer forma, mais além da Cepal, a própria experiência reformista dos democratas-cristãos e, depois, a experiência frustrada do socialismo democrático de Salvador Allende atraíram para o Chile muitos intelectuais do mundo todo, e de todos os matizes teóricos e ideológicos, que vinham pesquisar, observar ou participar de congressos e seminários, transformando a cidade numa verdadeira universidade aberta e pública, um verdadeiro caldeirão de ideias, uma experiência intelectual única, que já tinha ocorrido em algumas cidades europeias nos séculos XIX e XX, mas que nunca tinha acontecido, e nunca mais ocorreu, na América Latina.
Lembro de uma vez, por exemplo, que vinha caminhando e vi uma aglomeração de pessoas na frente de um prédio. Parei, escutei, entrei e vi um senhor mais velho de gravata borboleta falando para um público muito atento. Então, perguntei quem era e me disseram que era Arnold Toynbee. Sentei e escutei uma brilhante conferência e depois segui meu caminho. Mas poderia ter sido Bobbio, Foucault, Braudel ou mesmo Willy Brandt, Enrico Berlinguer ou, mais tarde, o próprio Fidel Castro. Esse era o clima intelectual de Santiago do Chile naquela época.
Além disso, tive experiências profissionais interessantes. Primeiro, trabalhei numa pesquisa do professor Alain Touraine sobre a classe trabalhadora chilena. Depois, fiz concurso e trabalhei no Instituto de Sociologia da Universidade do Chile, e, em seguida, nos anos 1967-68, trabalhei com Paulo Freire no Icira [2], numa pesquisa sobre a “consciência camponesa” e o processo de reforma agrária. Foi no tempo em que o Paulo Freire estava escrevendo seu livro Pedagogia do oprimido, que eu acompanhei muito de perto; e finalmente trabalhei também no Cidu [3], numa investigação sobre os “movimentos sociais urbanos”, e numa equipe de que participavam também os sociólogos espanhóis Manuel Castells e Jordi Borja.
Assim mesmo, de tudo isso o que mais me marcou intelectualmente nesses anos de trabalho em Santiago foi minha convivência com Paulo Freire, de quem me fiz grande amigo, apesar de nossa diferença de idade. Sempre digo que Paulo foi quem me ensinou a pensar com liberdade, sem medo das minhas próprias ideias. No final de 1968, ele foi trabalhar na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e em seguida foi para o Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, onde me convidou em 1971 para fazer algumas conferências. Guardo dele uma lembrança muito forte e, por isso, foi muito gratificante para mim, quando, muitos anos depois, em 1981, encontrei um vendedor de livros numa rua de Sevilha que expunha um pequeno livrinho que levava na capa o nome do Paulo, do meu pai [Ernani Maria Fiori, importante filósofo brasileiro] e o meu. Era uma pequena edição espanhola de três artigos nossos publicados sob o título La educación liberadora [A educação libertadora].
E como você veio parar no Rio de Janeiro?
Como já contei, saí muito cedo de Porto Alegre e fui direto para o Chile, mas meu caminho de volta foi um pouco menos linear, inclusive porque eu não tinha nenhum projeto ou intenção de voltar para o Brasil. E, por isso, depois de Santiago, vivi um tempo curto em Buenos Aires, que era onde gostaria de ter ficado então, mas de onde saí devido ao agravamento da situação política argentina e o anúncio iminente de mais um golpe de Estado, já no início de 1974. Naquele momento fui convidado a trabalhar na Unesco [4], mas o convite demorou a se concretizar. Assim, já há algum tempo sem emprego e sem perspectiva de trabalho, fui obrigado a voltar ao Brasil, onde fiz um concurso para professor e fui classificado na USP (Universidade de São Paulo), e recebi um convite para trabalhar no Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Durante um ou dois anos trabalhei nas duas cidades, para finalmente optar por ficar apenas no Rio, por vários motivos que pesaram na minha decisão naquele momento. E só alguns anos depois foi que entrei para a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Medicina Social?
Foi isso mesmo, me convidaram para ajudar no seu programa de pós-graduação, e aceitei porque considerei que era um desafio novo e tirava um pouco minha cabeça da catástrofe chilena. E depois da montagem do programa, acabei gostando do “grupo da casa”, fui professor da primeira turma de mestrado, e depois de trinta anos me aposentei como professor titular da Uerj. Nesse tempo, me orgulho muito de ter ajudado a formar inúmeros sanitaristas, participando com eles da formulação do projeto originário de criação do SUS (Sistema Único de Saúde), que começou a ser desenhado em 1976 por um grupo lá do IMS (Instituto de Medicina Social), sendo depois construído durante a gestão do dr. Hésio Cordeiro [5] na presidência do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), em 1986-87, antes de ser consagrado pela Constituição de 1988. Hésio Cordeiro foi um dos fundadores do IMS, e também aluno da primeira turma do mestrado, junto de outros médicos que lá se formaram e o acompanharam no Inamps. O IMS acabou se transformando numa “escola de poder” que formou mais de um ministro da Saúde e inúmeros dirigentes sanitários brasileiros, e, do ponto de vista estritamente intelectual, ele se transformou num lugar de reflexão multidisciplinar e heterodoxa, que formou a elite da “intelligentsia sanitária” brasileira durante muitos anos. Para mim, foi uma experiência que começou de forma heterodoxa, mas que acabou sendo um espaço de convivência, formação e produção de ideias que teve grande importância na minha vida profissional e intelectual, sobretudo durante as décadas de 1970 e 1980.
Entrando agora mais diretamente no campo das ideias e da sua produção, gostaríamos de resgatar os caminhos da sua formação intelectual e as influências que mais impactaram na formação do seu pensamento.
Talvez, devido à minha própria formação acadêmica, em várias áreas ou “campos de saber”, nunca me senti ligado de forma monogâmica a nenhum autor ou escola de pensamento, e quase sempre tive dificuldade para responder exatamente quando me perguntavam o que eu era profissionalmente. Assim mesmo, acho que os três alicerces fundamentais da minha formação intelectual vieram da filosofia, que estudei em vários momentos da vida, sem nunca ter concluído um curso formalmente. Aliás, meu pai era filósofo, e isso com certeza marcou muito minha formação.
Em primeiro lugar, minha visão dialética da história, que veio da minha admiração pelo pensamento de Heráclito e se estendeu até Hegel e Marx; em segundo lugar, meu “ceticismo radical”, que veio também da filosofia grega, se consolidou com minha leitura de Sexto Empírico, e depois passou por Montaigne e Hume, chegando até o debate epistemológico do século XX, entre Popper, Lakatos, Feyeraband, Bachelard, Kuhn, Prigogine etc.; e, finalmente, meu “hiper-realismo político”, que vem de Tucídides, passa por Maquiavel (o maior de todos os meus mestres) e Hobbes e se consolida com o estudo das teorias realistas da teoria política e da economia política internacional contemporânea, que vão de Edward Carr a John Mearsheimer, para citar apenas dois nomes. E sublinho aqui o “prefixo hiper”, por incluir no meu campo de estudo, com toda a dignidade de um “objeto científico”, aquilo que os cientistas políticos costumam descartar como “teoria da conspiração”.
Já no século XX, e no campo em que venho atuando nos últimos anos, sublinharia a influência decisiva de alguns historiadores e cientistas sociais que trabalharam com as “grandes durações” e os grandes conflitos de poder do sistema mundial, como é o caso dos teóricos do imperialismo – Hobson, Hilferding, Bukharin e Schumpeter –, mas também o próprio Marx, Max Weber, Karl Polanyi, Norbert Elias, William McNeill, Charles Dawson, Fernand Braudel, Charles Tilly, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, que são os que mais me influenciaram. Por outro lado, no campo da economia propriamente dita, sofri influência sobretudo da economia política clássica e dos seus autores heterodoxos, começando por William Petty e o próprio Marx, seguindo com List e Hamilton; e no século XX, Keynes, Kalecki, Steindl, ao lado da escola estruturalista latino-americana, com Prebisch, Furtado, Pinto, Vuscovich, Conceição, Lessa etc.
Fui aluno ou participei de seminários com quase todos os “pais” das chamadas teorias da dependência, e em particular Andreas Gunder Frank e Enzo Faletto foram meus professores já no curso de graduação no Instituto de Sociologia da Universidade do Chile. Aliás, foi Enzo Faletto quem me ensinou e introduziu pela primeira vez no pensamento de Max Weber. De qualquer maneira, é sempre muito difícil identificar as raízes e reconstruir as trilhas do seu próprio pensamento.
Você se refere muitas vezes a um texto que seria sua primeira produção escrita, depois da sua volta ao Brasil, em 1983, chamado “Para uma economia política do tempo conjuntural”. Qual a importância que atribui a esse ensaio com relação a suas pesquisas e produção intelectual posterior?
Você tem razão em lembrar desse texto, porque de fato ele teve importância seminal com relação a quase tudo que escrevi depois. O fascínio pela política e pela análise das conjunturas políticas, nacionais e internacionais atravessa toda minha vida intelectual. Mas, neste caso, tudo começou com um curso que dei no Departamento de Ciência Política da USP em 1975, onde procurei analisar a origem histórico-conjuntural do conceito de “ditadura do proletariado”, formulado por Marx, a partir da experiência fracassada da Comuna de Paris.
E, a propósito, li e analisei com os alunos o texto clássico de Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, que considero a primeira tentativa de análise e compreensão de uma conjuntura política concreta, construída a partir de uma visão teórica de longo prazo, a do materialismo histórico. Foi a partir daí que comecei a trabalhar de forma mais rigorosa e conceitual sobre o que seria o “tempo conjuntural” e como ele deveria ser estudado. Foi o resultado dessa pesquisa que procurei sintetizar naquele texto que você mencionou. Parto naquele trabalho exatamente d’O 18 de brumário..., e vou fazendo um exercício crítico de reflexão sobre os limites do conceito de “interesse de classe”, na própria análise de Marx sobre a conjuntura política francesa de 1850, para depois discutir como vários outros autores marxistas tentaram resolver o problema da heterogeneidade e da inoperância analítica do conceito quando este é utilizado para examinar o tempo curto da história conjuntural. E é aí que introduzo e tento combinar, pela primeira vez, as análises dos autores marxistas com a teoria das “expectativas racionais” do Weber, a “teoria da guerra” do Clausewitz e a teoria das “longas durações” históricas do Braudel.
Foi nesse momento que você começou a escrever e publicar suas próprias análises da conjuntura brasileira e internacional?
Não, eu escrevi esse texto em 1983, e foi só no início da década de 1990 que convergiram duas coisas que mudaram minha vida intelectual: a primeira foi a divulgação jornalística de minhas análises de conjuntura; e a segunda foi o início da minha atividade como “intelectual público” ou como “publicista” crítico do projeto neoliberal que estava começando a desembarcar no Brasil naquele momento. Tudo começou com a publicação, no Caderno de Ideias do Jornal do Brasil, de uma análise e um diagnóstico crítico do plano de estabilização econômica do governo Collor de Mello, alguns dias depois do anúncio do chamado Plano Collor, em março de 1990. Aliás, em meados de 1994 também publiquei no Caderno Mais! da Folha de São Paulo uma análise crítica da Plano Cruzado, poucos dias depois da sua divulgação, e que se chamou exatamente “Os moedeiros falsos”. Nos dois casos, o objeto da minha crítica não foi a parte técnica do plano macroeconômico propriamente dito, mas o fato de que os dois planos serviriam como “Cavalo de Troia” para introduzir no Brasil as políticas e reformas neoliberais que vinham sendo difundidas, lideradas e/ou impostas urbi et orbi pelas potências anglo-saxônicas, e, no nosso caso em particular, pelos Estados Unidos. Depois disso, sim, comecei a escrever e nunca mais interrompi minha militância intelectual, com a publicação cada vez mais regular de centenas de artigos de análise conjuntural em jornais e revistas nacionais e internacionais. E ao escrever fui desenvolvendo meu próprio método e minhas próprias categorias e instrumentos adequados à análise crítica do “tempo conjuntural”, definido como “ponto de encontro” e, ao mesmo tempo, “ponto de passagem” de vários tempos e lutas de poder sobrepostos e inter-relacionados, lutas políticas e econômicas, nacionais e internacionais.
Em 1984, você também publicou um trabalho a quatro mãos com o professor Carlos Lessa, sobre a política econômica e a crise política do Segundo Vargas. [6] Qual a importância que você atribui a esse trabalho, e como ele influenciou sua tese de doutoramento, que escreveu logo em seguida e defendeu em 1985, na USP, sobre os ciclos e crises do Estado desenvolvimentista brasileiro? A tese foi editada pela EdUerj em 1995, com o título O voo da coruja. Por que esse título?
Respondendo por partes e começando pelo início desta história, foi exatamente aí que entrei na UFRJ, em 1980, a convite do Carlos Lessa, para fazermos juntos a pesquisa sobre o Segundo Vargas, que durou uns dois ou três anos. Durante a convivência com ele, aprendi tudo o que sei até hoje de política econômica, e foi essa pesquisa que me ensinou a utilizá-la como um instrumento de análise das conjunturas políticasum grande salto analítico. Meu interesse não era ser economista, era saber ler os dados econômicos e combinar a análise política com a análise econômica na leitura dinâmica de um tempo histórico em que se combinam sempre fatos, expectativas e estratégias de luta pelo poder. No caso dessa pesquisa, nossa pergunta era a relação que poderia ter existido entre a política econômica nacionalista do segundo governo de Vargas e o ultimato militar que levou o presidente ao suicídio. E nossa conclusão foi que a crise e o golpe militar não foram causados pela política econômica, até porque o segundo governo de Vargas nunca praticou uma política macroeconômica que pudesse ser chamada de heterodoxa, e que pudesse provocar a revolta dos conservadores, que não fosse no caso do aumento do salário-mínimo de 100%, em 1953, e que levou ao imediato afastamento do ministro do Trabalho, João Goulart. O que o governo de Vargas fez foi usar o espaço de liberdade criado pelos Acordos de Bretton Woods para levar à frente uma política monetária e cambial flexível que permitisse atender aos múltiplos interesses heterogêneos reunidos na coalizão de forças que o sustentava. Não havia nada de excepcional nisso e todos os governos posteriores fizeram o mesmo, pelo menos até a década de 1980. Por isso, nossa atenção se deslocou para os fatores e as conexões internacionais que pesaram naquela conjuntura. No caso, em primeiro lugar, o projeto de integração do Cone Sul, o ABC que foi denunciado pelo próprio ministro de Relações Exteriores do governo, Neves da Fontoura. E, em segundo lugar, o Acordo Militar Brasil-EUA, assinado em 1952, que condicionou os desdobramentos políticos que se seguiram, e todo o desenvolvimento brasileiro até o final dos anos 1970. Esse acordo referendou a opção estratégica defendida pelo general Golbery do Couto e Silva num artigo publicado naquele mesmo ano, na Revista do Clube Militar, no qual defendia o alinhamento incondicional do Brasil com os Estados Unidos como condição de possibilidade do próprio desenvolvimento econômico do país. Foi aí também que comecei a entender melhor o papel que teve, para o sucesso econômico do desenvolvimentismo conservador brasileiro, a submissão militar brasileira à política externa estadunidense, pelo menos até o momento em que o general Ernesto Geisel denunciou – em 1977 – este mesmo Acordo Militar de 1952, uma decisão que pesou decisivamente na perda do apoio americano ao regime militar brasileiro.
Foi nessa época que li pela primeira vez a trilogia de Braudel sobre a civilização material e capitalismo e retomei então minha “preocupação hegeliana” com os tempos históricos e o desafio de juntá-los numa mesma análise conjuntural. E foi essa tentativa de os dois tempos – estrutural e conjuntural – que me levou à tese de doutorado. Acho que o que ficou daquela tese é menos sua análise da crise do Estado desenvolvimentista brasileiro e mais a questão do método, a combinação do tempo conjuntural com o tempo estrutural, a combinação da dimensão nacional com a internacional e, finalmente, da política com a economia, sem cair em nenhum tipo de economicismo ou politicismo. Esse “novo olhar” me permitiu reinterpretar a crise do nosso desenvolvimentismo dos anos 1980 e perceber que o desenvolvimentismo brasileiro, militar e conservador acabou com a crise econômica mundial dos anos 1970 e com a mudança da estratégia econômica internacional e a geopolítica dos Estados Unidos dos anos 1980.
Por fim, o título Voo da coruja foi extraído da última frase da tese, que acaba com uma referência e uma homenagem a Hegel.
Na sua tese de professor titular, “Instabilidade e crise do Estado na industrialização brasileira”, de 1988, você faz uma análise do processo de industrialização brasileiro, falando inclusive dos “sonhos prussianos” de parte dos nossos dirigentes. Após ter constituído um parque industrial relevante, a política adotada no país a partir de 1990 foi a da desindustrialização. Como você explicaria isso? Nossos sonhos prussianos foram abandonados de vez e nosso atraso deixou de ser uma vantagem?
Esta é uma questão fundamental em toda discussão a respeito do desenvolvimento capitalista brasileiro e seu bloqueio a partir da década de 1980. E é sem dúvida um ponto central que está presente na minha tese de doutoramento e que reaparece na minha tese de professor titular defendida em 1989. Até a década de 1980, os “sonhos prussianos” de alguns setores militares (sim, porque também entre eles sempre houve liberais e desenvolvimentistas, apesar de quase todos defenderem o alinhamento automático com os Estados Unidos, em termos estratégicos internacionais) e de parte da elite política puderam conviver com o liberalismo da outra parte das mesmas elites e do mesmo empresariado brasileiro, graças ao apoio estadunidense ao projeto desenvolvimentista e às condições financeiras criadas pelos Acordos de Bretton Woods. Mas, como já dissemos, essa aliança foi “estrangulada” na década de 1970 pela mudança da estratégia econômica internacional dos Estados Unidos, que reduziu a margem de manobra interna da “política macroeconômica desenvolvimentista” dos governos militares. Primeiro, os “sonhos prussianos” do general Geisel entraram em conflito com a “intolerância hemisférica” dos Estados Unidos; depois, seus sucessores perderam espaço de manobra macroeconômica com a desregulação dos mercados financeiros globais e o fim da “proteção de Bretton Woods”.
Ainda sobre a industrialização, você chegou a afirmar que o financiamento internacional da siderurgia pesada no Brasil, opção tomada graças à resistência do empresariado nacional e à escassez de recursos próprios, teria marcado a impossibilidade de qualquer industrialização realmente autônoma no país. A falta de articulação entre Estado e empresariado, vetada pelas elites econômicas brasileiras, teria condicionado a industrialização brasileira a um desenvolvimento associado ao capital internacional, não sendo um projeto efetivamente nacional. Você continua entendendo o processo de industrialização brasileira desse modo? Houve a possibilidade de um processo realmente autônomo?
Acho que o problema não foi falta de articulação entre o Estado e o empresariado brasileiro. Sempre houve militares e empresários que sonharam com algum tipo de “capitalismo de Estado” à brasileira, mas sempre houve também um número bem maior de militares e empresários liberais e ultraliberais que se opuseram a esse projeto. Foi esse grupo liberal que acabou vetando e derrotando internamente o projeto do governo Geisel de transformar o Brasil numa potência intermediária, e essa facção interna do próprio governo Geisel aproveitou para “saltar do barco” no momento em que o governo estadunidense tirou seu apoio internacional ao regime militar brasileiro, menos por conta do seu autoritarismo e mais por conta do seu veto à autonomização estratégica do Brasil. Muitos autores da época falaram de um “tripé” para caracterizar o modelo de desenvolvimento brasileiro, mas a verdade é que esse tripé esteve presente em quase todos os casos de desenvolvimento capitalista depois da Segunda Guerra Mundial. Contudo, nos anos 1970-80 esse “tripé” acabou sendo inviabilizado, pelo lado econômico, exatamente porque os “ortodoxos” forçaram o financiamento do II PND por meio do endividamento externo, que na época estava barato, só que essa dívida explodiu depois da subida da taxa de juros estadunidense em 1979.
Muitas coisas mudaram no Brasil nas últimas décadas, mas essa estrutura básica dos interesses e das posições ideológicas segue sendo muito parecida. O desenvolvimentismo perdeu apoio internacional, e a abertura do mercado financeiro brasileiro realizada pelo governo FHC na década de 1990 liquidou de vez qualquer possibilidade de retomar o arranjo dos anos 1950-60. E esse é o grande bloqueio que o Brasil enfrenta hoje, parecido com o que a Argentina vem enfrentando desde os anos 1950. O projeto neoliberal não tem a menor possibilidade de dar conta do desafio de uma sociedade tão terrivelmente grande, desigual e miserável como a brasileira, e o projeto desenvolvimentista clássico, ou de um capitalismo de Estado mitigado, não conta com o apoio estadunidense, além de ter o veto da burguesia financeira nacional, que adquiriu enorme poder depois dos anos 1990.
É notória e profícua sua parceria com a profa. Maria da Conceição Tavares. Em entrevista à esta Margem Esquerda, ela mesma confirmou a importância da interlocução intelectual entre vocês. Ela lembrou o episódio de quando vocês se conheceram no Chile, das discordâncias iniciais e da posterior complementação das ideias –, sendo que ela com a economia política e, você com a sociologia, a história e a ciência política. Como se deu essa parceria intelectual que envolveu, ao mesmo tempo, uma amizade fraternal?
De fato, conheci Conceição Tavares em Santiago do Chile, em 1968, e depois fui seu aluno na Escolatina da Universidade do Chile, mas sobretudo fomos sempre grandes amigos, uma amizade fraternal que se estende até hoje. Ao mesmo tempo, sempre tivemos uma interlocução intelectual extremamente profícua. Primeiro, acompanhando a experiência política chilena, depois, no Brasil, onde assistimos e muitas vezes participamos da luta pela redemocratização brasileira. Do ponto de vista propriamente acadêmico, creio que nossa parceria esteve estreitamente associada à criação da pós-graduação do Instituto de Economia Industrial da UFRJ, na primeira metade dos anos 80, e posteriormente, à criação do programa de pesquisa no campo da economia política internacional que montamos com outros colegas no período em que ela foi diretora do Instituto de Economia Industrial da UFRJ. A pesquisa começou em 1986 e nos levou à Europa, Ásia e Estados Unidos, onde pudemos estudar as transformações econômicas e geopolíticas que começaram com a crise da década de 1970 e culminaram com o fim da União Soviética e da Guerra Fria e com o grande avanço da globalização financeira dos anos 1990, sob a batuta do poder militar global estadunidense. E hoje estou convencido de que a grande originalidade do nosso novo programa de pesquisa, naquele momento, no campo da economia política internacional, foi a de juntar duas questões que apareciam inteiramente separadas nos debates acadêmicos da época: a “crise do desenvolvimentismo brasileiro” e latino-americano e a “crise e retomada da hegemonia estadunidense” dos anos 1970-80. E esse passou a ser o tema dominante das nossas tertúlias intelectuais nas décadas seguintes.
Depois das nossas viagens pelo mundo, essa pesquisa também nos levou a publicar vários livros coletivos, desvelando a dimensão política e a luta internacional de poder que se escondia por trás da chamada “globalização econômica”. Além disso, na década de 1990, estivemos juntos, lado a lado, na nossa militância crítica e jornalística contra o projeto neoliberal inaugurado no Brasil por Collor de Mello e FH Cardoso. Nesse tempo, Conceição se envolveu mais diretamente na militância político-partidária e foi deputada federal, mas mantivemos sempre nossa interlocução intelectual.
Essa releitura da conjuntura internacional foi o pontapé inicial da pesquisa mencionada na pergunta anterior, e que reuniu vários professores da UFRJ e da Unicamp, que trabalharam juntos durante vários anos, culminando na formação, em 2008, do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, no Instituto de Economia da UFRJ.
Na sua concepção teórica, você aponta para elementos centrais como tendência expansiva e internacionalizante dos capitais, hegemonia, imperialismo, sistema interestatal capitalista, poder e riqueza. Em quais pontos você se aproxima de Marx ou das teorias marxistas em geral e em quais momentos você se afasta? O conceito de imperialismo, central na leitura marxista, influencia sua obra? Como?
Acho que se pode dizer, sem medo de errar, que as teorias do imperialismo do início do século XX foram as grandes precursoras da atual economia política internacional, que só se assumiu como disciplina acadêmica nas últimas décadas do século passado, em particular no mundo acadêmico anglo-americano. É óbvio que elas exerceram grande influência sobre minhas ideias e pesquisas no campo internacional. De qualquer forma, o deslocamento da minha reflexão para o campo do “poder” e suas várias formas de organização e expansão só se deu a partir da publicação do meu ensaio “Formação, expansão e limites do poder global”, no livro O Poder Americano que organizei e editei em 2004, na Coleção Zero à Esquerda, liderada pelo professor Paulo Eduardo Arantes, na Editora Vozes.. E, em particular, no prefácio do meu outro livro O poder global e a nova geopolítica das nações, onde acho que realmente formulei as bases da minha nova visão do sistema de poder mundial. Creio que foi aí, depois da formulação do que chamei de “paradoxo de Petty”, a respeito da origem do “excedente econômico”, que comecei minha leitura da história do sistema interestatal capitalista, de forma autônoma com relação à economia política clássica e à teoria do imperialismo.
Considero que foi só então que consegui definir meu enfoque pessoal de pesquisa, dentro da economia política internacional. Um enfoque que parte do conceito de “poder” como uma “energia que se expande a partir de si mesma”, para chegar a deduzir algumas hipóteses sobre a dinâmica de todo “poder territorial”, em particular, do poder dos “Estados e economias nacionais” que se transformaram na unidade competitiva e motora do sistema interestatal capitalista. Um sistema que funciona como uma espécie de máquina de acumulação de poder e riqueza e que se expande de forma contínua sem nenhum tipo de telos, ou de destino necessário ou predeterminado.
Foi a partir dessas hipóteses que me debrucei sobre a história de longo prazo de formação e desenvolvimento do sistema interestatal capitalista, começando pelas “guerras de conquista” e pela “revolução comercial” que ocorreram no continente europeu nos séculos XII e XIII, para chegar até a formação dos Estados e economias nacionais europeias e o início da sua vitoriosa expansão mundial, a partir do século XVI. Como é sabido, na Europa, ao contrário do que aconteceu nos impérios asiáticos, a desintegração do Império Romano e, depois, do império de Carlos Magno provocou a fragmentação do poder territorial e o desaparecimento quase completo da moeda e da economia de mercado entre os séculos IX e XI. Nos dois séculos seguintes, entretanto – entre 1150 e 1350 –, aconteceu a grande revolução que mudou a história do continente e do mundo: forjou-se uma associação indissolúvel e expansiva entre a “necessidade da conquista” e a “necessidade de produzir excedentes” cada vez maiores, que se repetiu, da mesma forma, em várias unidades territoriais soberanas e competitivas que foram obrigadas a desenvolver sistemas de tributação e criar suas próprias moedas para financiar suas guerras de conquista. As guerras, os tributos, as moedas e o comércio existiram sempre, em todo tempo e lugar; a grande novidade europeia foi a forma como se combinaram, somaram e multiplicaram em conjunto, dentro de pequenos territórios altamente competitivos e em estado de permanente preparação para a guerra. Na Europa, a preparação para a guerra e as guerras propriamente ditas se transformaram na principal atividade de todos seus “príncipes”, “feudos”, ou outras formas de “poder territorial”, e a necessidade de financiamento dessas guerras se transformou num multiplicador contínuo da dívida pública e dos tributos. E, por derivação, num multiplicador do “excedente”, do “comércio”, do “mercado de moedas” e dos “títulos da dívida”, produzindo e alimentando – na Europa – um circuito acumulativo absolutamente original entre os processos de acumulação de poder e riqueza.
Mas só depois que compreendi plenamente o “paradoxo do Petty” é que ficou claro para mim que era logicamente impossível explicar o aparecimento da “necessidade europeia” de acumulação de um “excedente” cada vez maior apenas a partir do “mercado mundial” ou do “jogo das trocas”. Como escrevi naquele momento, mesmo que os homens tivessem uma propensão natural para trocar – como pensava Adam Smith –, isso não implicaria necessariamente que também tivessem uma propensão natural para acumular lucro, riqueza e capital. Ou seja, do meu ponto de vista, a verdadeira força expansiva que acelerou o crescimento dos mercados e produziu as primeiras formas de acumulação capitalista não veio do “jogo das trocas” ou do próprio mercado; veio do “poder”, da “conquista” e da energia gerada pela “acumulação do poder”. E essa “energia” se manteve ativa, central e decisiva, mesmo depois da constituição das relações de produção “propriamente capitalistas” e mesmo depois da própria industrialização.
Nos livros O poder global e a nova geopolítica das nações, de 2007, e, principalmente, em seu artigo no livro O mito do colapso do poder americano, de 2008, você antecipa questões centrais na geopolítica mundial que com o tempo vão se confirmando, como a manutenção instável, e ainda assim crescente, do poderio americano, a ascensão da China e o retorno da Rússia aos grandes palcos globais. Hoje estamos assistindo de novo a um intenso debate sobre o fim da “ordem liberal americana”. Fora a ansiedade de muitos analistas por um novo horizonte, que contamina a frieza necessária ao teórico, como você entende a discussão? Em que aspectos há diferenças e quais são os pontos de convergência dos dois momentos?
Depois da contundente vitória americana na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, os EUA desfrutaram, durante uma década, da condição de centro unipolar do poder global. Mas essa condição começou a se alterar a partir do início do século XXI, quando eles iniciaram sua “guerra global ao terrorismo” e se envolveram progressivamente numa sucessão de guerras no Oriente Médio que já se prolongam há duas décadas. Nesse período, os EUA foram também o epicentro de uma enorme crise econômica que começou por seu sistema financeiro imobiliário, em 2008, e acabou atingindo toda a economia mundial. Mas foi na última década, e mais particularmente nos últimos cinco anos, que o mundo vem assistindo atônito à vertiginosa ascensão da China como potência militar regional; à reconstrução acelerada do poder militar global da Rússia; à fragmentação e ao declínio do poder global da União Europeia (UE), junto com o ocaso da Grã-Bretanha como potência individual; além do crescimento da presença miliar da Rússia e do Irã no Oriente Médio; o afastamento da Turquia com relação aos seus aliados da OTAN; e, num nível mais baixo de importância global, a “degringolada” internacional do Brasil.
O mais surpreendente, no entanto, no período recente, foi o fato de os próprios norte-americanos terem tomado a decisão de se afastar de seus antigos aliados liberais, e de atacar de forma direta e agressiva s valores e instituições da ordem internacional liberal que eles mesmos haviam criado depois da Segunda Guerra, e haviam reafirmado depois do fim da Guerra Fria. Entre 1989 e1991, o Ocidente festejou a vitória definitiva da “democracia”, da “economia de mercado” e de uma nova “ordem ética internacional”, orientada pela defesa dos “direitos humanos”. Mas trinta anos depois, o panorama mundial mudou radicalmente. A velha “geopolítica das nações” voltou a funcionar como a bússola do sistema interestatal, o “nacionalismo” e o “protecionismo” voltaram a ser praticados pelas grandes potências e os grandes “objetivos humanitários” dos anos 90 parecem ter sido relegados a um segundo plano da agenda internacional. Nada disto é prova suficiente do fim do poder americano, mas sem dúvida, é a evidência de que o sistema internacional está vivendo uma transformação geopolítica profunda, que entretanto, vem sendo provocada, em grande medida, pela própria expansão do poder dos EUA que não foi interrompida mesmo nos anos “pacíficos” da década de 90.
O que os analistas mais “ansiosos” às vezes não tomam na devida conta é que, na expansão contínua do sistema interestatal “inventado” pelos europeus, a própria lógica competitiva do sistema impede que a “potência hegemônica” aceite o status quo que ela instalou através de suas vitórias. Por isso, quando se sente ameaçada, muitas vezes a potência hegemônica destrói as próprias “regras” e “instituições” que criou, mas o faz como estratégia de preservação do seu poder. Exatamente como ocorreu com os EUA em 1973, quando se desfizeram do sistema de Bretton Woods que haviam criado em 1944. E agora de novo estão se desfazendo das regras e instituições que criaram ou reafirmaram depois de sua vitória de 1991. Ou seja, ao contrário do que afirmam todas as teorias da “estabilidade hegemônica”, nesse sistema interestatal e capitalista que está em permanente expansão, nunca houve nem haverá hegemonia estável, porque se trata de um sistema e de uma liderança que precisam se expandir, e que por isso mesmo estão em permanente estado de guerra ou de “preparação para a guerra”.
São indiscutíveis os impactos que a ascensão da China causa no mundo. Independentemente do que representa seu sistema econômico e político, o que, por si só já conforma todo um debate, a China lança desafios novos ao jogar as regras do jogo e, com isso, o conseguir proeminência. Como você entende o papel dos chineses nessa relação de hostilidade política e militar e de complementaridade/concorrência econômica com os EUA, bem como na atual parceria estratégica com a Rússia?
Uma coisa parece que já está consolidada: o novo núcleo central da geopolítica mundial do século XXI estará composto, pelo menos, por EUA, China e Rússia, três grandes gigantes territoriais e populacionais que controlam sozinhos cerca de um terço e um quarto do território e da população mundiais, respectivamente. Mas ainda não está claro se a Europa conseguirá recuperar sua posição de grande potência, e tampouco está claro o lugar que será ocupado pela Índia neste novo núcleo do poder mundial. Parece irreversível, entretanto, a ascensão do Irã no Oriente Médio, numa relação cada vez mais estreita com China e Rússia.
Assim mesmo, não há dúvida de que a grande incógnita que desafia hoje a imaginação dos analistas é que relação se estabelecerá entre China e EUA, ou mais amplamente, entre a China e as grandes potências ocidentais, envolvendo um quebra-cabeça no qual China e EUA aparecem ao mesmo tempo como dois grandes Estados nacionais e duas grandes economias capitalistas, competitivas e complementares, que seguem as velhas regras estabelecidas pela Paz de Westfália de 1648, mas que ao mesmo tempo são a “cabeça” de dois grandes universos civilizatórios. A China não tem hoje a capacidade, nem o objetivo de substituir os EUA como grande império militar global. No entanto, a China já é hoje uma potência econômica global e é um parceiro comercial e financeiro indispensável para todos os países do mundo. E ao mesmo tempo, os EUA não têm mais como excluí-los da economia capitalista, e por isso terão que conviver e competir com a China segundo as mesmas regras que utilizaram até hoje para impor sua própria supremacia econômica mundial. Além disso, você tem razão, o grande projeto chinês de investimentos em infraestrutura – o Belt Road –, que já envolve cerca de 65 países da Ásia, África, Oriente Médio, Europa e até América Latina, é sem dúvida uma reprodução exponencial do modelo britânico de expansão imperial do século XIX, que avançou liderado pela difusão de suas ferrovias e bases de conexão marítimas, apoiados pelo poder financeiro da City. E isto é talvez o que mais assusta os anglo-americanos que dominaram o mundo nos últimos 300 anos: a rapidez e eficiência com que a China vem reproduzindo seus velhos caminhos, mas utilizando-se de uma diplomacia inteiramente diferente, até porque o chineses não têm nenhum tipo de bandeira religiosa, nem demonstram nenhum tipo de interesse de converter o mundo ocidental aos seus ideais confucianos. Pelo contrário, professam um profundo desprezo pela incapacidade ocidental de compreender sua civilização. Neste sentido, a incorporação da China ao sistema interestatal e seu sucesso na economia capitalista mundial colocam algumas questões ou desafios quase incompreensíveis para a arrogância ocidental e para o fundamentalismo judaico-cristão:
1. Do ponto de vista chinês, o Estado não está a serviço do desenvolvimento capitalista; pelo contrário, é o desenvolvimento capitalista e o próprio Estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já se considera o pináculo da história humana.
2. Para os chineses, a democracia ocidental é apenas um fenômeno datado e circunscrito do ponto de vista temporal e territorial. E, portanto, não só não é inevitável, como pode entrar em crise e ser superada ou abandonada muito antes que os ocidentais possam acreditar.
3. A China não parece estar se propondo como um modelo alternativo, mas não há dúvida de que seu sucesso econômico, tecnológico e militar, quando comparado ao dos demais países, transforma-a, inevitavelmente, numa referência para a periferia atrasada do resto do mundo.
4. Por fim, o ingresso do “Estado-civilização” chinês no sistema interestatal capitalista deixa uma pergunta sem resposta no horizonte deste século XXI: a China se submeterá inteiramente ao sistema de Westfália, ou será Westfália que terá que se adaptar ao sistema “hierárquico-tributário” milenar do mundo sinocêntrico?
Deste ponto de vista, aliás, não seria um total absurdo imaginar um futuro em que o mundo eurocêntrico acabasse abandonando aos poucos suas convicções “westfalianas”, aceitando cada vez mais o modelo “hierárquico-tributário” chinês, e neste caso, que o sistema mundial acabasse adotando no futuro a forma de dois ou três grandes “impérios do meio”, com algumas réplicas inferiores.
Como você vislumbra o Brasil nessa encruzilhada?
Entre 2003 e 2014, o Brasil teve uma política externa que procurou aumentar seus “graus de soberania” frente às “grandes potências”, e dentro do sistema internacional como um todo, por meio da sua liderança do processo de integração sul-americana e de alianças estabelecidas fora do continente estadunidense, sobretudo no caso da criação do grupo econômico Brics. Em 2014, o Brasil já havia ingressado no pequeno grupo dos Estados e economias nacionais que exercem liderança nas suas próprias regiões, e foi por isso – entre outras coisas – que começou a sofrer as consequências da sua nova posição na hierarquia mundial, ingressando num novo patamar de competição, cada vez mais feroz, com as grandes potências que lutam permanentemente entre si pelo poder e pela riqueza mundiais.
Esse foi um momento crucial da história recente do Brasil, e para seguir em frente, o que não aconteceu. Pelo contrário, uma parte da elite civil e militar, e da própria sociedade brasileira, decidiu recuar e pagar o preço da sua decisão. Optaram pelo caminho do “golpe de Estado” e depois redobraram sua aposta, numa coalizão formada às pressas, que culminou com a instalação de um governo “paramilitar” e de extrema-direita, que vem se propondo a mudar radicalmente o rumo da política externa do Brasil, em nome de uma cruzada ridícula contra o comunismo e de uma proposta absurda de “salvação da civilização judaico-cristã”. No entanto, o que mais chama atenção no meio da uma grande balbúrdia retórica é o fato de essa coalizão que capturou o governo não conseguir dizer minimamente qual é seu projeto para o Brasil. Os militares, que são a maioria dentro do governo, quando falam, é para agredir ou lançar palavras de ordem desconexas e inoportunas. Os religiosos fundamentalistas recitam versículos bíblicos, e parece que vivem cegados pelas suas obsessões sexuais. Os juízes e procuradores que participaram do golpe e da “operação Bolsonaro” não conseguem enxergar um palmo além do seu nariz provinciano. E, por fim, os financistas e os tecnocratas amigos do ministro da Economia parecem robôs de uma ideia só.
Mesmo assim, é possível deduzir para onde apontam algumas iniciativas desconexas deste governo a partir do velho sonho das elites liberais-exportadoras do passado de se transformarem numa espécie de dominium econômico ocidental. Roberto Campos já falava do projeto de tornar o Brasil um grande Canadá, mas hoje os Estados Unidos defendem o nacionalismo econômico, praticam uma política altamente protecionista e não se submeteriam jamais a nenhum tipo de acordo que prejudicasse o interesse dos seus produtores nacionais nem muito menos assumiriam a responsabilidade de tutelar um país com as dimensões e o nível de desigualdade do Brasil, ainda por cima com uma economia agroexportadora que compete com a sua.
Do meu ponto de vista, se este governo de extrema-direita e “paramilitar” – que foi instalado no Brasil – insistir em levar à frente, a “ferro e fogo”, esse projeto de autotransformação num dominium, ele deverá destruir quase tudo o que foi feito nos últimos noventa anos da história da industrialização brasileira para se transformar num mero fornecedor de alimentos, de minerais estratégicos e de petróleo para as grandes potências. E se, além disso, também levar à frente seu projeto de “protetorado militar”, estará acorrentando a nação brasileira à humilhação de bater continência para a bandeira estadunidense. Uma traição que deixará uma marca, causando um dano irreparável à autoestima do povo brasileiro, a menos que ele se levante e volte a caminhar com suas próprias pernas. Quando essa hora chegar, será fundamental que algumas decisões fundamentais sejam tomadas e que se tenha em mente um novo projeto de longo prazo para o país, um projeto capaz de se sustentar com seus próprios apoios internos, sem recuar nem esmorecer – lembrando sempre que todos os povos que conseguiram superar grandes catástrofes para chegar a ser grandes nações tiveram primeiro que assumir o controle da sua soberania, para assim poder definir os objetivos e o futuro que desejavam para si mesmos.
Você tem se referido em algumas das suas palestras recentes ao seu novo livro, que se chama SA síndrome de Babel e a disputa do poder global .
Sim, com certeza. É um livro que reúne em torno de 40 ou 50 artigos que escrevi sobre a conjuntura nacional e internacional destes últimos cinco anos. Eu uso o mito da Torre de Babel para refletir sobre o comportamento estadunidense, nestes últimos anos em que desceu do alto do seu poder imperial global para destruir a ordem liberal mundial que eles mesmos haviam instaurado. E faço uma analogia desse comportamento com o comportamento de Deus, no mito de Babel, que desce dos céus para destruir a torre que os homens estavam construindo para alcançar o céu e se igualar ao poder divino. Sugiro a hipótese de que os Estados Unidos também estão se sentindo ameaçados pelas suas próprias “criaturas”, e que por isso decidiram abandonar seu “universalismo moral”, e seu velho projeto de “conversão” dos povos, e passaram a atacar o sistema multilateral que haviam criado, se desfazendo das suas velhas alianças e mantendo ativa a divisão entre Estados e nações. Como também jogando os povos uns contra os outros e dissolvendo todo tipo de bloco ou de coalizão dos Estados que possa ameaçar o poder estadunidense, como no caso exemplar da União Europeia, que os próprios Estados Unidos haviam ajudado a criar, e que hoje vem sendo desmoralizada e boicotada sistematicamente pelo governo de Donald Trump, mas também de todas as demais instituições que vêm sendo ocupadas pelas novas potencias que crescem rapidamente à sombra da expansão do poder estadunidense.
Mas agora especulando um pouco sobre o futuro, já no início de 2021 e da nova administração democrata de Joe Biden: quais são suas expectativas ou previsões desde o ponto de vista de sua pesquisa teórica e histórica?
Neste ponto, o primeiro que se deve ter claro é que o mundo já não voltará mais atrás, e que as relações que foram desfeitas, as instituições que foram destruídas e os compromissos que não foram cumpridos pelo governo de Donald Trump já não poderão mais ser reconstruídos e refeitos como se nada tivesse ocorrido. Depois de quatro anos, os Estados Unidos perderam sua credibilidade mesmo frente aos seus aliados mais antigos e permanentes. E apesar das declarações calorosas de amizade de Joe Biden, ninguém mais pode ter certeza de que o próprio Trump, ou qualquer outro partidário de suas posições, não será reeleito daqui a quatro anos, retomando o mesmo caminho do antigo presidente. Além disto, pesa sobre a cabeça dos democratas, e sobre o futuro do projeto de liderança internacional do governo de Biden, o balanço do expansionismo agressivo dos Estados Unidos durante as quase três décadas de vigência do poder unilateral e do projeto “liberal-cosmopolita” dos norte-americanos, fosse sob governos republicanos, fosse sob governos democratas. Basta lembrar que da declaração da “guerra global ao terrorismo”, em 2001, os Estados Unidos fizeram intervenções militares em 24 países e fizeram 100 mil bombardeios aéreos sobre países do que chamaram de Grande Médio Oriente.
Neste momento, uma coisa é certa e tem que ser considerada ao se calcular o futuro imediato da proposta internacional de Joe Biden: o mundo mudou demais e não voltará mais atrás, e não por culpa dos extraordinários erros do governo de Donald Trump. O projeto “liberal-cosmopolita” já não tem mais o mesmo apelo do passado; a utopia da globalização já não exerce o mesmo atrativo nem tem capacidade de prometer a mesma felicidade da década de 90; o Ocidente já não tem mais como eliminar ou submeter a civilização chinesa. Somando tudo, o que se pode prever com razoável grau de certeza é que o governo Biden será um governo fraco, e que o mundo atravessará os próximos anos sem ter mais um líder arbitral. Com tudo isto, o futuro do governo Biden, e de certa forma, da própria humanidade, dependerá muitíssimo da capacidade do governo americano e de todas as grandes potências ocidentais, de entender e aceitar o fato de que acabou a exclusividade do sucesso econômico liberal do Ocidente; e o que é talvez ainda mais importante e difícil de aceitar: que acabou definitivamente o monopólio moral da “civilização ocidental”.
Por fim, professor titular, aposentado, mas ainda muito ativo, qual seria o balanço da sua vida e obra?
Me aposentei como professor universitário, mas não me aposentei nem me aposentarei jamais como intelectual. Sempre pensei comigo mesmo que o intelectual é um ser que nasce e vive movido por uma eterna curiosidade e paixão pelo conhecimento, como a que que tiveram, por exemplo, os gregos e os renascentistas, para dar apenas dois exemplos. Agora, bem, com relação ao balanço que me pedem que faça da “minha vida” e da “minha obra”, prefiro pensar que “minha vida” é a que estou vivendo neste momento e “minha obra” é a que gostaria de escrever no futuro.
[1] Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada no âmbito do Conselho Econômico e Social (Economic and Social Council – Ecosoc) da Organização das Nações Unidas (ONU), em uma tentativa de debater setorialmente, por continentes, os rumos do desenvolvimento, principalmente, na periferia, no pós-Segunda Guerra Mundial.
[2] Sigla para Instituto de Capacitación y Investigación de La Reforma Agraria [Instituto de Capacitação e Investigação da Reforma Agrária], órgão chileno voltado para a formulação de políticas e estudos voltados à reforma agrária.
[3] Sigla para Curso de Desarrollo Urbano y Regional de la Universidad Católica de Chile [Curso de Desenvolvimento Urbano e Regional da Universidade Católica do Chile], centro de estudos e pesquisas que formou importantes nomes do pensamento social latino-americano da época.
[4] É a sigla para Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, que possui escritório também em Buenos Aires.
[5] Renomado sanitarista brasileiro, Hésio de Albuquerque Cordeiro nos deixou no dia 8 de novembro de 2020.
[6] Lessa, C. e Fiori, J.L, “Houve uma política econômica nacional-populista?”, XII Encontro Nacional de Economia, São Paulo, ANPEC, 1984