"O sistema prisional é um mecanismo de gestão da miséria". O crescimento das facções e o movimento de adesão e resistência ao CV e ao PCC. Entrevista especial com Ítalo Siqueira

Foto: Conexão jornalismo

Por: Patricia Fachin | 22 Agosto 2019

Os massacres que aconteceram no Centro de Recuperação Regional de Altamira (PA) no mês passado, mas também os que ocorreram em Manaus (AM), Boa Vista (RR) e Alcaçuz (RN) nos últimos anos “são o ponto alto da escalada de conflitos dentro e fora das unidades prisionais entre grupos que desconsideram seus rivais”, diz o sociólogo Ítalo Barbosa Lima Siqueira à IHU On-Line. Segundo ele, tanto a aposta no encarceramento quanto as precárias condições do sistema carcerário brasileiro levaram “ao aumento dos espaços para recrutamento para as facções e ascendência de lideranças autoritárias”. Somente no estado do Amazonas, informa, em dezembro de 2009, 4.636 pessoas estavam presas. Quase dez anos depois, em julho de 2019, “foram contabilizadas pelo menos 11.806 pessoas nas unidades prisionais amazonenses. Ou seja, a aposta no encarceramento em massa ampliou a capacidade de recrutamento e encontro das facções prisionais nas regiões Norte e Nordeste”, reitera.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Siqueira menciona que várias hipóteses explicam o surgimento das facções nas regiões Norte e Nordeste do país. “Uma delas aponta que os principais grupos do Sudeste (Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital - PCC) passaram a ‘batizar’ pessoas nas prisões e bairros nos estados do Norte e Nordeste, divulgando suas próprias visões de mundo e maneiras de proceder na vida política das periferias e margens urbanas. Isso gerou reações de pessoas que já tinham mercados ilícitos consolidados, que se sentiram ameaçadas por grupos melhor estruturados. Temos que considerar também que o trabalho policial colocou atrás das grades um número muito maior de pessoas em posição de liderança, tornando o controle sobre a questão da segurança como algo fundamental e motivo de lutas mortais”, conta.

Aqueles que aderem às facções, explica, têm acesso a uma rede de “ajuda mútua e proteção”, além de bens e serviços dentro das prisões. Essas condições favoreceram o crescimento de facções nos bairros e presídios. Em contrapartida, afirma, o surgimento de novas facções locais é “uma resposta tanto para aderir aos grupos dominantes do Sudeste, quanto para resistir ao avanço deles nos estados do Norte e Nordeste”.

Siqueira reflete também sobre a situação das prisões brasileiras e comenta os principais resultados de sua pesquisa com agentes penitenciários, intitulada “Aqui ninguém fala, escuta ou vê. Relatos sobre o cotidiano profissional dos agentes de segurança penitenciária em Manaus”. Os agentes de socialização que atuam nos presídios, comenta, “são trabalhadores com baixa especialização e parcos salários, isto é, são moradores dos bairros onde as facções atuam diretamente, sendo isso usado como ameaça constante contra os funcionários”.

Ítalo Siqueira (Foto: Arquivo Pessoal)

Ítalo Barbosa Lima Siqueira é graduado em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará - UFC e do Ilhargas – Cidades, Políticas e Saberes na Amazônia, da UFAM, atualmente é doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que fatores explicam a rebelião que ocorreu no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, com 57 detentos mortos no mês passado?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Os eventos de Altamira, no Pará, como observado em outros lugares da região Norte e Nordeste, apresentam novas evidências sobre as regularidades e padrões dos mais recentes sinistros no Brasil, eventos trágicos que se deslocam das reivindicações históricas da população carcerária por melhores condições de custódia nos estabelecimentos penais. Como visto em Manaus, Boa Vista, Alcaçuz e em Altamira, os “massacres” são o ponto alto da escalada de conflitos dentro e fora das unidades prisionais entre grupos que desconsideram seus rivais como vidas dignas, sendo conspirações transformadas em ações promovidas com a intenção principal de eliminação completa de inimigos. A busca por hegemonia da violência, do poder de gestão e de mando, certamente são apenas os motivos mais aparentes. Interesses de mercados e vinganças também estão misturados nas motivações.

Facções prisionais

Durante a expansão do sistema prisional e, consequentemente, da piora das condições de encarceramento, as chamadas facções prisionais aproveitaram as estruturas dos estabelecimentos de privação para colocar diante da população carcerária, do Estado e da sociedade em geral, suas próprias agendas e alcançam grande capacidade de precipitar mobilizações em torno de seus ideais, coletivos ou não. Seja por relações de ajuda mútua ou autoritarismo, as coletividades humanas possuem a capacidade de estabelecer mínimas condições de organização ainda que em condições de intensa privação e desorganização. As prisões brasileiras parecem demonstrar isso.

Primeiramente, os estudos sociológicos apontam o fenômeno das prisões como indissociável dos destinos da sociedade em geral, isto é, do mundo e das pessoas a sua volta. Como demonstrado, cada vez mais as prisões possuem grande capacidade de influenciar e ser influenciadas pelos centros urbanos, aumentadas em sua capacidade de disparar eventos em cadeia. Se para o público em geral a primeira reação pode ser de surpresa, quando tomamos conhecimento sobre a situação de conflitos anteriores, entramos numa mesma narrativa: os massacres sempre parecem previamente anunciados, denunciados e esperados. É uma situação que se repete ao longo da história da violência nas prisões.

O caso de Altamira não foge à regra, pois o Centro de Recuperação Regional de Altamira apresentava uma situação de conflagração anterior, como em um evento sinistro que ocorreu em 2018, quando sete presos foram mortos depois de uma tentativa de fuga frustrada. Encontramos essa disputa pelo poder de mando nas prisões, garantindo a eliminação física e irreversível do inimigo, ao mesmo tempo que se confronta o estado, e busca-se o enfraquecimento geral dos grupos inimigos, dentro e fora dos muros prisionais.

O caso de Altamira pode ser considerado ainda mais emblemático, pois aconteceu em uma cidade no Interior, distante cerca de 819 km da capital do Estado do Pará, Belém. Além da conhecida situação de insegurança, existem fortes indícios sobre a considerável incapacidade de prever e impedir esses eventos, que podem ocorrer longe dos grandes centros metropolitanos e até mesmo em unidades prisionais de segurança máxima. Encravada às margens do rio Xingu, na selva Amazônica, o exemplo da cidade não é diferente e nem trivial quando levamos em consideração o explosivo contexto social nos arredores do Centro de Recuperação Regional de Altamira.

Depois do início das obras bilionárias da Hidrelétrica de Belo Monte, ainda no ano de 2011, a região viu o rápido e considerável aumento de sua população, agravando os problemas fundiários, habitacionais, de emprego e renda, acesso à saúde e educação, respeito à dignidade da pessoa humana, mazelas crônicas enfrentadas secularmente pelo Brasil, piorados por uma crescente e letal violência. Tráfico de pessoas, remoções de populações, greves nos canteiros de obras, entre outros, foram alguns dos problemas registrados.

Com a desmobilização das obras de Belo Monte, o que se viu foi o agravamento da miséria de populações que já se encontravam empobrecidas. Se a exploração econômica teve efeitos perversos para essas populações, as prisões da região certamente apresentam a regra geral no país, funcionando como locais de aprofundamento das desigualdades e privações, além de terem aumentadas as chances de vitimização. Experimentando um rápido crescimento induzido pelas obras da Hidrelétrica, em 2015, segundo levantamento do Atlas da Violência (2017), a escalada de crescentes conflitos elevou as taxas de homicídio da cidade que figurou como a mais violenta do país. Os crimes de pistolagem aumentaram consideravelmente, tendo como enredo a disputa pelo tráfico de drogas. As facções que pretendem dominar o lado de dentro das unidades prisionais representam apenas alguns dos grupos em atuação nas bordas do legal e ilegal, interessados na exploração das possibilidades econômicas do vale-tudo.

Morte como mercadoria audiovisual

Por outro lado, se o público em geral é tomado pela surpresa e relativo espanto a cada novo evento do tipo, principalmente pela variedade de lugares onde esses sinistros estão ocorrendo na atualidade, rapidamente passa-se ao consumo e até mesmo lucro com a situação. O consumo de mortes horripilantes como uma mercadoria audiovisual não é uma novidade dos eventos mais recentes, pois o também emblemático massacre ocorrido na penitenciária Doutor José Mário Alves da Silva, conhecida como Urso Branco, ocorrido em 2002, em Rondônia, teve imagens compiladas em gravações caseiras de DVDs, vendidas nos comércios informais dos centros urbanos anos depois. Ocorrido em janeiro de 2017, o massacre de Manaus, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim - Compaj, contou com uma compilação dos “melhores momentos” em um DVD personalizado com menu e trilha sonora própria, rapidamente esgotado nos comércios informais da capital amazonense.

Além de documentá-los, é evidente que a imprensa oferece testemunho importante para tomarmos conhecimento sobre a magnitude dos acontecimentos. Ocorre que o número de pessoas com capacidade de registro e divulgação é muito maior. Rapidamente, vídeos e fotos feitos em smartphones passam a circular livremente na internet, compartilhados nos aplicativos de troca de mensagens, e posteriormente compondo em parte as notícias e manchetes que visam dar visibilidade em meio aos boatos e informações desencontradas. Salta aos olhos é a tentativa de naturalizar esses eventos como se fossem a rotina do sistema prisional, de coisas “que são assim mesmo”, ou que seria o destino para quem comete crimes. É a aceitação e incentivo à barbárie sob instituições inquisitórias criadas e mantidas pela própria sociedade. Ao passo que as primeiras informações são divulgadas, inicia-se o martírio das famílias, parentes e amigos dos custodiados nas unidades prisionais.

Na realidade, as prisões movimentam um grande número de mulheres, como um impacto indireto dos efeitos do encarceramento. As cenas são as mesmas em todos os lugares: mães, filhas e companheiras de várias idades começam sua caminhada apoiando o ente querido desde o momento da prisão. Pelo menos para quem pode contar com o decisivo apoio familiar no período de privação de liberdade. As mesmas mulheres que peregrinam nas portas das instituições carcerárias são as mesmas que choram, gritam e se unem para enfrentar a longa jornada por respostas, justiça e verdade para seus entes queridos.

A magnitude da violência que é empregada nos massacres dificulta o reconhecimento de corpos e os ritos funerários, outra marca que aumenta substancialmente o sofrimento das famílias. Por causa da falta de informações, do estigma e da própria condição de vida precária, precisamos tomar mais conhecimento e cuidados sobre essas pessoas que a priori nada têm a ver com os eventos, porém, têm suas vidas transformadas definitivamente depois deles. Precisamos reconhecer o status de vítimas tanto das pessoas que são exterminadas quanto das pessoas que são sobreviventes afetadas direta ou indiretamente por esses eventos, inclusive funcionários e familiares.

IHU On-Line - Como o encarceramento em massa potencializa rebeliões como essa?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Em agosto de 2019, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, o Brasil contabilizou 816.631 pessoas encarceradas em todo o país, sendo 774.201 homens e 42.430 mulheres — cifra que pode ser maior. Ainda que os números pareçam modestos nos estados do Norte e Nordeste [1] , a superlotação da maioria das unidades prisionais e os altos índices de presos provisórios estão distantes de uma realidade tranquila, sobretudo, com as novas referências trazidas pela emergência dos grupos faccionados. Com essa nova realidade, me parece que a categoria rebelião é imprecisa para explicar as transformações que estão ocorrendo nas prisões brasileiras, pois precisamos analisar a questão de modo multidimensional, abrangendo aspectos sociais, econômicos e político.

Primeiramente, precisamos considerar que o encarceramento em massa está ampliando a oferta de vagas em espaços que operam condições degradantes e, por isso, fomentam todo tipo de conflitos e violações, oferecendo terreno fértil para reações incisivas e desesperadas diante deste cenário. Celas superlotadas, torturas, infiltrações, fome, sede e toda sorte de adversidades são combinações impostas todos os dias nas carceragens brasileiras. São problemas antigos. Em nosso sistema de justiça, a criminalização tem como efeito a desrealização política, moral e de usufruto dos direitos, portanto, da capacidade de reconhecimento da condição humana e de capacidade reivindicatória. As rebeliões e motins visam romper com esse estado de coisas na tentativa de enfrentamento e escuta desse dia a dia de privações. O senso comum é perspicaz quando menciona que as prisões são como depósitos de humanos, porém estamos muito além disso. Tratando-se de pessoas criminalizadas em uma sociedade de constituição autoritária e, como demonstrado por José Luís Solazzi (2007), possui uma larga história de uso da violência e do castigo como mecanismo de sujeição racial e de classe das populações subalternizadas, sendo a situação das prisões um dos exemplos latentes.

Cultura punitiva

Seguindo essa linha, se faz necessário situar a compreensão sobre as prisões em reflexões sobre as especificidades próprias da constituição social do Brasil — profundamente marcado pela violência e pelo castigo desde seu período colonial. Carlos Henrique Serra (2013) apresenta evidências importantes no texto “Estado penal e encarceramento em massa no Brasil”, analisando a cultura punitiva no Brasil enquanto fenômeno de longa duração atravessado pelas relações de poder estruturadas em torno de sociabilidades “autoritária-repressiva”. Simbolicamente se constrói o “inimigo social”, ou seja, as pessoas puníveis e executáveis, como elementos apresentados nas hipóteses sobre o corte punitivo do Estado brasileiro. Imaginário animado nas práticas e nos discursos dos aparatos jurídico-político e policial, bem como fortemente influenciado pelas contingências do ativismo neoliberal.

A cultura punitiva se inscreve como uma prática autoritária de longa duração na história brasileira. Segundo Serra (2013, p. 42), o encarceramento em massa do Brasil aprofundou os sintomas de criminalização da pobreza, estruturando os sentidos sobre as permanências autoritárias e inquisitoriais. Sem dúvida, o fenômeno das prisões tem certo protagonismo na experiência social das cidades brasileiras. A penetração das empresas que exploram a indústria das prisões mobiliza parcelas consideráveis de trabalhadores de diferentes ramos e estabelece relações comerciais com diferentes setores da economia. As consequências da privatização estão inseridas nesses contextos. Sua defesa ou seu repúdio precisa considerar o tema da criminalização de pessoas pobres, da flexibilização trabalhista e do autoritarismo.

O encarceramento em massa estrutura a gestão da miséria de grandes populações. As rebeliões e motins são mobilizações que geralmente são gestadas de modo subterrâneo, podendo acompanhar uma escalada de conflitos e tensões em uma ou mais unidade prisional, sendo eventos críticos de contestação e tomada da ordem penitenciária, levando a perigos de consequências imprevistas. Podem começar com algum sinal ou gritos que levam a ações simultâneas de enfrentamento e tomada violenta do controle das unidades prisionais. Agentes penitenciários que trabalham próximos das celas dos pavilhões, eventualmente são tomados como reféns nos momentos iniciais da mobilização. O momento de liminaridade pode ser observado nos corpos sacrificados para purificar o espaço dos indesejáveis. Portanto, os massacres prisionais ganham destaque por aparentemente não apresentarem reivindicações sobre o funcionamento de privações das prisões.

Na contemporaneidade, o aumento do encarceramento, como demonstra Rafael Godoi (2017), emerge como mecanismo de governo e processamento de grandes populações, afetadas pelos seus feitos e desfeitos. Não é exagero supor que, diante das transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, de alguma maneira as prisões serviram como importantes espaços de recrutamento e formação de alianças, cada vez mais sofisticadas. As lutas pelo controle dos mercados ilícitos e a hegemonia nos bairros e prisões auxiliam na compreensão de apenas uma parte do fenômeno, pois as prisões não estão resumidas apenas à dimensão da violência. Porém, não é difícil concluir que o encarceramento em massa exerce uma pressão considerável que resultou na atual escalada de violência nas prisões. Por outro lado, as mobilizações e os movimentos da população carcerária não podem ser totalizados pelos coletivos criminais hegemônicos. É preciso considerar a demanda histórica por liberdade, condições dignas e pelo fim de torturas e extermínio, inclusive as possibilidades do abolicionismo penal, como possibilidades de serem também acontecimentos do cotidiano penitenciário.

IHU On-Line - Quais são hoje as principais causas de violência no interior dos presídios?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Existem diversas causas para a violência nas prisões. Como mencionado anteriormente, as grandes rebeliões mais recentes chamam atenção, inclusive internacional, pela quantidade de mortos e a extrema violência utilizada, além de aparentemente terem como única reivindicação a garantia da integridade física dos agressores. Ainda que precipitem fugas e acertos de contas, esses eventos giram em torno da eliminação física e moral dos inimigos. Ao longo do tempo, a população carcerária brasileira reage a condições impostas: uma diversidade de lutas contra a tortura física e psicológica, a fome, a sede, proliferação de doenças, isto é, por melhores condições de funcionamento da custódia e acesso à justiça.

De fato, quase que diariamente temos muitos exemplos de mortes e violência nas prisões, praticadas por presos ou por agentes estatais, porém são poucos que ganham algum destaque. É de se considerar que esses eventos têm como palcos unidades prisionais que enfrentam todo tipo de privações, precariedades e violações. Nesse sentido, a filósofa Judith Butler nos ensina que a violência pode ser seletiva. É o caso experimentado pela população carcerária. Tragicamente, a morte é glorificada não apenas pelas pessoas que cometem os massacres, pois quando olhamos a caixa de comentários de jornais na internet, muitos comentários, talvez a maioria, expressam satisfação pelas mortes, inclusive pedindo por mais, desde que não afete o “cidadão de bem”.

Assim, admitindo ou não a influência dos grupos organizados dentro das prisões, temos observado a maneira como os grupos faccionados disputam o poder de mando dentro das prisões, figurando como principal explicação para os massacres prisionais. Seria preciso questionar se o aparato de repressão acabaria por apostar na indução aos massacres, legitimado pela representação de uma população carcerária desumanizada e não passível de empatia, conforme o contexto criado pelos sistemas de segurança pública e de justiça criminal.

Ora, na mesma década em que a população carcerária, feminina e masculina, mobiliza-se para resistir às mudanças do sistema prisional, o impacto das mudanças foi sentido nas prisões e nos bairros, com o aumento da circulação de armas de fogo e a narrativa do “acerto de contas do tráfico”, como justificativa para o sacrifício de uma parcela da população brasileira. Se a cadeia não é para “ressocializar”, com certeza ela é um dispositivo bastante eficaz para prática de crimes, realidade para funcionários, presos, presas e familiares, fiéis conhecedores dessa realidade.

Além dos massacres poderem ocorrer longe das grandes cidades, dados da violência em pequenos centros urbanos ultrapassam os dados da violência das capitais, como é o caso do Nordeste. Nós estamos acompanhando as consequências sinistras de escolhas que foram feitas décadas atrás, cobrando um preço altíssimo. Existe uma enorme quantidade de relatórios e pesquisas que indicavam que a opção pela expansão desenfreada do encarceramento nos levaria ao estouro de um “barril de pólvora”. Na verdade, são fenômenos que ocorrem quase que rotineiramente em todo o país. Além do estigma da criminalização, os corpos humanos são desfigurados e despedaçados. Infelizmente, algumas famílias não puderam realizar o velório de seus mortos, pois o estado de decomposição era muito avançado. Toda a violência gerada por esses sinistros repercute em mais violência e violações de todo tipo, inclusive para pessoas que aparentemente nada teriam a ver com as prisões.

IHU On-Line - Qual é a situação do sistema penitenciário dos estados do Norte e Nordeste?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Apesar de importantes diferenças regionais, de modo geral, acompanha a situação de outras regiões: unidades prisionais inseguras, insalubres, perigosas e violentas. O caso dos massacres ocorridos a partir de 2017 pode ser considerado emblemático na visibilidade para o tamanho da crise nas políticas de segurança pública e administração penitenciária, que antes poderiam ser consideradas locais, pontuais, facetas colaterais de polícias insuficientes e um sistema prisional violento e “medieval”.

Esses eventos acabaram por justificar o retorno das polícias e da militarização dentro do sistema prisional, baseado numa linha política de intervencionismo militar. A reação do governo federal demonstra essa linha política inclusive com a mobilização das Forças Armadas para Garantia da Lei e da Ordem no sistema penitenciário brasileiro, conforme decreto de 17 de janeiro de 2017.

Com a Região Metropolitana de Manaus mergulhada em uma guerra mortal de facções, a Força Nacional de Segurança Pública, por exemplo, completou mais de dois anos de presença no sistema penitenciário do Amazonas, visível ao público por realizar forte esquema de segurança nos arredores das unidades prisionais localizadas no quilômetro oito da BR 174. Outro exemplo foi o emprego de uma Força de Intervenção na crise da Penitenciária de Alcaçuz, em 2017.

Repressão e colaboração com grupos prisionais

Os grupos prisionais demonstram grande capacidade de mobilização, dentro e fora das prisões, e a gestão da crise orbita entre a repressão e a relativa colaboração com os grupos prisionais. Isto porque, no cotidiano, diversas negociações são estabelecidas para criar uma rotina que chame pouca ou nenhuma atenção de mecanismos de controle e do próprio Poder Executivo. Prisões não podem criar problemas, sendo parte de um cálculo eleitoral importante, pois são facilmente relacionadas com a sensação de insegurança nos centros urbanos. O Ceará aparece como um caso emblemático, apesar de não ser palco de nenhum massacre prisional: seus centros urbanos foram fortemente impactados pela presença das facções e pela ação bélica das polícias, adotando completamente a linha política militarista e intervencionista para o enfrentamento das facções dentro de seu sistema prisional.

De certo, os estados administram as tensões em suas unidades prisionais tanto para atender aos novos padrões de segurança e demandas oriundas do sistema de segurança pública — que passa a prender mais —, quanto para lidar com a consolidação das facções. A questão é que essa aposta no encarceramento levou ao aumento dos espaços para recrutamento para as facções e ascendência de lideranças autoritárias, bem como deveria ser reconhecido que a inauguração de novas unidades prisionais pode significar o aumento e não a diminuição dessas tensões.

O Amazonas tem um exemplo sobre isso: a inauguração, em setembro de 2017, do Centro de Detenção Provisória 2 - CDP-2, que poucos meses depois foi transformado em palco de fugas em massas. O sistema penitenciário amazonense, como em outros estados da federação, precisou compartilhar a gestão das prisões com os coletivos criminais dominantes, em meio a uma taxa de ocupação prisional de 220%, bem acima da média nacional. Em comparação, em dezembro de 2009, 4.636 pessoas estavam privadas de liberdade no Amazonas. Quase dez anos depois, em julho de 2019, foram contabilizadas pelo menos 11.806 pessoas nas unidades prisionais amazonenses. Ou seja, a aposta no encarceramento em massa ampliou a capacidade de recrutamento e encontro das facções prisionais nas regiões Norte e Nordeste.

Assim, as populações do Norte e Nordeste tornaram-se espectadoras e protagonistas de cidades que são palcos de chacinas e disputas mortais pelos mercados ilícitos, e o caráter seletivo dos sistemas de segurança pública e de justiça criminal fica também em evidência. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, em junho de 2017 [2] , pelo menos 63,6% da população carcerária era formada por pessoas negras e pardas, com taxas bastante elevadas para estados do Norte e Nordeste. Isso é uma marca duradoura de uma justiça inquisitorial e racista. Por outro lado, a demanda histórica por condições dignas e pelo fim das torturas e do extermínio retornam aos debates com grande força.

No Estado do Ceará, por exemplo, em 2019, a tortura volta a ser um tema discutido por causa de sua opção política de utilizá-la como técnica de governo e gestão das prisões cearenses. O sistema é expansionista e faz lobby pela política de encarceramento em massa, pois ganha por cada pessoa presa no sistema. Ademais, a precarização também afeta profundamente funcionários e funcionárias, obrigados a encararem privações semelhantes às da população carcerária.

IHU On-Line - Quais são as principais conclusões da sua dissertação de mestrado intitulada “Aqui ninguém fala, escuta ou vê. Relatos sobre o cotidiano profissional dos agentes de segurança penitenciária em Manaus”. O que os relatos dos agentes penitenciários entrevistados revelam sobre o sistema prisional em Manaus?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – A pesquisa foi realizada entre 2013 e 2015, portanto, o contexto era bastante diferente, anterior aos massacres prisionais e à presença da Força Nacional de Segurança Pública, com uma boa abertura para realização de estudos dentro do sistema prisional amazonense, apesar da presença incontornável dos “comandos” e do aumento da influência dos “xerifes”, transformados em representação do poder das facções prisionais. No período, realizei pesquisa de campo nas unidades prisionais da Região Metropolitana de Manaus, interessado em compreender como era trabalhar na função de agente de segurança penitenciária, considerando que a expansão do sistema prisional teve impactos importantes no cotidiano das prisões. Observei em campo uma categoria profissional dividida entre agentes penitenciários (concursados e estatutários) e agentes de socialização (terceirizados). Os primeiros compõem um efetivo envelhecido e bastante reduzido, sem concurso público para a função desde 1996. A segunda categoria é recrutada para suprir essa ausência, sendo a mais numerosa em atividade.

Terceirização dos serviços penitenciários

Por outro lado, a terceirização dos serviços penitenciários, chamada de cogestão, iniciada na década de 2000, como uma resposta para o cotidiano marcado pela violência, mortes e denúncias de corrupção e torturas praticadas por funcionários, descreve a falência daquele momento. A ação violenta de grupos organizados com poder de mando dentro das prisões não é nenhuma novidade para agentes penitenciários mais antigos. O problema é que a linha política adotada fragilizou consideravelmente as condições de trabalho dos agentes de segurança penitenciária, promovendo a divisão na categoria, pois, apesar de não serem agentes penitenciários, os agentes de socialização herdam efetivamente suas funções. Além de prever uma eficiência mística para a iniciativa privada, o principal discurso para a terceirização esteve concentrado no discurso sobre as facilidades para a demissão dos funcionários. A estabilidade do funcionalismo público era considerada um empecilho para a administração penitenciária. De fato, isso significou uma considerável discrepância salarial, dificuldades de organização sindical e poucas garantias trabalhistas. Dessa maneira, a terceirização além de flexibilizar as relações trabalhistas, fragilizou ainda mais a função de agente de segurança penitenciária, com poucas garantias para o exercício do trabalho. Ou seja, os agentes de segurança penitenciária, historicamente acusados de corrupção e violência, testemunharam a terceirização do sistema prisional do Amazonas. Na prática houve a flexibilização das relações trabalhistas e a precarização do serviço de segurança penitenciária, e eles foram acusados das mazelas das prisões; serviram como justificativa ideológica para a entrada da iniciativa privada nas prisões.

Em quarenta entrevistas, surgiram diversos testemunhos sobre as mais diferentes estratégias para sobreviver ao cotidiano de trabalho. Ouvi muitas queixas sobre a sensação de abandono por parte da empresa empregadora e da administração penitenciária, bem como da sensação de falta de reconhecimento da sociedade em geral sobre o ofício de segurança penitenciária. Segundo os agentes, as contingências da profissão criaram uma série de negociações possíveis em lugares de desconfiança e tênues transposições de linhas morais, sendo que a desconfiança e um estado de atenção permanente foram as recomendações para prevenir qualquer vacilo no cotidiano de inesperadas situações perigosas e violentas. As organizações sindicais e comunitárias dos agentes de segurança penitenciária, como o Sindicato dos Servidores Penitenciários do Estado do Amazonas - Sinspeam, denunciam sistematicamente o adoecimento da categoria e tecem críticas sobre as políticas de segurança pública que privilegiam o encarceramento, pois coloca grande pressão nas inseguras unidades prisionais.

Dessa maneira, podemos encontrar alguns fatores que impactaram fortemente o trabalho dos agentes de segurança penitenciária no Amazonas. A terceirização dos serviços penitenciários de modo algum significou melhorias consideráveis para resolver a questão da violência estrutural nas prisões, tendo, por vezes, efeito mobilizador da população carcerária contra as precárias condições de funcionamento e recorrente supressão de direitos. Isto é, segundo os próprios agentes de socialização no início da terceirização, quando ainda eram chamados de agentes de disciplina, teriam tido “carta branca” para promover castigos físicos contra presos, mantendo a prática de tortura nas prisões amazonenses. O uso de castigos físicos e as péssimas condições de encarceramento levaram a constantes rebeliões e motins, que reivindicavam melhores condições e acabaram por fortalecer lideranças dentro das prisões.

O ponto de inflexão foi o momento em que os xerifes das prisões, conhecidos pela violência e poder autoritário, aderem ou fundam os comandos prisionais, faccionando uma parte da população carcerária e reagindo ameaçadoramente contra agentes de segurança penitenciária, alterando significativamente a correlação de forças dentro das prisões. Durante a pesquisa de campo, conheci alguns agentes que foram tomados como reféns em rebeliões sangrentas e sofreram grave violência física. Suavam frio ao falar sobre esses eventos e relataram que não tinham apoio e amparo para retomar a vida, ficando apenas impedidos de trabalhar nos pavilhões. Às vítimas, nem mesmo o apoio psicológico era garantido. O fato é que os agentes de socialização são trabalhadores com baixa especialização e parcos salários, isto é, são moradores dos bairros onde as facções atuam diretamente, sendo isso usado como ameaça constante contra os funcionários. Diante disso, diversos relatos dão conta de que os agentes são submetidos a ameaças dos presos e muitos optam por fazer apenas o essencial para evitar choques, privados de autonomia e segurança.

Por fim, eventualmente acusados de serem protagonistas de torturas, os agentes de segurança penitenciária relatam que, nos últimos anos, o surgimento de “comandos” nas prisões resultou em novas relações de força, mobilizando paralisações e manifestações públicas de descontentamento. No ano de 2017, a sequência de eventos que culminou no massacre prisional do Compaj, suscitou diversas problemáticas sobre a atuação de empresas privadas na operação do Sistema Penitenciário Estadual do Estado do Amazonas. Ademais, nos momentos de aumento das tensões da crise estrutural do sistema prisional, poderíamos questionar a eficiência da operação privada na rotina penitenciária, bem como os crescentes custos e ganhos privados feitos com recursos públicos, porém, o que se observa é a privatização como uma forma de se eximir de responsabilidades.

IHU On-Line - Como tem se dado a manutenção do crime organizado de dentro dos presídios brasileiros, especialmente no Nordeste?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – A participação de grupos organizados na gestão penitenciária não é nenhuma novidade. Num passado recente era possível observar a atuação de gangues prisionais. Longe de gerar contenção, a dura realidade das prisões induz ao movimento, à organização mínima. Em outra medida, se estamos considerando que a sociedade brasileira passou por transformações importantes, essas transformações também chegaram nas prisões. Como sistematicamente descrito por Camila Dias (2017), o fenômeno prisional apresenta uma complexidade importante por representar um projeto baseado na gestão da crise inerente das prisões.

O uso de tecnologias também é cada vez mais disseminado, mesmo que a gente possa encontrar exemplos de uso de telefones móveis há mais de 20 anos nas prisões. É evidente que a internet móvel causou um impacto importante para a comunicação com o mundo extramuros. Tanto que os governos travam verdadeiras batalhas na tentativa de impedir o uso de celulares dentro das unidades prisionais, itens bastante caros e valorizados. Certamente, a influência de bandos organizados no entorno das coletividades criminais aumentou com a piora das condições de vida dentro dos cárceres, apresentando maneiras mais organizadas para a continuidade de trajetórias na prática de crimes. O caso das crises penitenciárias no Ceará, por exemplo, como os chamados “ataques” promovidos contra o Estado, seriam movimentos iniciados a partir de convocatórias feitas dentro das prisões. As prisões também estabelecem a solidariedade entre as pessoas que são criminalizadas, e o sofrimento é assumido como um dever moral de lutar “contra as opressões” do sistema prisional. É bastante comum ouvirmos sobre “ordens” vindas do sistema penitenciário, porém, isso também não é novo.

IHU On-Line - Quais são as facções que hoje lideram os presídios dos estados do Norte e Nordeste? Qual é o objetivo dessas facções em exercer a liderança dentro do sistema prisional?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Atualmente foram contabilizados mais de 83 grupos do tipo em atividade no Brasil. Além da presença do Comando Vermelho - CV e do Primeiro Comando da Capital - PCC, temos uma variedade bastante grande de facções locais em atividade, algumas com presença em mais de um estado, como é o caso da Família do Norte, entre outras. O exercício da liderança garante a segurança, a capacidade de iniciar e impedir eventos, além de representar os interesses desses grupos nas negociações feitas com a administração penitenciária. Também é uma forma de garantir que no caso de prisão na rua, os membros identificados com as facções terão sua segurança garantida nas unidades prisionais. Por isso, dentre outros motivos, é tão importante exercer o domínio das prisões.

IHU On-Line - Quais são as causas que ajudam a explicar o surgimento de novas facções nos estados do Norte e Nordeste?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Existem diversas hipóteses para a emergência desses novos grupos. Uma delas aponta que os principais grupos do Sudeste (CV e PCC) passaram a “batizar” pessoas nas prisões e bairros nos estados do Norte e Nordeste, divulgando suas próprias visões de mundo e maneiras de proceder na vida política das periferias e margens urbanas. Isso gerou reações de pessoas que já tinham mercados ilícitos consolidados, que se sentiram ameaçadas por grupos melhor estruturados. Temos que considerar também que o trabalho policial colocou atrás das grades um número muito maior de pessoas em posição de liderança, tornando o controle sobre a questão da segurança como algo fundamental e motivo de lutas mortais. Vestir a camisa de uma facção significa também aderir a uma rede de ajuda mútua e de proteção, bens bastante valiosos dentro de penitenciárias marcadas pela insegurança e pelas privações.

Dessa maneira, aproveitando as melhores condições de comunicação e mobilidade, os grupos dominantes aumentaram sua presença nas prisões e bairros de todas as regiões do país, sendo que as novas facções foram uma resposta tanto para aderir aos grupos dominantes do Sudeste, quanto para resistir ao avanço deles nos estados do Norte e Nordeste. De modo geral, esses novos grupos estabelecem alianças entre diversos coletivos criminais que se identificam com as maneiras de proceder de cada “comando” do crime, unindo forças para permanecerem em atividade e com alguma influência sobre os diversos fluxos dos mercados ilícitos. Sendo assim, mais uma vez, não seria exagerado argumentar que o aprisionamento foi importante para o espraiamento das visões de mundo das facções, cada uma afirmando seus signos, códigos e maneiras de fazer nas periferias e prisões brasileiras.

IHU On-Line - Como surgiu a facção chamada Comando Classe A - CCA e por quais razões ela rivaliza com o Comando Vermelho? Quais são as relações da CCA com o Primeiro Comando da Capital - PCC? Além disso, segundo notícias da imprensa, a rebelião no Pará foi causada por facções rivais. Quais são hoje as principais facções que atuam dentro e fora dos presídios no Pará, como elas atuam e o que disputam?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – As informações sobre os grupos atuantes no Pará, como o caso do Comando Classe A - CCA, ainda são bastante iniciais, em comparação com o CV e o PCC. Segundo descrevem os pesquisadores Aiala Colares de Oliveira Couto e Roberto Magno Reis Netto, ambos de universidades do Pará, o CCA foi fundado em Altamira, aproveitando-se das possibilidades econômicas do tráfico de drogas realizado por meio dos rios e da Transamazônica. Segundo descreve Roberto Netto, em algum momento o CCA foi aliado do PCC, e o massacre prisional é uma medida para frear o avanço do CV na localidade. Existem diversos outros grupos menores, porém, ainda destaca-se a presença da Família do Norte, inimiga mortal do PCC e do CV, revelando um cenário bastante delicado. De certo, as primeiras informações dão conta de uma narrativa bastante conhecida em outros estados do Norte e Nordeste: uma população jovem que é empurrada para dentro das rotas lucrativas do crime, ainda que o lucro seja bastante restrito, pois a maioria simplesmente não goza deles.

Embate entre facções

O embate entre facções rivais é uma das expressões das mudanças na gestão do sistema prisional e emergência de novos agentes sociais que lutam pelo poder e dominação nas prisões. É exatamente o que podemos deduzir sobre o caso do Pará, que acompanha a situação do resto do país, com novas configurações no cenário de relações de força nas suas prisões. A emergência de novos agenciamentos sobre a maneira de organizar o crime, o narcotráfico, entre outros, demonstra o protagonismo das novas facções, como é o caso da CCA. Esses grupos simbolizam a ascensão de novas dinâmicas do crime nas unidades prisionais, bairros, becos e vielas, com efeitos decisivos sobre os mercados de proteção, segurança e na sensação de insegurança urbana. Se ainda for possível dizer alguma coisa, em uma região tão desigual, não seria surpreendente descobrir que mesmo diante deste cenário, as facções não são as únicas promotoras da violência, porém, ganham um destaque muito maior por simbolizarem as consequências macabras dos graves problemas que enfrentamos na atualidade.

IHU On-Line - Alguns pesquisadores afirmam que as facções têm recrutado jovens que vivem nas periferias. Isso tem acontecido nos estados do Norte e Nordeste? Que informações você tem sobre esse quadro?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – Se esse tipo de recrutamento existe nas periferias, se deve a uma maior capacidade para essas organizações atribuírem sentidos para valores e afetos que garantem a adesão desses jovens em suas fileiras. As facções oferecem protagonismo, consideração e a possibilidade de participar de algo que pareça significativo. Uma das consequências disso é trazer os jovens novamente para o centro da violência, porém, de modo muito mais letal e marcado pelo uso generalizado da crueldade.

No Estado do Ceará, por exemplo, Leonardo Sá e Jânia Aquino (2018) analisaram a disposição virial para matar ou morrer dos jovens da facção Guardiões do Estado - GDE, valorizando a “socialidade armada” para o extermínio incondicional do inimigo, maneira de agir dentro das periferias de Fortaleza. Por sua vez, Luiz Fábio S. Paiva (2019) demonstra que as transformações sociais nas maneiras de fazer o crime sob os signos e afetos produzidos pelas facções, continuam afetando e vitimizando principalmente jovens, pretos, pardos e pobres. A letalidade está ficando cada vez mais veloz e atingindo um número maior de pessoas que historicamente são as vítimas preferenciais. Isto porque, além da vida comunitária, a realidade é que viver nas periferias dos centros urbanos aumenta consideravelmente a chance de vitimização de jovens. As artimanhas do extermínio estão lá, cada vez mais letais.

Por um lado, a ostentação do poder e do dinheiro rápido, arregimentando adesões em torno de coletivos criminais que oferecem o status de irmãos. Por outro lado, como se não bastassem as condições de vida precária, a conflagração de alguns territórios leva o aparato mais repressivo das forças de segurança a atuarem praticando todo tipo de violações nos bairros e periferias. Como estamos salientando, o fenômeno das facções alterou significativamente a experiência urbana e, sobretudo, para os jovens, diversas fronteiras mortais foram levantadas pelas polícias e pelos grupos faccionados. Isso se expressa na linha política de contenção dos jovens em seus territórios.

Se formos comparar os indicadores sociais sobre distribuição de renda, educação e trabalho nos estados do Norte e Nordeste, vamos conhecer uma realidade de extrema miséria que afeta diretamente milhões de pessoas. Para o ano de 2017, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais - SIS, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a média do rendimento real efetivo domiciliar per capita na região Norte e Nordeste foi de R$ 1.011 e R$ 984, respectivamente. No mesmo ano, considerando o rendimento domiciliar per capita de até U$ 5,5, a região Norte registrou percentual de 43,1% da população vivendo na linha da pobreza, enquanto a região Nordeste registrou o percentual de 44,8% da sua população com renda de até R$ 406 por mês. Sobrevivendo com renda mensal de até R$ 140, isto é, na extrema pobreza, segundo parâmetro de U$ 1,90 dólares por dia (estabelecido pelo Banco Mundial), as regiões Norte e Nordeste revelam números elevadíssimos em comparação com outras regiões, sendo registrados os percentuais de 11,8% e 14,7% de suas populações, respectivamente. No atual contexto de piora nas condições de vida, essas desigualdades marcam profundamente a vida dos jovens que moram nas periferias dos centros urbanos, fração da população que é penalizada com o aumento de sua vulnerabilidade e capacidade de estabelecer planos e projetos.

Por fim, apesar de todos os avanços que foram possíveis no campo da educação e proteção da infância e juventude, a realidade social dos sistemas socioeducativos e prisional permanece inalterada com o grande aprisionamento de jovens que abandonaram a escola, estão desempregados ou na informalidade, em bicos. Tomando novamente o Ceará como exemplo, no primeiro semestre de 2019, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente - Cedeca lançou a “Nota Técnica Especial: Monitoramento da Política de Segurança Pública do Ceará: De Qual Segurança Pública Precisamos?” [3] , indicando que o estado atravessa uma grave crise na política de segurança pública nos últimos anos, repercutindo no privilegiamento de políticas repressivas e encarceradas em detrimento das políticas de prevenção e proteção social. Segundo os dados disponibilizados, se mantida a tendência, em 2025, os gastos nessa área irão ultrapassar os recursos para educação e saúde. O problema é quando os governos e as instituições estatais passam a naturalizar o extermínio e uso permanente da força como forma de combate à criminalidade e delinquência, bem como permitem dolosamente os massacres prisionais. Esse enquadramento é uma realidade bastante explosiva para as regiões Norte e Nordeste, as mais desiguais e historicamente marcadas pelo uso da violência e da crueldade como forma de resolução dos grandes conflitos sociais.

A realidade que precisamos encarar é que o sistema prisional é um mecanismo de gestão da miséria. Todos os números produzidos nesses anos apresentam uma realidade impactante na vida cotidiana das classes populares, principalmente para a juventude, cujo extermínio é parte de um projeto sinistro, politicamente representado nos lobistas das prisões-negócio, indústria de armas e de segurança. A classe trabalhadora sempre teve que se defender da acusação de serem fugitivos, imigrantes, vadios, revolucionários, desempregados, e a situação da juventude brasileira é sintomática dessa realidade.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Ítalo Barbosa Lima Siqueira – O dia a dia de uma prisão é mais comum do que imaginamos. O funcionário acorda antes do sol raiar para cumprir as escalas de trabalho, assim como milhões de trabalhadores e trabalhadoras em todo o país. Para uma mulher, mãe, filha, irmã, pode ser um dia de privações para garantir a visita social e a comida para o familiar encarcerado. As prisões são espaços de agudas privações e afetam muito mais do que as mais de 800 mil pessoas privadas de liberdade. Estamos falando das consequências humanas do encarceramento em massa. É uma lógica que afeta principalmente os setores mais empobrecidos e subalternos da classe trabalhadora, que amargam as prisões como uma possibilidade mais provável, mais próxima. Para os setores dominantes, no noticiário fala-se sobre a prisão domiciliar, muitos recursos e apelações. Realidade bem diferente dos primeiros. Na ponta, a cadeia é feita de movimentos, cada pessoa busca seu modo de sobreviver, são lugares agitados que deixam marcas nos corpos e as memórias bem vivas, presentes e incômodas. Corpo e mente buscam a fuga de toda essa pressão, ainda que seja uma fuga simbólica, pela religião, distanciamento ou pelos movimentos criminais. É preciso entender que ali estão pessoas recrutadas principalmente nas classes populares, as que vigiam e as que são vigiadas.

Temos dados suficientes para desvelar essa realidade estruturada na violência extrema como forma de resolução de conflitos econômicos e políticos. A violência econômica é arrasadora em um país com 12 milhões de desempregados e milhões caminhando para a miséria extrema. É um país de extremos mesmo, com números grandes em vários campos. A contradição é evidente quando examinamos a relação do corte autoritário e punitivo do Estado brasileiro, não superada desde o período colonial, e o modo de inclusão autoritária da vida econômica das classes populares na sociedade de classes. É a realidade das cidades, campos, florestas e das águas brasileiras. A barbárie parece ser um fantasma sempre à nossa espreita, marcando nossa história. A brutalidade da violência que vivemos, por todos esses anos, ligada direta e indiretamente ao massacre, na prática demonstra um sistema baseado na dominação da classe trabalhadora e da juventude, por meio de um sinistro corredor da morte que extermina violentamente 60 mil pessoas por ano. As populações mais pobres são sujeitadas pela violência, e os grupos organizados de modo autoritário, de modo eficiente ajudam a manter o estado de coisas inalterado.

A crescente demanda pelo encarceramento e o extermínio, legitimada por esquemas discursivos da lógica de guerra contra o crime, em realidade promove lucrativos negócios que se aproveitam dessa expansão. Existem grupos econômicos interessados na quebra do monopólio estatal sobre o sistema prisional, vislumbrando a prisão como mais um negócio lucrativo. Porém, é irônico que as políticas que visam à diminuição da presença do estado nesse setor, na prática intencionam a captação de recursos públicos para grupos econômicos interessados na própria expansão do arquipélago penitenciário. Assim, a privatização das prisões, longe de significar a diminuição do Estado, fortalece sua razão política como entidade recuperada em sua face policial, portanto, essencial na legitimação do establishment da indústria do crime e do encarceramento. A exploração do medo da criminalidade urbana, sobretudo com a “guerra” contra o narcotráfico, colocou as prisões no centro das preocupações sobre segurança. Estamos apenas conhecendo um pouco sobre as consequências das políticas de encarceramento gestadas por décadas de negligência e desamparo.

 

Notas:

[1] Segundo o CNJ, o estado do Pará registrou 18.005 pessoas privadas de liberdade, por exemplo. (Nota do entrevistado)

[2] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização - Junho de 2017.
Disponível aqui. Acesso em: 13 de agosto de 2019. (Nota do entrevistado)

[3] Disponível aqui. (Nota do entrevistado)

 

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