10 Novembro 2020
"Para reconhecer a derrota é necessário ter um contato ético com os próprios limites. Mas a posição de Trump, cegada por um fantasma de onipotência, exclui a priori essa possibilidade. Por isso, ao invés de reconhecer a derrota, ele opta pela posição de vítima inocente perseguida pelos poderosos", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 09-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A negação obtusa da pandemia por Donald Trump não é diferente do ponto de vista psicológico da negação dos resultados eleitorais que sancionam a vitória de seu rival. O que essas duas negações têm em comum é a dificuldade do agora ex-presidente de levar em conta fatos complicados que não se dobram à imagem ideal de si mesmo que ele persegue freneticamente no espelho de seu narcisismo. Ele é forçado a negar, contra qualquer prova da realidade, tudo que não coincide com a afirmação incontestada de seu próprio ego.
Mesmo depois dos resultados eleitorais, a cena ainda é a de uma defesa até à morte de sua imagem violada por uma fraude desprezível. Ele se recusa a reconhecer sua derrota eleitoral e sua próxima e inevitável mudança de endereço. Essa resistência extenuante é sintomática de uma atitude básica do homem em sua maneira de interpretar sua própria ação política. A postura fundamental de qualquer liderança democrática estrutura-se na diferença irredutível entre propriedade e responsabilidade: a responsabilidade máxima - como, por exemplo, aquela que implica ser presidente dos Estados Unidos da América - não coincide em nada com o direito de propriedade. Aliás, exatamente o contrário: nas instituições democráticas, precisamente porque se é altamente responsável, não se é proprietário do que se governa. Caso contrário, a confusão entre responsabilidade e propriedade acaba definindo a degradação na qual toda liderança autoritária cai.
Donald Trump é um exemplo eloquente disso; ele confundiu sistematicamente e totalmente esses dois registros. Sua instalação na Casa Branca nunca foi vivida no sinal de uma assunção de responsabilidades perante seu próprio país, mas naquela de uma apropriação das alavancas de seu comando. É a marca registrada de qualquer versão autoritária e não democrática de poder. Com a consequente difamação das instituições e seus dispositivos, vistos apenas como obstáculos ao exercício de seu direito exclusivo de propriedade.
Confundir responsabilidade com propriedade comporta rejeitar a alternância e a própria possibilidade de derrota. Por isso agora se refugia na Casa Branca, recusando-se a reconhecer não tanto as razões de seu adversário político, mas da própria democracia.
Sua maneira de exercer o poder se alimentou de seus fantasmas mais privados: patriotismo, nacionalismo, racismo, sexismo, falicismo, arrogância, vingança. Seu apelo ao povo, razão decisiva de toda a sua propaganda política, é, na realidade, apenas um apelo a si mesmo como seu único representante possível na qualidade de estranho ao mundo corrupto da política.
É a essência da antipolítica que nutre todo populismo: o povo traído pela política deve recuperar o próprio poder contra a política. Bastaria reler seu discurso de posse. Mas agora que a política cobra a conta de uma gestão irresponsável das relações internacionais, da violência e do racismo dentro de seu país, da saúde e dos direitos civis, e, por último, mas não menos importante, da pandemia, ele só pode se recusar a reconhecer os seus erros.
Na verdade, para reconhecer a derrota é necessário ter um contato ético com os próprios limites. Mas a posição de Trump, cegada por um fantasma de onipotência, exclui a priori essa possibilidade. Por isso, ao invés de reconhecer a derrota, ele opta pela posição de vítima inocente perseguida pelos poderosos.
Seu narcisismo não apenas alterou a relação entre verdade e mentira, mas o impede de reconhecer que a maioria dos eleitores estadunidenses decidiu seu futuro com total liberdade. Trata-se de uma ferida narcisista que ele não pode tolerar, pois contrasta com aquela imagem monumental de si mesmo da qual sua própria vida depende.
Depois de ter governado em nome do medo e da vingança, do ódio e do populismo mais agressivo, Donald Trump encaminha-se provavelmente para um declínio inexorável, não só político, onde a Lei não lhe dará mais nenhum desconto. A ausência de um impulso genuíno e ideal para a paixão pela política provavelmente o deixará sozinho diante do espelho estilhaçado de seu narcisismo.
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O ego ferido de narciso. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU