Por: Patricia Fachin | 18 Dezembro 2017
“Se tirarmos um retrato do Brasil de hoje, veremos que ainda somos um país muito desigual. Mas se olharmos para o que aconteceu entre 2002 e 2015, ou seja, não olharmos só para o retrato, se fizermos uma comparação do que aconteceu nesses últimos 13 anos, verificaremos que houve uma mudança muito importante”, defende Tereza Campello na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.
Coordenadora do relatório Faces da desigualdade no Brasil. Um olhar sobre os que ficam para trás, Tereza pontua que é fundamental analisar o enfrentamento das desigualdades em perspectiva, considerando, inclusive, os avanços em outras áreas que não apenas a renda. “Por que é importante olhar o que vem mudando ao longo do tempo? É importante porque se olharmos somente para o retrato atual, ele nos paralisa, porque o Brasil sempre foi um dos países mais desiguais do mundo e continua sendo. Por conta disso, a impressão que se tem é que não é possível mudar essa realidade, mas isso não é verdade. É possível mudar a realidade com investimentos públicos, com medidas políticas e é importante enxergamos isso para que continuemos investindo e alterando o atual status quo”.
Na entrevista a seguir, Tereza comenta os principais pontos do relatório, que se propõe a analisar a situação dos 5% e dos 20% mais pobres do país em comparação com o restante da população. Segundo ela, esse tipo de enquadramento é fundamental para entender as desigualdades. “A importância consiste em ver o que está acontecendo não com a média do brasileiro, mas com os mais pobres, porque, do contrário, só ficaremos olhando para o 1% milionário e os outros. Esse tipo de análise não resolve e não ajuda a construir políticas para solucionar esses problemas”, diz.
Entre os exemplos do percentual da população analisado, Tereza informa que “em 2002, existiam 75,9 milhões de pessoas negras com acesso à energia elétrica, contra 91 milhões de brancos, só que a população de pretos e pardos é maior do que a população de brancos. Esse número aumentou de 75,9 milhões para 109 milhões, ou seja, aproximadamente mais 30 milhões de pessoas negras passaram a ter energia elétrica. Por isso que quando se olhavam os dados gerais parecia que todo mundo tinha acesso à energia, porque estava sendo observada uma média. Portanto, é esse esforço que o trabalho tenta fazer: mostrar o que está acontecendo com a população a partir de vários olhares, principalmente esses de acesso à infraestrutura, como no caso da energia elétrica”.
Tereza Campello | Foto: Agência PT
Tereza Campello é economista, formada pela Universidade Federal de Uberlândia, e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Foi professora do curso de Economia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, assessora econômica do Gabinete de Planejamento e Orçamento Participativo de Porto Alegre, assessora do governador Olívio Dutra e secretária-geral adjunta de Governo no Rio Grande do Sul. Foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no período de 2011 a 2016, e coordenou o Plano Brasil Sem Miséria.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — O relatório Faces da Desigualdade [1] inicia informando que “o Brasil vivenciou uma inédita e sistemática queda da desigualdade no período recente, entre 2002 e 2015, mas continua a ocupar a posição de um dos países mais desiguais do mundo”. Qual é a razão disso?
Tereza Campello — Um dos objetivos principais do trabalho que desenvolvemos é continuar olhando essa situação, porque o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Se tirarmos um retrato do Brasil de hoje, veremos que ainda somos um país muito desigual. Mas se olharmos para o que aconteceu entre 2002 e 2015, ou seja, não olharmos só para o retrato, se fizermos uma comparação do que aconteceu nesses últimos 13 anos, verificaremos que houve uma mudança muito importante.
Por que é importante olhar o que vem mudando ao longo do tempo? É importante porque, se olharmos somente para o retrato atual, ele nos paralisa, pois o Brasil sempre foi e continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Por conta disso, a impressão que se tem é que não é possível mudar essa realidade, mas isso não é verdade. É possível mudar a realidade com investimentos públicos, com medidas políticas e é importante enxergarmos isso para que continuemos investindo e alterando o atual status quo.
Agora, não se mudam 500 anos de história e de desigualdade em 13 anos. É possível mudar se continuarmos investindo na redução da desigualdade no Brasil. O padrão de desigualdade é muito alto, e o que separa os mais pobres dos mais ricos é um percentual muito desigual, não só porque tem muita gente pobre, mas porque tem muita gente muito rica. Se todos fossem “mais ou menos”, o Brasil seria um país pobre, mas não seria tão desigual. E por que o Brasil é um país tão desigual? Porque tem muitas pessoas pobres, mas os ricos são muito ricos. Quando analisamos o perfil dos mais ricos no Brasil, vemos que eles se equiparam à riqueza de alguns ricos dos países desenvolvidos. Então, o que é dramático no país não é somente a pobreza, mas o padrão de riqueza, e é isso que chamamos de desigualdade.
O processo de acumulação no Brasil sempre foi muito perverso, ou seja, os ricos acumulavam muito e de forma muito radical, enquanto os pobres ganhavam muito pouco. Além disso, os ricos não pagavam impostos, mas os pobres, sim. Existe um processo, seja pelo lado do gasto público, seja pelo lado da arrecadação pública, de muita injustiça no Brasil.
IHU On-Line — Por que o trabalho se propõe a analisar as desigualdades entre os 5% e os 20% mais pobres em comparação com o restante da população a partir do período de 2002 e aqueles que correspondem a esse percentual hoje?
Tereza Campello — O trabalho olha os 5%, os 20% e o total da população, e os compara com o resto do país. Além disso, faz uma segunda análise do que aconteceu com os negros no país nesse período — e essa é uma das informações mais importantes que o trabalho traz. Por que o trabalho olha os 5% e os 20% e os compara com o total? Porque outros trabalhos, tão valorosos como esse que estamos fazendo, já comparavam o que acontecia com os muito ricos. Por exemplo, há uns três meses a Oxfam — uma ONG que trabalha com desigualdade no Brasil e no mundo — fez um trabalho muito interessante e importante mostrando as seis pessoas mais ricas do Brasil e comparando-as com os outros brasileiros.
O nosso trabalho, ao contrário, se propõe olhar a realidade dos pobres e, nesse sentido, quisemos agregar uma informação nova. Em geral as pesquisas tratam do 1% mais rico e dos 99% da população, como se os 99% fossem pobres do mesmo modo, e não são. A desigualdade no Brasil é tão perversa, que há uma diferença gigantesca entre a situação dos que são mais pobres, aqueles abaixo dos 20%, e os demais. Portanto, não basta vermos o que está acontecendo com os ricos e o restante da população; precisamos olhar a população como um todo, até porque quando olhamos a média da população, nos enganamos.
Para exemplificar, vou usar os dados sobre o percentual de brasileiros que têm acesso à energia elétrica: se olharmos o que acontecia com a população brasileira do ponto de vista de acesso à energia elétrica, chegaremos à conclusão de que todos no Brasil já têm acesso a esse bem — nesse sentido, não adianta comparar o 1% com o resto. Por exemplo, em 2002, 96,7% dos brasileiros tinham acesso à energia elétrica, e somente 3% dos brasileiros não tinham. Então, se considerarmos esse dado, temos a impressão de que todos têm acesso à energia elétrica, porém, quando olhamos os pobres, aqueles 20%, verificamos que eles não tinham energia elétrica. E 20% da população pobre no Brasil é muita gente.
Em 2002, existiam 75,9 milhões de pessoas negras com acesso à energia elétrica, contra 91 milhões de brancos, só que a população de pretos e pardos é maior do que a população de brancos. Esse número aumentou de 75,9 milhões para 109 milhões, ou seja, aproximadamente mais 30 milhões de pessoas negras passaram a ter energia elétrica. Por isso que quando se olhavam os dados gerais parecia que todo mundo tinha acesso à energia, porque estava sendo observada uma média. Portanto, é esse esforço que o trabalho tenta fazer: mostrar o que está acontecendo com a população a partir de vários olhares, principalmente esses de acesso à infraestrutura, como no caso da energia elétrica. A falta de energia elétrica significa o quê? Que a criança não estuda, que não é possível ter equipamentos elétricos em casa etc. E no campo isso é dramático, porque não é possível nem ter uma geladeira.
Assim a análise dos dados gerais, olhando para os 99% da população, nos davam a impressão de que alguns problemas já estavam resolvidos no Brasil, quando não estavam. Nós não estamos dizendo que esse é o único modo de olhar as desigualdades, mas esse era um olhar que faltava no Brasil, porque só tratamos as desigualdades olhando o 1% riquíssimo contra o resto da população, como se o restante da população fosse um todo igual.
IHU On-line — Qual é a relevância de separar em categorias distintas, de um lado, os pobres e, entre esses, os pobres que são negros, para tratar das desigualdades?
Tereza Campello — Em relação aos negros estamos olhando o conjunto da população, não só os mais pobres, para ver o que aconteceu com os pobres no Brasil. A partir disso, fizemos dois recortes: um entre os 5% mais pobres e outro entre os 20% mais pobres. Fizemos isso inspirados em uma orientação das Nações Unidas - ONU e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS. Um dos princípios que orientam os ODS, que chamamos de Agenda 2030, é que ninguém deve ser deixado para trás. Ou seja, não adianta ficarmos analisando a situação da média da população, porque a ONU diz que devemos olhar aquela parcela que está sempre sendo excluída — por isso escolhemos abordar a situação dos 5% e dos 20% mais pobres.
Além disso, olhamos o que está acontecendo com o conjunto da população de negros no Brasil, porque eles são os últimos a receber o conjunto de bens, serviços e direitos; são sempre deixados para trás. Assim, quando olhamos os números correspondentes aos negros, levamos um susto, porque existia uma parcela gigantesca da população negra que não tinha acesso a bens elementares, como água, esgoto e energia elétrica. E, mesmo sendo a maioria da população no Brasil, eles eram os que tinham menos acesso a esses bens.
A importância, então, consiste em ver o que está acontecendo não com a média do brasileiro, mas com os mais pobres, porque, do contrário, só ficaremos olhando para o 1% milionário e os outros. Esse tipo de análise não resolve e não ajuda a construir políticas para solucionar esses problemas. Por exemplo, por que a energia elétrica chegou aos mais pobres? Porque foi feita uma política pública específica para que ela chegasse até eles. Essa política chama-se Luz para Todos, uma política que custou muito aos cofres públicos, mas foi construída para chegar até a população pobre e o mundo rural, porque se dependesse de eles mesmos fazerem seus investimentos, eles continuariam sem energia elétrica. Esse é um bem que já está resolvido, do ponto de vista tecnológico, há muito tempo, porém uma parcela dos brasileiros continuava de fora.
IHU On-Line — O trabalho, nesse sentido, propõe uma reflexão sobre a desigualdade como um “fenômeno multidimensional e relacional”. O que significa analisar as desigualdades desse modo e em que aspectos essa forma de entender o que são as desigualdades se difere de outras abordagens?
Tereza Campello — A desigualdade de renda continua sendo a desigualdade central a ser observada, tanto que o último capítulo do nosso trabalho volta a falar de desigualdade de renda. A diferença é que nós não começamos por ela. Quisemos, entretanto, mostrar que existem vários outros aspectos que são faces da desigualdade e que geram mais desigualdade ainda. Um exemplo é a educação. Existia uma desigualdade altíssima de acesso à educação no Brasil — e continua existindo.
No trabalho decidimos olhar a desigualdade de renda, de acesso à educação, saneamento, água, esgoto, energia elétrica e a desigualdade de acesso a alguns bens. Saiu recentemente um trabalho muito interessante de um Instituto francês coordenado pelo economista Piketty, e esse estudo olha a desigualdade no país do ponto de vista da riqueza. É um trabalho bastante interessante que mostra que os mais ricos no Brasil — multimilionários — continuam acumulando riqueza e ficando cada vez mais ricos. Por que Piketty desenvolveu essa metodologia? Para mostrar que não podemos olhar somente as rendas, mas a riqueza e o acúmulo da riqueza. Eu concordo plenamente com ele, só que ele desenvolveu um método para isso, que é olhar o Imposto de Renda. É um método muito interessante porque mostra que no Brasil essa discussão de meritocracia não é verdadeira, ou seja, as pessoas não ficam ricas por seu mérito, por sua capacidade de trabalho. Ao contrário, ele evidencia que os ricos são filhos, netos e bisnetos de ricos. Ou seja, quem é rico no Brasil e no mundo continua sendo rico porque herda riquezas e vai acumulando capital. Isso acontece não por sua capacidade, até porque não são eles que administram o seu patrimônio, mas em função da forma como o capital é acumulado, valorizando quem é rico, filho ou neto de rico.
Portanto, ele quis mostrar exatamente isso no seu estudo, e não que não houve redução da riqueza no período do governo Lula. A grande imprensa usou o estudo para fazer essa discussão completamente equivocada e dizer que não houve redução da desigualdade nos governos Lula e Dilma. Mas o trabalho de Piketty deveria ter sido olhado, pela grande imprensa no Brasil, revelando exatamente isto: que é injusto o modo como é taxado o patrimônio no Brasil, isto é, deveríamos ter imposto sobre patrimônio, lucro e herança, mas isso praticamente não existe no Brasil. Essa é a riqueza do trabalho de Piketty, e isso foi desmerecido.
O trabalho de Piketty é ótimo para olhar o que aconteceu com os ricos, mas não é suficiente para olhar o que aconteceu com os pobres, porque existem outros aspectos que não a renda que medem as desigualdades. O dado de uma pessoa que não tinha acesso à água e passa a ter, por exemplo, não aparece no Imposto de Renda, mas isso é um ganho do ponto de vista da sua dignidade e da sua qualidade de vida e, inclusive, da sua chance de melhorar de vida. Ter acesso à energia elétrica e à cisterna não aparece nos dados do Imposto de Renda, mas é um patrimônio dos mais pobres. O debate do Piketty é bom para olhar o que aconteceu com os mais ricos, mas não é bom para ver o que aconteceu com os mais pobres.
A renda de todos os brasileiros, entre 2002 e 2015, cresceu, cresceu para todo mundo, porém cresceu mais para os mais pobres. Os 20% mais pobres tiveram um aumento da renda maior do que os 20% mais ricos, pois se pegarmos qualquer quintil, veremos que os mais pobres são os que tiveram maior aumento de renda. Por exemplo, esse primeiro quintil, que são os 20% mais pobres, aumentaram a sua renda em 84%, contra uma média de 38% do restante da população. (Ver gráfico abaixo)
(Fonte: Relatório Faces da desigualdade no Brasil)
IHU On-Line — Ao longo do relatório são mencionados vários números demonstrando como as desigualdades foram enfrentadas em diversas áreas, como educação, infraestrutura, acesso à água, saneamento, energia elétrica, habitação, saúde etc. Quais são as fontes desses dados? Pode nos dar um panorama geral sobre como as desigualdades se manifestavam nessas diferentes áreas antes de 2002 e qual é o cenário atual?
Tereza Campello — Todos os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad e do IBGE, logo, são dados públicos, dados aos quais qualquer pesquisador ou pessoa consegue ter acesso. A Pnad faz algumas perguntas aos entrevistados, como, por exemplo, quantas pessoas têm na casa, se o jovem está na escola e, caso esteja na escola, em que faixa de educação se encontra etc. Acabamos nos dedicando a olhar dados que são desafios para o Brasil. Por exemplo, um dos dados que considero entre os mais relevantes é o de acesso à educação, porque é muito impressionante o que aconteceu no Brasil no período.
No país, as crianças de 6 a 14 anos já estavam na escola, às vezes com defasagem e isso melhorou bastante. Os jovens, a partir dos 15 anos, abandonavam a escola e continuam abandonando, porém o padrão mudou muito. Os mais pobres eram os que estavam mais fora da escola, e quando estavam na escola, estavam na idade errada. Às vezes, tinha-se um jovem de 15, 16 anos no primeiro ou no segundo ano, ou seja, em série não regular. Entre os 5% mais pobres, somente 10% dos jovens mais pobres, com idade entre 15 e 17 anos, estavam na escola na série certa. Prestemos atenção ao dado: somente 10% dos mais pobres estavam na escola na série certa. Esse valor passou para aproximadamente 40%.
Levamos 500 anos da nossa história para conseguir que 10% dos mais pobres estivessem com 15 anos de idade no ensino médio. Em 13 anos pulamos para 40%. Isso mostra o quê? Que é possível mudar. É pouco ainda, é muito pouco, porque somente 40% dos jovens mais pobres estão com 15 anos ou mais no ensino médio. Esse dado é muito relevante, e mostra exatamente o que eu estava dizendo: é possível, com políticas públicas, alterar esse quadro, por isso é preciso investir em educação.
Por que os jovens passaram a entrar no ensino médio na idade certa? Primeiro, porque saíram do trabalho infantil, em virtude de os pais e mães começarem a ganhar mais, ou seja, isso também é uma consequência da melhora de renda dessas famílias, que deixaram seus filhos permanecer na escola. E, de certa forma, o Bolsa Família foi um impulsionador disso, pois se a criança está na escola, a família recebe o auxílio, mas se a criança sai da escola, a família perde essa renda.
O aumento do ingresso de jovens nas universidades também é enorme (Vide gráfico abaixo). Aumentou em 142% o número de jovens nas universidades do Nordeste, e 47% no Sudeste, embora ainda continue tendo muito mais jovens nas universidades do Sudeste e do Sul. No Sul, por exemplo, aumentou 50% o número de jovens nas universidades entre 2002 e 2015. Esse tipo de distribuição também reflete na desigualdade regional, por exemplo.
(Fonte: Relatório Faces da desigualdade no Brasil)
Outro dado interessante, na área de educação, é ver o que aconteceu com os negros não só na universidade, mas o que aconteceu com os pais de família negros. Entre os negros havia somente 5,7 milhões de chefes de família que tinham ensino fundamental completo. O dado é relevante, pois o pai ou a mãe que são chefes de família e que têm ensino fundamental completo geram um impacto enorme na renda familiar, porque eles conseguem empregos melhores e isso gera um impacto gigantesco na mortalidade infantil também. Então para uma criança deixar de morrer, é mais importante a mãe dela ter ensino fundamental do que ter acesso a médico — esse dado já é comentado na literatura mundial de saúde.
Esse dado de 5,7 milhões de chefes de família negros passou para 17 milhões entre 2002 e 2015, ou seja, são quase 12 milhões de chefes de família negros a mais com acesso ao ensino fundamental; essa é uma mudança que ninguém viu. Então, se ficarmos olhando somente o que aconteceu com os multimilionários, não veremos essa mudança, que não é uma mudança superficial, é uma mudança estrutural. Os chefes de família negros não tinham acesso à educação e passaram a ter e se formaram no ensino fundamental. Temos que continuar fazendo isso porque queremos que eles aumentem a escolaridade, passem para o ensino médio e passem para as universidades.
IHU On-Line — A senhora citou vários dados quantitativos, mas como é possível avaliá-los do ponto de vista qualitativo?
Tereza Campello — O fato de ter triplicado de 5 milhões para 17 milhões o número de chefes de família negros com mais acesso à educação tem que ter algum sentido. Você pode perguntar que educação é essa. Pior do que a que tinha em 2002, não é. Pelo menos, se tem uma educação tão ruim quanto antes, mas isso não é verdade, porque os dados que temos de qualidade de ensino vêm melhorando. Este é o grande desafio que a educação no Brasil tem: avançar na qualidade, não só na quantidade. A grande verdade é que quem estava fora da educação no Brasil, seja ela de qualidade ou não, eram os pobres e os negros, então, ter negros e pobres na educação é um ganho importante.
Um jovem na escola ou fora da escola tem um significado gigantesco. Por pior que seja essa escola, significa ter acesso a um padrão de educação, estar fora da rua, ter acesso ao professor e ao conhecimento, e estar longe da violência; tudo isso tem que ser analisado. Um chefe de família com ensino fundamental significa que ele pode concorrer a alguma vaga a que antes ele não poderia. Isso é suficiente? Não, mas antes eles estavam fora. Era suficiente ter três vezes menos negros na escola do que temos? Isso é o que não é suficiente. O que temos que olhar é a possibilidade de avançar. Continuam existindo negros fora da escola? Sim, a quantidade de negros na escola hoje é praticamente a mesma de brancos. Provavelmente eles estão em uma escola pior que a dos brancos, mas o que preferimos? Voltar a 2002, que era uma calamidade e os negros estavam fora da escola? Essa é a grande questão e a grande discussão que o Brasil tem que fazer.
Em 2002 havia 12 milhões de brancos na escola contra 5 milhões de negros chefes de família, isso é desigualdade. Termos, hoje, praticamente o mesmo percentual, significa o quê? Temos que prestar a atenção no que está acontecendo no país. A partir dessas mudanças, as pessoas vão dizer que querem escola de qualidade. Foi por isso que as pessoas foram para a rua em 2013, dizendo que queriam uma escola de qualidade.
Entretanto, o que está acontecendo hoje no Brasil? É o oposto: estão reduzindo o dinheiro para a educação. Os jovens que estavam conseguindo acessar a universidade não terão mais essa facilidade; os jovens que tinham acesso ao ProUni e ao Fies estão perdendo essa oportunidade porque o dinheiro está sendo cortado. É isto que temos que dizer: o corte de recursos na educação é uma tragédia neste país, talvez a maior de todas as tragédias, porque é o que corta nosso futuro. Estávamos melhorando, ainda estava longe de ser suficiente, só que agora vamos retroceder e voltar à década de 1990. É isso o que está acontecendo com a saúde, a educação e com a assistência social, lamentavelmente. Espero que esse estudo possa nos ajudar a enxergar essa situação, inclusive mobilizar nossos jovens e professores para que possamos reverter essa situação dramática que o Brasil está vivendo.
IHU On-Line — Para além da educação, se a senhora pudesse fazer um balanço das políticas públicas implementadas no país nos últimos anos para enfrentar as desigualdades, quais diria que foram as políticas mais efetivas no enfrentamento das desigualdades e quais não tiveram o resultado esperado?
Tereza Campello — Houve um aumento muito importante de acesso à água no Brasil. Quase 90% da população brasileira tinha acesso à água — não à água tratada —, por meio de cisternas ou poços ou água de rio. Porém, olhando para os mais pobres, menos de 50% deles tinham acesso à água, logo, a desigualdade era gigantesca. Esse percentual passou de menos de 50% para 76%, portanto, foi um aumento enorme em 13 anos. Só para termos uma ideia, são quase 40 milhões de negros que não tinham acesso à água de qualidade no Brasil e que passaram a ter.
Esse indicador de água não é fácil de modificar, porque diz respeito à infraestrutura, que depende de investimento. O acesso à água continua sendo um desafio, porque ¼ dos brasileiros mais pobres ainda não têm acesso a esse bem. No caso do saneamento, os dados também revelam um desafio gigantesco para o Brasil, que tem de garantir saneamento básico à população em geral, inclusive à população de baixa renda. Somente 80% dos brasileiros têm acesso ao escoamento sanitário, que não é o acesso ao esgoto tratado; ou seja, 20% dos brasileiros ainda não têm acesso ao escoamento sanitário, segundo o IBGE. Então a desigualdade continua grande, mas ela era muito maior, reduziu inclusive entre os negros. Hoje muito mais negros têm acesso ao escoamento sanitário do que entre os brancos, não porque a desigualdade “virou”, mas porque temos mais negros do que brancos no Brasil, logo, é natural que essa seja a população mais bem assistida.
IHU On-Line — Muitos especialistas na temática das desigualdades fazem uma crítica pontual ao modelo de política pública que buscou reduzir as desigualdades no país nos governos Lula e Dilma, afirmando que embora ele tenha permitido o aumento do salário mínimo, o ingresso de mais estudantes às universidades, aumento do poder de compra das famílias, aumento do emprego formal, ele não mexeu em questões estruturais, como a reforma tributária, por exemplo. Como a senhora vê esse tipo de crítica?
Tereza Campello — Eu não diria que isso é uma crítica; é uma constatação. O Brasil não fez a reforma tributária e isso é uma calamidade. Uma das temáticas que mais discutíamos no período pós-constituinte era exatamente que o Brasil era muito injusto do ponto de vista da carga tributária, que recaía sobre os mais pobres. Nisso o Brasil tem que mudar. Se não conseguirmos tributar desde capital, fortunas, estoque de capital, se a tributação não recair sobre as grandes fortunas e heranças, não teremos recursos suficientes no Brasil para continuar redistribuindo renda e para melhorar e garantir os investimentos públicos; isso é líquido e certo.
Por que digo que essa não é uma crítica necessariamente ao governo Lula ou Dilma? Isso é uma crítica à política brasileira. Para termos uma ideia do que é a aberração da estrutura tributária brasileira, em 2014 a presidente Dilma enviou um projeto de lei, que não era nada revolucionário, taxando iates de luxo — sabemos que carro popular no Brasil é taxado, mas iate de luxo é isento, assim como helicóptero de luxo. Estamos falando de um exemplo de riqueza supérflua, mas essa taxação foi rejeitada.
O parlamento e os ricos no Brasil não aceitam pagar nada. Não é que não aceitam pagar sobre o lucro, a produção, a folha de salário, eles não aceitam pagar nada. Portanto, essa discussão de que a tributação no Brasil é alta, é uma aberração. Ela é alta porque é alta sobre os pobres, mas os ricos não pagam nada, é completamente desproporcional. Esse Congresso Nacional é uma aberração, a única coisa que eles aceitam fazer é prejudicar a população pobre; ao invés de taxar os ricos, eles estão fazendo uma reforma tributária para acabar com a aposentadoria dos mais pobres. Quando se discute equilíbrio fiscal no Brasil, equilíbrio fiscal nunca é para equilibrar os ricos que não pagam nada no país, que não têm taxação nenhuma. Lamento muito que não tenhamos conseguido passar as reformas tributárias, nem aquelas tímidas que foram enviadas.
IHU On-Line — Outra crítica feita ao modo como as políticas sociais foram desenvolvidas nos últimos anos é que “no Brasil se usa a política social como colateral para dar acesso ao sistema financeiro, de forma a potencializar um consumo represado por salários relativamente baixos e uma estrutura de preços relativos caros, com produtos medíocres, produtividade em queda e juros em alta”. Um exemplo recorrentemente citado é o do Minha Casa Minha Vida, em que empreiteiras ganharam muito dinheiro, enquanto muitos conjuntos habitacionais foram construídos em bairros sem infraestrutura e com produtos de baixa qualidade. Como a senhora vê esse tipo de crítica?
Tereza Campello — Não podemos pegar situações específicas para generalizar. Geralmente quem gosta de ficar falando isso é quem é contra o Minha Casa Minha Vida. As prestações do programa não são altas, e a faixa 1 é completamente subsidiada, chega a ter um subsídio de 90%, e as prestações são baixíssimas. O que as pessoas criticam é o fato de o poder público usar dinheiro público para financiar habitação dos pobres. Quem é contra pobre acha que pobre tem que ser “jogado no mar”. Agora, usar dinheiro público para financiar rico, perdoar dívida e aceitar sonegação, pode. Recentemente foi publicado um relatório informando que quase 7% do Produto Interno Bruto - PIB da América Latina é sonegado.
Vou explicar como funcionou o modelo do Minha Casa Minha Vida: o governo federal é quem organizava e pagava o financiamento, e as prefeituras é que selecionavam o público, indicavam o local onde as residências seriam construídas e, em geral, davam o terreno. Esse modelo, que foi um dos primeiros do programa, acabou — em alguns locais, não em todos — gerando este tipo de problema: os conjuntos habitacionais eram construídos em locais distantes. Por isso o Programa estava passando por modificações, e estávamos retirando do arbítrio das prefeituras a escolha da localização. Também descobrimos que estava havendo muitas distorções no programa, porque alguns prefeitos selecionavam de forma equivocada o público a ser assistido. Por esses motivos, estávamos montando um cadastro de forma diferente e por isso que os novos conjuntos habitacionais, feitos a partir de 2011, passaram a exigir que dentro do conjunto habitacional tivesse infraestrutura, como escola, ou se estabelecesse um limite entre a distância dos conjuntos habitacionais e os postos de saúde e hospitais.
O importante numa política pública é que, ao se identificar um problema, seja possível intervir e mudar, e não “não fazer”, porque esse “não fazer” faz com que a população pobre nunca receba nada. Existem conjuntos habitacionais hoje, no Brasil, que são modelos. Então, não é verdade que os conjuntos habitacionais são de baixa qualidade.
Além disso, todo mundo ganhou com o Minha Casa Minha Vida, porque essa foi uma política, inclusive, que gerou muito emprego no Brasil. Essa é uma política que chamamos de anticíclica, porque no período em que o Brasil começou a ser pego pela crise, foram gerados mais de 500 mil empregos para a construção desses conjuntos habitacionais, e só na faixa 1, mais de um milhão e 800 mil famílias receberam habitação.
Nada melhor do que investir em uma política que, além de ser um bem para a população de baixa renda, gera emprego. Essa é uma medida fundamental, principalmente em momentos de crise. Isso foi dito por vários economistas, entre eles, Michal Kalecki e Keynes. Eles mostraram que em momentos de crise o Estado tem que investir, mas isso é justamente o contrário do que está acontecendo agora. Se o Estado retrai seus investimentos, qual é a consequência? Mais desemprego, menos receita e gera-se um círculo vicioso, onde menos investimento gera menos investimento, que gera menos emprego, que gera menos consumo, que gera menos dinâmica na economia.
IHU On-Line – Hoje se especula a possibilidade de o Brasil retornar ao Mapa da Fome da ONU. Em relação às desigualdades, que tipo de retrocessos podem ser esperados se o Brasil reduzir o investimento no enfrentamento desse problema?
Tereza Campello — O que foi feito de forma estrutural será mantido, mas a população continua crescendo e, com isso, no médio prazo será possível retroceder em alguns índices. No caso da saúde e da educação, o sucateamento é gigantesco. Em relação à renda, alguns acham que o consumo é supérfluo, mas no caso do Brasil estávamos falando de uma parcela da população que não tinha acesso à geladeira, ou seja, 24 milhões de famílias, quase 100 milhões de brasileiros, que não tinham geladeira. Isto representa mais da metade dos mais pobres do país.
No cenário atual, com a diminuição da renda, com a terceirização, a contratação de mão de obra com salários mais baixos, com a perda de aposentadoria e do Bolsa Família, certamente haverá uma diminuição do consumo. E a consequência mais imediata é esta que você comentou: o retorno do Brasil ao Mapa da Fome, o que já está acontecendo. Lamentavelmente a situação tende a piorar.
Com mais renda, a população também tinha mais acesso a medicamentos, mas com os cortes, inclusive uma parte dos medicamentos que as pessoas encontravam na farmácia popular está sendo cortado. O ensino superior também terá um impacto imediato, porque muitos jovens não devem estar tendo condições de pagar as mensalidades. Então, a universidade deveria estar se somando a esse nosso questionamento geral acerca dos cortes de recursos para a educação.
IHU On-Line – Como vê o tema da desigualdade na agenda pública, tendo em vista as eleições do próximo ano? Algum partido ou possível candidato têm levantado essa questão de modo adequado, na sua avaliação?
Tereza Campello — O período eleitoral ainda não começou e os candidatos não podem divulgar programas, porque isso seria ilegal. Mas o PT tem feito um debate grande sobre o Brasil que queremos, e coloca em pauta a desigualdade. De outro lado, o PCdoB vem fazendo uma discussão sobre a questão da desigualdade, e essa também é uma tradição no PDT. Então, a questão da desigualdade continua em pauta e espero que haja um debate forte sobre o tema no ano que vem.
Nota:
[1] O relatório pode ser acessado aqui. (Nota da IHU On-Line).
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Para enfrentar as desigualdades sociais, não basta olhar para o retrato atual. Entrevista especial com Tereza Campello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU