07 Junho 2019
Foi a hipótese de uma lista “Por uma Europa migrante e solidária” a ser apresentada nas eleições europeias quem os reuniu no ano passado. A ideia foi por água abaixo algumas semanas depois, mas os sociólogos Edgar Morin, 97 anos, e Alain Touraine, 93, continuam convencidos de que o lugar que reservamos aos migrantes continua sendo um “teste” para uma União Europeia em declínio.
A reportagem é de Eric Favereau e Thibaut Sardier, publicada em La Repubblica, 06-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na época da globalização, Alain Touraine costuma dizer que o estrangeiro não existe mais. É também a sua opinião?
Edgar Morin – Gostaria de começar a partir dessa ideia de que existem limiares de tolerância e que isso deve ser levado em conta no caso dos migrantes. Na minha opinião, é uma ideia que é preciso discutir: trata-se de um limiar de tolerância psíquica, biológica ou psicológica? Podemos supor que uma população de índios amazônicos não é capaz de acolher ou de suportar a chegada de um grande número de estrangeiros: basta até um pequeno número de colonizadores para destruí-la. Mas podemos considerar que as populações europeias não estão superpovoadas.
Alain Touraine – No mínimo é o contrário...
Edgar Morin – Na Europa, podemos considerar que ainda existem espaços não ocupados na zona rural. Portanto, não há problema de ordem física ou biológica que limite a chegada dos migrantes. Em suma, chegamos a essa ideia de que o limiar é psicológico. Em certo ponto, “nós” nos sentimos ameaçados, saturados, e isso tanto pelos estrangeiros que permanecem, quanto por aqueles que estão aqui apenas de passagem. A questão central é esse medo dos estrangeiros. Ainda mais que, quando há crises econômicas ou de civilização, as angústias se concentram em bodes expiatórios que se tornam responsáveis por todos os males, os judeus, os árabes ou os migrantes. A pergunta, então, é: como lutar contra esse desvio psicológico?
Alain Touraine – Eu tenho uma abordagem bastante diferente. A pergunta que devemos nos fazer hoje é se aceitamos a visão de um mundo igualitário ou se queremos manter a nossa situação de antigos dominadores. Eu faço essa pergunta em relação a duas categorias que coloco no mesmo plano: os imigrantes e as mulheres. Queremos sair de um mundo em que a liberdade é limitada, dominada pelos homens brancos, ou consideramos indispensável entrar em um mundo inteiro, que não seja feito somente para nós?
Estaremos na modernidade quando reconhecermos que todos devemos fazer parte dela. Quando se evoca o tríptico “liberté, égalité, fraternité”, conceitos aos quais eu gosto de acrescentar o da “dignidade”, estamos falando da liberdade de todos, da fraternidade de todos? Não é tanto a questão de deixar um certo número de pessoas entrar. Ao contrário, eu diria: apaguemos a mancha de uma experiência de dominação, em que se encontram a colonização, a escravidão, a inferioridade das mulheres.
Nunca estaremos em um mundo normal enquanto oito em cada dez pessoas não forem iguais.
Antes de mais nada, até mesmo antes dos problemas ecológicos, que também são cruciais, a nossa humanidade deve se reconhecer como uma unidade, um conjunto de seres livres e iguais.
Isso está ligado ao pensamento universalista de Edgar Morin.
Edgar Morin – O que Alain propõe é o problema que eu me faço há anos e que permanece sem solução. Em 1991, ao escrever “Terra-Pátria”, tomei consciência do fato de que, com a globalização, todos os terrestres têm um destino comum. Essa consciência deve trazer consigo um humanismo regenerado, que tome consciência de que toda a humanidade é arrastada para uma aventura comum. Agora, quanto mais fica evidente que essa comunidade de destino existe, com a progressão de eventos mundiais que dizem respeito a todos, menos essa consciência se forma. Por quê? Por que as angústias provocadas pela globalização levam a um encurvamento sobre a própria cultura, sobre a própria identidade religiosa e nacional? Certamente sim. É um problema dramático, que pesou em toda a minha obra intelectual.
Há 30 anos avançamos com grande lentidão. A questão ecológica, que deveria ser uma das alavancas para perceber essa comunidade de destino, não é percebida como tal. Como conseguiremos inverter a direção dos espíritos e das consciências?
Tivemos a experiência da crise dos anos 1930, que era econômica, mas também democrática, quase de civilização, e já naquela ocasião vimos chegar o encurvamento, o fechamento nacionalista. Hoje, o neoautoritarismo nacionalista progride no mundo inteiro.
Todas essas problemáticas estão conectadas, e você tem razão, Alain, em acrescentar a elas a questão feminina e a das consequências da colonização. Os países que se descolonizaram até os anos 1970 foram recolonizados economicamente. A emancipação política não foi seguida por uma democratização. Pior ainda, as terras férteis foram vendidas para empresas chinesas, coreanas etc., que as exploram em seu favor.
O que pode ser feito para combater o encurvamento nacionalista?
Edgar Morin – Concordo com a ideia de que devemos apelar para o nosso sentimento de identidade humana, que também contém o da alteridade. Qual é o critério da compreensão do outro? É entender que ele é idêntico a você pela sua capacidade de sofrer, de amar, de sentir, mas, ao mesmo tempo, é diferente pelo seu caráter, pelas suas convicções, pelas suas manias etc. Mas o fato é que, na lógica binária tecnocrática que predomina atualmente, somos incapazes de perceber isto: ou é o estrangeiro absoluto estranho ou é o irmão. Mas todos somos compatriotas da nossa Terra-Pátria, e, ao mesmo tempo, há particularidades em cada um de nós.
Alain Touraine – O modelo racionalista e democrático está diretamente ameaçado. Pela primeira vez em centenas de anos, o mundo é cada vez mais dominado por não democracias, por aqueles que eu chamo, para usar uma palavra antiga, de impérios: com Donald Trump, os Estados Unidos se tornam um império. A China também, assim como os países com um poder religioso.
Nesse contexto, o reconhecimento dos direitos é um fato fundamental: somente se nos considerarmos como indivíduos que têm todos os mesmos direitos é que podemos pôr em movimento os nossos mecanismos políticos. O que eu peço é que se defendam os nossos direitos de cidadãos, porque prefiro dizer que os problemas ecológicos são problemas que se enquadram na defesa do nosso ser cidadão.
Acima de tudo, é importante não separar os aspectos político, ecológico e econômico, embora eu argumente que os problemas políticos devem ter uma certa prioridade.
Para nós, trata-se de saber se se faz ou não a Europa, o único continente que representa a democracia. Só teremos sucesso se dermos a prioridade aos temas da humanidade unida. Porque ou se faz o nacionalismo xenofóbico, como a Hungria, a Polônia ou a Itália, ou se faz a Europa.
Edgar Morin – A Europa – vimos isso na crise da Grécia e na dos migrantes – mostrou a sua cegueira, mas também o seu lado reacionário. Eu diria que, diante dessa regressão generalizada, o problema não são apenas os regimes autoritários, mas também o modo de pensar as classes dominantes, baseado no cálculo econômico e no lucro, que esconde os problemas fundamentais. Para combater tudo isso, é preciso criar o maior número possível de oásis, para criar um espaço para resistir. Felizmente, nos nossos países, há uma enxurrada de associações, lugares de fraternidade onde reina a ideia de que não existem estrangeiros, de que todos somos irmãos, como vimos em Savoia. Assim, estamos nos preparando para ser pontos de partida de uma nova progressão e, ao mesmo tempo, pontos de resistência à atual regressão. Mas eu, ao contrário de Alain, observo que as condições atuais são desfavoráveis. Hoje, o único homem político animado por um espírito humanista é o prefeito de Palermo, quando diz que não há estrangeiros, mas apenas palermitanos. É a demonstração de como estamos isolados, em regressão. Por isso, acho que é hora de opor resistência a todas as regressões e às barbáries, incluindo a gélida barbárie do cálculo, que ignora o fato de que os seres humanos são feitos de carne, de sangue e de alma.
Alain Touraine – O tema dos migrantes é o próprio teste. Se você ceder em relação aos migrantes, você cede em relação a tudo. Em particular em relação à Europa. A imigração também é do nosso interesse. Muitas das nossas regiões precisam ser reindustrializadas, outras têm que enfrentar a desertificação, outras ainda sofrem com uma carência de serviços públicos. Não devemos esquecer que a população francesa é muito pouco globalizada. Temos apenas duas cidades globais na França: Lyon e Paris.
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Liberté, égalité fraternité: para todos? Entrevista com Edgar Morin e Alain Touraine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU