29 Fevereiro 2024
A questão crucial que a Igreja enfrenta hoje não é se ela irá mudar, mas sim como irá mudar. Os atuais debates sobre a sinodalidade, a governança eclesial e o papel do laicato não são meras preocupações administrativas. Eles dizem respeito fundamentalmente à identidade e à missão da Igreja no século XXI.
A opinião é de J. P. Grayland, padre neozelandês e atualmente professor visitante na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O artigo foi publicado em La Croix International, 26-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A recente carta da Cúria à Conferência Episcopal Alemã sobre a criação de um conselho sinodal para partilhar o poder entre bispos e leigos não deve ser subestimada. Tampouco é surpreendente.
Também não surpreende o argumento de que o direito canônico não permite a partilha de poder proposta pelo Conselho Sinodal Alemão. O direito canônico também não permitia a estrutura do Sínodo dos bispos sobre a sinodalidade em Roma. Mas mesmo assim aconteceu.
Então, por que o Vaticano está preocupado com a proposta alemã? Sua oposição à proposta alemã reside na ameaça que ela traz à cultura do poder mediante a ordenação. Como os católicos partilham teologias implícitas e explícitas que são tanto internacionais quanto locais, temos de construir códigos semióticos (liturgia, magistério, hierarquia etc.) que nos permitam relacionar-nos uns com os outros.
Os códigos semióticos usam símbolos que permitem a um católico de um sistema linguístico assistir à missa em um sistema de segunda língua e “participar” da missa porque “sabem o que o padre está fazendo” ou que parte do rito está sendo celebrada sem compreender literalmente nada do que está sendo dito. Nossos sistemas simbólicos nos permitem determinar se algo (litúrgico, teológico ou cultural) articula a verdade do Mistério Pascal ou não.
Um dos códigos semióticos mais potentes do catolicismo é o código simbólico do poder ordenado: o poder de abençoar, decidir, ensinar, governar e obedecer está todo codificado nos ritos de ordenação e é doutrinado aos seminaristas ao longo de sua formação. Quando esse código entra em colapso, experimentamos um colapso no código magisterial de poder, criando uma fragilidade magisterial.
O que vemos na carta do Vaticano aos bispos alemães e na resposta deles em relação ao Conselho Sinodal é a execução desse código semiótico central. Da mesma forma, embora por razões diferentes, na não recepção da declaração Fiducia supplicans, assistimos a uma ruptura do código magisterial.
Embora a declaração Fiducia supplicans tenha exposto o ponto fraco da homofobia dentro da Igreja e o nacionalismo dos episcopados na África e em outros lugares a fim de apoiar estruturas político-culturais de discriminação, sua mensagem mais importante foi sua clara articulação do código semiótico central do catolicismo, a potestas dos ordenados que sustentam o código magisterial. Ela fez isso por meio de seu confuso conceito litúrgico de “bênção”, mas mensagem era clara.
Os hierarcas africanos baseiam sua rejeição em um “excepcionalismo africano” que os afasta da submissão ao sistema magisterial e lhes permite criar um código de poder paralelo baseado em sua ordenação que fala com uma voz africana. A reivindicação africana ao excepcionalismo reflete uma experiência generalizada de colonização e a rejeição ao “ocidentalismo” como uma forma válida de investigação teológica e de prática pastoral contemporâneas.
Como resultado, os prelados africanos tendem a falar de uma Igreja ocidental, europeia ou do Norte dissoluta, que tenta impor sua amoralidade a uma Igreja africana do Sul moralmente intacta. Em contraste, os bispos alemães não reivindicaram um excepcionalismo alemão para sua posição, embora isso possa estar implícito para alguns. A posição alemã reflete, tal como a africana, a cultura dos contextos locais a que pertencem.
Curiosamente, a resposta do Vaticano à oposição dos bispos africanos à Fiducia supplicans tem sido mais acolhedora no debate e mais sinodal. Em contraste, sua resposta à situação alemã tem sido um apelo sólido à conformidade, à uniformidade e à obediência.
Na situação alemã, vemos o movimento de forças centralizadoras para proteger um código semiótico central ameaçado por uma diversificação de relações que pode potencialmente mudar pressupostos de longa data do sistema magisterial. Simplificando, os leigos não estão codificados no sistema magisterial como tomadores de decisão, mas sim como destinatários das decisões tomadas.
Por que a conformidade, a uniformidade e a obediência são aplicadas como um travão ao processo sinodal da Igreja alemã, mas não aos bispos africanos? Há dois aspectos que eu gostaria de oferecer para consideração.
A primeira é a diferença em suas abordagens ao sistema simbólico do poder ordenado. Ao contrário dos bispos alemães, os bispos africanos não propõem um sistema de partilha do poder com os leigos; em vez disso, usaram o código semiótico para justificar sua visão de mundo episcopal.
A segunda razão é a luta intraeclesial entre o “catolicismo cultural” e as “teologias católicas culturais” dentro do Rito Latino. A forma como a diversidade e a unidade são entendidas teologicamente dentro do catolicismo determina como lidamos com a diversificação, o pluralismo e a dissidência.
Por meio de sua rejeição à Fiducia supplicans, os bispos africanos demonstraram que a relação local-universal não pode continuar sendo expressada mediante uma estrutura magisterial de centralização, conformidade e uniformidade. Através da promoção de uma estrutura de partilha do poder episcopal-laical, os bispos alemães demonstraram o mesmo, embora sua resposta recente seja ambivalente.
A questão para o futuro não é se a Igreja pode mudar, mas sim como irá mudar sua estrutura magisterial a fim de permitir que o catolicismo opere globalmente em uma era da informação impulsionada pela tecnologia como a comunidade de “estranhos batizados” que estão unidos em Cristo e divididos pela cultura.
Uma das mudanças fundamentais na estrutura magisterial terá de começar pelo código da ordenação e do poder. Anteriormente, essa questão era respondida por meio de uma uniformidade rígida e de uma estrutura magisterial que exigia obediência e adesão a um conjunto de ensinamentos e a uma estrutura litúrgica única.
Agora, o maior desafio da Igreja – teológica e organizacionalmente – é descobrir como a unidade funciona em um contexto que exige diversidade na prática litúrgica, na prática pastoral, na explicação doutrinária e na gestão organizacional, sem perder de vista o Mistério Pascal.
A estrutura de partilha do poder proposta pelos bispos alemães e a rejeição da Fiducia supplicans pelos bispos africanos representam questões mais profundas enfrentadas pelo sistema magisterial em uma Igreja organizacionalmente enfraquecida pelo seu sistema semiótico central de poder. O protagonista da mudança é a cultura.
O “catolicismo cultural” em toda a sua variedade não pode ser ignorado, nem pode ser gerido por meio de um sistema magisterial estruturado em torno da adesão à centralização por meio da conformidade, da uniformidade e da obediência.
A sinodalidade oferece ao catolicismo uma plataforma de diálogo entre as Igrejas locais. O diálogo intraeclesial funciona onde a escuta é contextual, na medida em que se escuta o contexto econômico, social, societal, ecológico e religioso do interlocutor. Tal processo poderia nos permitir compreender o nosso “pluralismo católico”.
O diálogo intraeclesial nos ajudaria a explorar a relação cultural-religiosa dentro de cada catolicismo cultural e a dinâmica da diversidade e da unidade entre as Igrejas. Poderia nos ajudar a criar um sistema magisterial inclusivo e não exclusivo.
O resultado desse diálogo moldará o futuro da governança da Igreja e sua capacidade de testemunhar o Evangelho em uma comunidade global cada vez mais pluralista e interconectada.
A questão crucial que a Igreja enfrenta hoje não é se ela irá mudar, mas sim como irá mudar. Os atuais debates sobre a sinodalidade, a governança eclesial e o papel do laicato não são meras preocupações administrativas. Eles dizem respeito fundamentalmente à identidade e à missão da Igreja no século XXI.
À medida que a Igreja navega nessas águas, ela deve encontrar formas de honrar suas tradições e, ao mesmo tempo, responder às aspirações legítimas de seus membros por uma maior participação e representação.
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Os bispos católicos e os códigos magisteriais de poder. Artigo de J. P. Grayland - Instituto Humanitas Unisinos - IHU