16 Fevereiro 2018
Em um mundo cada vez mais desequilibrado é preciso recolocar a pessoa e o trabalho no centro, para evitar tráficos e graves explorações e promover uma “economia civil”.
Eis a manifestação do economista Becchetti.
A entrevista é de Anne Wells, publicada por Mondo e Missione, 13-02-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quarenta milhões de pessoas vítimas de tráfico e reduzidas a condições de verdadeira escravidão, incluindo muitos menores. Mas também um ínfimo um por cento da população mundial que detém a riqueza dos restantes 99%. Em um mundo cada vez mais desigual, um pequeno grupo de extremamente ricos vive ao lado de um número cada vez maior de pessoas que nem sequer são considerados como tais, mas mera mercadoria de troca ou ferramenta de trabalho.
A apresentação do relatório de 2018 da Oxfam, em janeiro passado na cúpula de Davos, novamente evidenciou com maior dramaticidade os paradoxos de um sistema global que cria vastas áreas não só de pobreza, mas de discriminação, empobrecimento e exploração. Um mundo onde 82% do aumento da riqueza líquida registrada entre março de 2016 e março de 2017 acabou nos bolsos de uma pequena elite de super-ricos, enquanto mais da metade da população mundial (3,7 bilhões de pessoas) não teve nenhum tipo de benefício. "O mundo - afirma o professor Leonardo Becchetti, professor de Economia na Universidade de Roma Tor Vergata e autor de numerosos livros - tem enormes potencialidades para criar riqueza, mas não são bem exploradas".
Professor Becchetti, o que isso significa exatamente?
Isso significa que sistemas econômicos que trazem graves desigualdades dentro de si produzem crises financeiras ou conflitos sociais. Mas o dado mais impressionante, em minha opinião, é que apenas 1,5% das ‘super riquezas’ possibilitariam financiar o acesso à educação para todas as crianças do planeta.
Não podemos mais falar em desequilíbrios Norte-Sul, considerando que tal distinção ainda tenha algum sentido...
Norte e Sul entendidos em sentido geográfico existiam na década de 1970, nos tempos do Populorum Progressio. Hoje, cada país tem seu próprio "Sul". Vamos pensar na Itália e no fenômeno da contratação ilegal e grave exploração do trabalho que está presente em muitas partes do país, onde as empresas locais para competir com as estrangeiras importaram formas de precariedade e de grave exploração.
Além disso, mesmo nos países desenvolvidos e de alta renda, se a prosperidade não se difundir nos segmentos médio-baixos da população, criam-se condições para a propagação dos populismos ou para a busca de soluções fáceis.
Quais são os países ou as áreas mais "desiguais" do mundo?
A China é um exemplo. Ali ainda existe um núcleo duro de trabalhadores nos campos, que são realmente pobres e que mantêm baixos os custos do trabalho. Mas mesmo grandes países como os Estados Unidos têm áreas internas profundamente desiguais. Aqueles onde há maior igualdade são principalmente os escandinavos. Muito também depende do tipo de políticas que são decididas e implementadas, como a tributação progressiva ou a criação de redes de segurança para as faixas mais baixas da população.
Dentro deste mundo tão "desequilibrado" criam-se condições de exploração, se não de verdadeira escravidão cada vez mais graves e generalizadas...
Claro. Mas a questão realmente central não é nacional, mas global. Se a gente quiser modificar as coisas, precisam ser mudadas, por exemplo, as regras do comércio internacional. Quase 40% dos trabalhadores do setor têxtil na Ásia têm salários abaixo do salário mínimo. E o salário mínimo é um quarto do necessário para a sobrevivência. Isso também significa concorrência a baixo custo e dumping social em relação aos nossos trabalhadores. Uma coisa que não é positiva nem para eles e nem para nós. É preciso reverter a corrida ao rebaixamento do custo do trabalho. E colocar no centro, além da reforma do comércio internacional, também a sustentabilidade social e ambiental.
Se melhorarmos apenas aqui e não em outros lugares, a situação poderia até piorar, porque as nossas empresas seriam cada vez menos competitivas e tenderiam a ser transferidas. Precisamos trabalhar para os menos favorecidos para que todos nós possamos melhorar.
Como?
Em relação ao nosso país, através de três ferramentas para criar massa crítica: o que chamo de "voto col portafoglio" dos cidadãos (“Voto com a carteira”, termo cunhado pelo entrevistado para expressar a consciência de que as escolhas de consumo e poupança dos cidadãos são a principal urna eleitoral à sua disposição – NdT), apoiado por instrumentos que permitam avaliar a responsabilidade social dos produtos; o "voto col portafoglio" do Estado, que nas concorrências públicas não deve escolher a oferta de menor lance em detrimento do trabalho, do meio ambiente ou das empresas que não pagam impostos, mas deve privilegiar a oferta mais vantajosa com base em critérios sociais e ambientais; e, por fim, a reforma do IVA, o imposto sobre bens e serviços, que deve ser usado como uma ferramenta que premia as cadeias de produção mais sustentáveis e os padrões mínimos de proteção do trabalho.
Empregos e riqueza, porém, parecem mundos que estão se distanciando...
Claro, uma parte da riqueza depende da renda. Mas o problema fundamental é a tributação sobre a riqueza, se quisermos recompensar o trabalho e promover a redistribuição. Quem tem a riqueza, obviamente, se opõe a isso. Por exemplo, o projeto de aumentar recursos próprios da Europa através do imposto digital e do imposto sobre as transações financeiras é muito difícil de ser aprovado. Especialmente a tributação sobre a riqueza financeira é muito difícil porque existe uma forte oposição.
Mas também entre um tipo de trabalho e outro está se alargando o fosso...
A produtividade no Ocidente aumentou, mas os salários não cresceram na mesma proporção. E os trabalhadores perderam o poder de negociação. Isso aconteceu principalmente para o os trabalhadores de média e baixa qualificação. Na competição global, existe uma forte diferença entre aqueles que se beneficiam com a globalização e têm um forte poder de negociação e aqueles que são sugados para baixo. Essa forma de desigualdade só pode ser "curada" através de formação e de educação. Os jovens devem ter desejos que os motivem a subir na escada das competências e dos talentos.
Recentemente, a Organização das Nações Unidas também enfatizou a diferença salarial entre homens e mulheres. Em média, uma mulher ganha 23% a menos do que um homem. Ainda estamos em um mundo fortemente marcado pela disparidade de gênero?
Isso depende de uma combinação de fatores, principalmente culturais. Muitos países nem sempre são orientados para a igualdade de gênero. Mas mesmo onde existe uma cultura mais arraigada e generalizada da igualdade de oportunidades, ainda existem muitas dificuldades ligadas às diferentes condições de vida. Em suma, em termos globais, a igualdade de gênero ainda não existe.
Até mesmo o fenômeno da migração está fortemente vinculado à questão das desigualdades. Milhões de pessoas se deslocam para procurar melhores condições de vida. Como lidar com esse fenômeno?
O fundamental é, justamente, combater as desigualdades que estão na origem das migrações. Quase sempre há uma grande diferença entre os países de origem e de destino dos migrantes. Os quais contribuem enormemente para tentar reduzir esse fosso, através do envio de grandes somas de dinheiro na forma de remessas, que ajudam a melhorar as condições econômicas em seus países. Por outro lado, no passado recente vimos muitas pessoas emigrar de países como a Albânia e a Polônia e agora isso não acontece mais porque as condições socioeconômicas melhoraram nitidamente. Da mesma forma que ninguém emigrava da Síria antes da guerra eclodir. Da mesma forma que milhões de migrantes forçados fugiram das muitas áreas de crise existentes no mundo.
Hoje outra questão crucial é a do meio ambiente.
Este é outro grande desafio. Basta pensar, apenas como exemplo, a enorme pressão que existe na região do Sahel e, em especial, na área do Lago Chade. Lago que praticamente não existe mais. Por isso, as populações em seu entorno foram forçadas a se mudar, porque já não dispõem mais de recursos em seus locais de origem. E certamente não poderão mais retornar a essa região.
O que fazer? Você muitas vezes fala de boas práticas, mas também de boas políticas...
O que eu defino como ‘economia civil’ é um paradigma que se baseia em quatro pilares: o Estado e o mercado por si só não pode resolver todos os problemas, se não forem acompanhados por uma cidadania ativa e empresas responsáveis. A cidadania ativa é, por exemplo, o que eu definia acima como "voto col portafoglio", mas também é escolher o que e como consumir de forma responsável e como investir a própria poupança, favorecendo, por exemplo, os fundos éticos. Mas a cidadania ativa também se concretiza na comunicação e nos meios sociais, para elevar o nível cultural da opinião pública e combater as fake news e os discursos de ódio, mentiras e ódio desenfreado. Mas também é fundamental a gestão a partir de baixo dos bens comuns. Só dessa forma, partindo de baixo, poderemos construir algo de novo e mais justo.
Ainda tem algum sentido e valor o conceito de bem comum?
Absolutamente sim. É o único horizonte possível. Sempre que se chegue a um acordo sobre o que significa ‘bem comum’. Para um crente, bem comum que é o que está contido na doutrina social da Igreja. Pela perspectiva secular, é definido pelo artigo 3 da Constituição, em que se especifica que o Estado deve remover todos os obstáculos que limitam a liberdade e igualdade dos cidadãos, criando as condições para que cada um possa se realizar plenamente.
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O escândalo da desigualdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU