21 Agosto 2023
Atualmente jornalista da revista Piauí, Allan de Abreu passou duas décadas pesquisando o crime organizado. Conversou com Brecha sobre as rotas do narcotráfico, sua crescente sofisticação, o lugar do Uruguai em seu esquema continental, as formas realmente eficientes de combatê-lo e o fracasso da guerra contra as drogas.
A entrevista é de Salvador Neves, publicada por Brecha, 11-08-2023. A tradução é do Cepat.
Devemos começar explicando qual é o seu caminho como pesquisador do narcotráfico e o que o levou a empreendê-lo.
Sou jornalista há 22 anos, especializado na cobertura do crime organizado e principalmente no narcotráfico. Há 15 anos me dedico a investigar casos de grandes grupos de narcotraficantes, principalmente no Brasil, mas também em países da região, como México, Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai. Com base nessas investigações, publiquei algumas reportagens e também livros. O primeiro, em 2017, foi Cocaína: a rota caipira [Record, Rio de Janeiro], que seria algo parecido com a “rota camponesa”, porque passa pelo interior do país e é a principal rota do narcotráfico no Brasil. Depois, em 2021, publiquei outro livro, derivado deste, Cabeça Branca [também pela Record], uma biografia de Luiz Carlos da Rocha, o maior traficante que o Brasil já teve, segundo minha avaliação e de especialistas da Polícia Federal brasileira. E nesse processo, naturalmente, fiz pesquisas sobre o Primeiro Comando da Capital [PCC] e as organizações rivais.
A história começa em uma estrada…
É que eu era jornalista no interior do Estado de São Paulo. E a cocaína passava por aí rumo às cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que são grandes centros consumidores. Além disso, São Paulo tem o porto de Santos, por onde a cocaína é exportada, que hoje é o grande negócio do PCC.
Recentemente ouvi dois estudiosos das políticas criminais na América Latina afirmarem que as rotas do narcotráfico são, em última análise, as mesmas de outros tipos de comércio ilegal. Falaram de uma rota que vai de Guayaquil até Galápagos e daí passa à Costa Rica, utilizada tanto pelo narcotráfico quanto pelos traficantes de espécies protegidas. É isso mesmo?
Exatamente. A rota caipira começou a ser percorrida na década de 1970 com o contrabando de café. Naquela época, o Brasil cobrava impostos muito altos sobre a exportação de café e os do Paraguai eram insignificantes. Os cafeicultores, principalmente os do interior de São Paulo, contrabandeavam o café para o Paraguai para exportá-lo de lá. E na década de 1990, quando esse negócio deixou de ser interessante porque a tributação mudou, o sentido do caminho foi invertido e por ele era trazida, do Paraguai, a cocaína.
O eixo continua nas cidades de Ponta Porã, do lado brasileiro, e Pedro Juan Caballero, do lado paraguaio, que são praticamente uma única cidade. Por aí passa para o Brasil boa parte da cocaína que o Paraguai recebe da Bolívia e do Peru. Dominar aquela região é dominar a rota. E o PCC entendeu isso. Por isso tentou controlá-la, o que gerou um conflito com Pedro Jorge Rafaat, que era o grande capo daquela fronteira, história que culminou no assassinato de Rafaat em 2016.
E a rota do rio Paraguai, que desce pelo Paraná e chega ao Rio da Prata, passando pelo Uruguai, também é muito antiga, bem estabelecida e teve muitos usos. Justamente, ao ler sobre Sebastián Marset, lembrei-me de Gustavo Durán Bautista, esse grande traficante colombiano, um caso interessante, que se instalou em Salto e foi preso em sua propriedade, em 2007, com 495 quilos de cocaína pura. Até onde sei, Marset está operando nessa rota, que chega ao porto de Montevidéu, de onde sai a cocaína para a Europa.
Alguns relatos mencionam que Montevidéu oferece ao narcotráfico a vantagem de ser um ponto de saída “contraintuitivo”, devido a sua maior distância dos portos de chegada...
E pela falta de fiscalização, como ocorre no Paraguai. O Paraguai não tem nenhum controle sobre o que acontece no curso do rio. É incrível. Esse país é complicado, com uma corrupção muito evidente. Não é que não haja corrupção no Brasil, mas aqui ainda existem certos controles.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos diz que as rotas para o sul teriam se tornado mais difíceis devido a um controle mais eficiente da Polícia, e que por isso boa parte das cargas estariam indo para o norte, em direção à Amazônia. Concorda?
Apenas em parte. A verdade é que, generalizando, porque as rotas são muitas; na América do Sul temos duas grandes rotas. Uma é do sul: Paraguai, centro-sul do Brasil, Argentina e Uruguai. É uma via importante porque possui grandes centros urbanos e uma estrutura aeroportuária e portuária também maiores, um desenvolvimento logístico que facilita o transporte de drogas, que inclui uma malha viária bem estruturada, o que facilita a exportação de cocaína para a Europa, que é um grande negócio agora. A segunda é a rota amazônica, que sai do Peru e da Colômbia, muitas vezes nem passa pelo Brasil, e vai até o Pacífico, seguindo por caminhos como aquele que ia do Equador à Costa Rica e de lá ao Caribe. É uma rota mais orientada para os Estados Unidos.
Você também mostrou como o narcotráfico se sofisticou. Quais são as etapas desse processo?
Analisando o narcotráfico do ponto de vista histórico, a primeira lição que observo é que o líder da quadrilha descobre que precisa se afastar das drogas. Os primeiros grandes narcotraficantes intervinham pessoalmente no transporte. Depois se dão conta de que devem manter distância, pois quanto mais perto estiverem da carga, maior o risco de irem para a cadeia. A segunda lição é a compartimentalização. Antes, não era difícil garantir que quem transportava a droga acabasse delatando o líder da quadrilha. Com a compartimentalização, os escalões inferiores da quadrilha não sabem para quem trabalham e isso protege o chefe do esquema.
E a terceira lição é perceber o risco da verticalização. No Cartel de Medellín tudo dependia de Pablo Escobar. Caído Pablo Escobar, tudo está desarmado. O PCC aprendeu isso e criou uma estrutura horizontalizada, organizada no que chamam de sintonias; tem a sintonia das gravatas, que são os advogados, a sintonia que trata do transporte, e assim por diante. E a sintonia que o encabeça é uma cúpula, não é o Marcola [Marcos Willians Herbas Camacho] sozinho, embora ele seja realmente um grande líder. Mas se Marcola acabar morrendo, o PCC vai continuar.
Nessa estrutura, eliminar a cabeça não derruba tudo. E todas essas lições aprendidas dificultam o trabalho policial, ao qual se soma agora a questão da comunicação. Com os novos aplicativos, nos quais as mensagens são criptografadas, as escutas telefônicas praticamente não existem mais.
Você disse recentemente que o PCC dominava São Paulo, enquanto o Rio era disputado pelas milícias, pelo Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro. Ainda é assim?
Sim. O Rio não consegue se organizar nem no crime... Em São Paulo, o PCC realmente domina o crime. É interessante o poder regulador que exerce. Ali caíram os homicídios e não porque a Polícia é mais eficiente, mas por causa da regulação do PCC. O PCC não quer violência, não quer chamar a atenção da mídia e da Polícia, quer lucrar em silêncio.
Muito se tem falado sobre o papel do encarceramento em massa com o surgimento do PCC. Qual é a ligação entre essas duas coisas?
O PCC nasceu como uma espécie de sindicato dos detentos. Sua criação é uma reação ao massacre do Carandiru. Como se lembrará, em 1992 uma rebelião dos presos do presídio do Carandiru – na cidade de São Paulo – foi afogada em um banho de sangue. Houve 111 presos mortos. Então, os presos perceberam que deveriam se unir contra um Estado corrupto e uma Polícia assassina. O PCC nasceu com essa filosofia: defender os direitos dos presos, embora não pela via legal, claro.
Isso durou até 2002, 2003, quando Marcola assumiu a liderança e passou a investir pesado no narcotráfico, enquanto o PCC se expandia fora dos presídios. O PCC nasce nas prisões e daí se espalha: é fruto do encarceramento em massa, o resultado disso, de presídios superlotados, das condições de saúde absolutamente desumanas. Fruto de um Estado que encarcera muito e aprisiona mal, principalmente os pequenos traficantes.
Essa discussão sobre até que ponto faz sentido prender um microtraficante e trancá-lo em uma prisão, da qual ele sairá com uma pós-graduação em criminalidade, está cada vez mais atual. Por isso é muito interessante que o Uruguai tenha descriminalizado o uso da maconha.
Em Cocaína cita uma frase do estatuto do PCC que diz: “O comando não tem limite territorial” e descreve como, para evitar custos de intermediação, eles vêm recrutando membros nos países fornecedores.
A partir dos anos 2000, eles caminharam para o Oeste e se estabeleceram nas fronteiras do Paraguai e da Bolívia. Em seguida, cuidaram de encontrar fornecedores de cocaína para alimentar seus pontos de venda em São Paulo. Ainda não exportavam. Isso foi até mais ou menos 2012. Esta marcha rumo ao Oeste tem seu ápice na morte de Rafaat. A partir daí penetraram no Paraguai e na Bolívia, e hoje são um cartel porque dominam desde a produção, na selva boliviana, até a exportação: toda a cadeia.
Para se converterem em uma máfia, só precisam conseguir uma infiltração consistente no Estado. Hoje existem alguns casos de infiltração, mas ainda são episódios pontuais, sem a dimensão que a infiltração da máfia teve no Estado italiano ou nos Estados Unidos. No momento, o PCC não mostra ambições políticas como as de Pablo Escobar.
Pode-se esperar que a organização continue a se espalhar?
Certamente. O Ministério Público do Estado de São Paulo acompanha esse processo muito de perto e observa que o número de militantes do PCC nos países vizinhos está crescendo. Praticamente todos eles têm células do PCC, inclusive o Uruguai, já há algum tempo.
Dizem que é mais provável que vejamos o PCC saindo de nossas prisões do que entrando em nossas fronteiras. O que você acha?
Não há dúvida de que há brasileiros presos nas cadeias uruguaias que fazem parte do PCC e lá estarão espalhando sua ideologia. Não sei como é aí, mas na década de 1990 o PCC fez uma coisa interessante nas prisões brasileiras, que foi proibir o uso do crack, porque essa droga deixa a pessoa completamente alucinada e perde o controle de suas ações, então a organização não pode manter o controle de sua gente. Se começarem a ver que em suas prisões já não se consome crack, talvez seja um sinal de que o PCC está começando a controlar o sistema penitenciário... [Risos]
Quando você mencionou o PCC como sindicato, lembrei que, lendo Cocaína, me chamou a atenção a linguagem que usavam: o comando tem uma ideologia, seus recrutas se chamam entre si de irmãos e falam de batismo. Qual é a função de tudo isso?
São rituais que eu acho que imitam a máfia. Para entrar no PCC tem que ser batizado e para isso tem que ter um padrinho, ou seja, um membro do PCC tem que propor o candidato e se responsabilizar por seus atos. Se o novato cometer algum deslize, o castigo recairá sobre ele e seu padrinho. Sua ideologia é um conjunto estrito de regras. O PCC permite que seus integrantes tenham seus próprios negócios ilícitos, mas nunca podem deixar de cumprir as missões que lhes são confiadas.
E, claro, não é permitido desviar dinheiro ou armas da organização. Eles têm seus tribunais do crime. Os juízes são líderes quase sempre presos e que transmitem suas decisões em voz alta pelo celular. As sentenças geralmente envolvem tortura e morte. E as regras são, em geral, seguidas. Em troca, se recebem benefícios. Se um membro for preso, o PCC paga seu advogado e um salário para sua família, entre outras coisas.
No seu último livro você mostrou um modelo diferente, o modelo do Cabeça Branca...
É o modelo empresarial. Ele estava acima dessas organizações. Para ele, eram clientes como qualquer outro. Ele era um grande atacadista de cocaína. Ao longo de três décadas, construiu um esquema logístico impressionante. Porque em países de trânsito, como o Brasil e o Uruguai, o segredo é a logística. O atacadista deve comprar a cocaína e transportá-la até seu ponto de saída. Quanto mais rotas para isso ele tiver, maior será seu poder. Cabeça Branca tinha uma frota de aviões, uma frota de caminhões, funcionários em quase todos os portos brasileiros. No Brasil ou no Uruguai, o segredo é esse.
E por isso é bom ter fazendas...
Exato. Ele tinha fazendas no Mato Grosso que serviam de depósito para a cocaína que chegava de avião e de lá seguia de caminhão para os grandes centros.
Trinta anos ficou impune...
É incrível. O impressionante é que ele nunca caiu na tentação de ostentar a riqueza e o poder que tinha. Todos os outros grandes traficantes caíram nessa. Pablo Escobar fez isso. Cabeça Branca soube ficar na sombra. A Polícia Federal não tinha nem foto dele. Tão discreto que nem mesmo hoje, já preso e condenado, quis falar comigo. Impressiona sua disciplina mental.
Mas esse caso também ensina sobre as formas mais eficientes de combater o narcotráfico, certo?
Também. Porque a operação que o levou à prisão foi muito diferente das outras. Elvis Aparecido Secco, o delegado da Polícia Federal que teve papel central em sua captura, também era economista. A partir dessa formação, ele se orientou para uma política que não focava na apreensão de drogas, mas sim na apreensão dos bens do criminoso. E acho que foi uma opção muito válida. Porque o narcotráfico tem tantos lucros que perder uma tonelada de cocaína não faz diferença (1). Isso não acaba com o esquema. Outra coisa é investigar a lavagem de dinheiro e depois apreender os bens do criminoso.
Essa foi uma lição importante para a Polícia Federal. A Polícia começou a procurar um fantasma, alguém cujo rosto permaneceu desconhecido por 30 anos; uma investigação que começou do zero, seguindo pistas fracas, e não com confiscos. Os confiscos vieram quando o criminoso já estava preso. Acho que esta investigação é um modelo. Hoje, muitas investigações bem-sucedidas começam pela análise dos movimentos financeiros das gangues. Os aplicativos de hoje, como dissemos, fazem com que as escutas quase não produzam mais resultados úteis.
A partir de outro lugar, você também está envolvido com o narcotráfico há décadas. O que você acha que tornou esse fenômeno tão grave em nosso continente?
A desigualdade social brasileira e latino-americana, que é escandalosa. O grande problema do Brasil é a desigualdade, suas periferias superpovoadas por pessoas que não têm a menor chance de conseguir um emprego no mercado legal e que veem no tráfico uma saída. Isso está claro faz décadas. A América Latina precisa discutir seriamente sua política de combate às drogas. Encarcera-se muito, mata-se e o problema só cresce. Hoje temos criminosos muito mais articulados, que transitam pela alta sociedade e, ao mesmo tempo, aliciam os pobres para que façam seu trabalho sujo por falta de perspectiva econômica.
Essa guerra contra as drogas está perdida. Por isso digo que o Uruguai fez algo interessante com a maconha. Hoje, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal está julgando a descriminalização do porte de maconha, porque, por incrível que pareça, aqui as pessoas continuam indo à prisão por portar uma pequena quantia, o que só agrava o encarceramento em massa e agrava a situação. É preciso discutir seriamente a liberalização das drogas. Acho que isso é consensual em todo o mundo. Esta guerra está perdida. Eu não tinha essa visão, mas agora é o que eu acredito.
Mudou de visão ao longo do tempo?
Eu mudei. Passei a entender que esta guerra não é a saída. Quando você analisa tantas operações policiais ao longo de tantos anos, acaba entendendo que, seguindo esse caminho, a coisa nunca acaba. Estamos nesta guerra há quatro décadas e ela não levou a nada. E gasta-se muito dinheiro. Claro, a indústria de armas ganha com isso e é lógico que a polícia esteja bem equipada. Mas comecei a ver operações que se repetiam uma e outra vez, indefinidamente, e a me perguntar: até quando? Isso nunca vai parar se continuarmos assim.
1. A tonelada de cocaína é obtida por US$ 1.000 na Bolívia e vendida a US$ 35.000 nos portos europeus.
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Narcotráfico. “As investigações bem-sucedidas começam pela análise dos movimentos financeiros”. Entrevista com Allan de Abreu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU