A Opção Francisco, a Igreja e a mudança de época. Conferência de Raniero La Valle

Foto: Vatican News

17 Agosto 2023

O fim da cristandade, do modo como é vivida pelo Papa Francisco, não é, portanto, uma limitação, uma renúncia, mas sim um avanço, um “salto à frente”, como queria o Papa João XXIII, é a assunção da unidade do mundo, de toda a humanidade em sua viagem terrena. E assim o Papa Francisco a representa nos gestos, nos discursos, nas encíclicas. A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano.

Segundo ele, a cristandade, enquanto "aquele processo iniciado com Constantino em que se estabelece um vínculo orgânico entre cultura, política, instituições e Igreja”, acabou, mas "a extraordinária façanha do Papa Francisco agora é sair da cristandade sem perder e, pelo contrário, reencontrando o cristianismo". E assegura: "Essa é a verdadeira opção Francisco, que, por um lado, responde à mudança epocal que já ocorreu e, por outro, torna-se, ela mesma, causa de uma mudança de época, a partir da Igreja".

Na opinião de La Valle, o Papa Francisco "pode fazer isso porque está convencido de que o Deus que anuncia como cristão é um Deus que cria novidade, é o Deus das surpresas".

A seguir publicamos a íntegra da conferência a ser proferida no evento “A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, hoje, 17-08-2023, às 10h. A conferência será transmitida pelo IHU com tradução simultânea e poderá igualmente ser acompanhada via Zoom no original italiano, aqui.

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A mudança de época que está em curso tem sido objeto de muitas análises, e a mais alarmante é que, ao invés de dar origem a uma época nova, ela pode se tornar a época do fim. Não creio que isso ocorrerá, embora os homens e seus governos, com suas políticas de guerra e suas economias devastadoras, pareçam estar fazendo de tudo para causar o fim da história. Não creio que isso ocorrerá, porque acredito que, quando o mundo cair das mãos dos homens, Deus, que tanto amou o mundo, o recolherá e o fará nascer de novo. Mas, enquanto isso, e justamente por isso, é importante se perguntar o que a sua Igreja está fazendo para cooperar com esse renascimento do mundo, de que modo a Igreja está vivendo essa mudança de época, da qual o Papa Francisco é o primeiro a tomar consciência. A Igreja está fazendo isso mudando de época ela mesma. Por isso, são banais e enganosas as polêmicas de quem diz que a Igreja não está mudando o suficiente porque ainda não introduziu o sacerdócio feminino ou o sacerdócio uxorado. Isso provavelmente ocorrerá, mas não é essa a verdadeira mudança, assim como não se pode dizer que a Igreja mudou apenas porque voltou os altares para o povo ou introduziu as línguas vulgares na liturgia. É claro que, com o Papa Francisco, as novidades não faltam. Nunca se tinha visto que, no início do Ano Santo, a porta santa se abrisse não em Roma, mas em Bangui, no centro da África, ou que um papa lavasse e beijasse os pés de uma mulher muçulmana. Mas muito mais importante é o que acontece. E o que acontece é que o papado romano reconhece e proclama, ele mesmo, que acabou o regime de cristandade.

Fim da cristandade

Cristandade é uma palavra que une cristianismo e sociedade, ou seja, pretende que cristianismo e sociedade sejam uma coisa só, que formem um sistema em que é o cristianismo que dá forma e lei à sociedade, e não a sociedade que interage e dialoga com o cristianismo.

Nas palavras da La Civiltà Cattolica, a cristandade é “aquele processo iniciado com Constantino em que se estabelece um vínculo orgânico entre cultura, política, instituições e Igreja” [1]; um processo que supunha a Igreja como a própria realização do Reino de Deus na terra e, portanto, fazia da Igreja a verdadeira soberana terrena.

Essa ideologia – que é também uma teologia – atravessou os séculos e chegou de fato até João XXIII e ao Concílio Vaticano II, quando foi, salutarmente, abandonada. Por isso, o Concílio marcou uma descontinuidade. Porém, como diria Giuseppe Dossetti, um político italiano que, depois de ter contribuído para redigir a Constituição, fundou uma família monástica e foi um dos inspiradores do Concílio, o próprio Concílio não conseguiu sair do velho paradigma; ele “havia sido todo pensado ainda em regime de cristandade” [2], e talvez por isso teve uma recepção tão conturbada no povo de Deus. Isso era o que Dossetti dizia em 1995. Mas, depois, foi o próprio papado que declarou concluída a temporada da cristandade e corajosamente deu início a uma nova história.

Quando isso ocorreu? Naturalmente, trata-se de um processo, mas as datas podem ser fixadas. Pode-se dizer que a data simbolicamente mais significativa foi o dia 6 de maio de 2016, quando o Papa Francisco se encontrou com os líderes europeus que foram a Roma para lhe entregar o Prêmio Carlos Magno, um prêmio concedido aos europeus mais ilustres em nome da chamada civilização europeia. Essa é a interpretação dada pela revista dos jesuítas em um artigo de seu diretor, Antonio Spadaro.

Carlos Magno é o símbolo supremo do regime de cristandade; seu império se chamava Sacro Império Romano, seu reino se chamava Santa Romana República. Na noite de Natal do ano 800, ele foi a São Pedro para ser coroado pelo papa, porque, no regime de cristandade, o papa era o soberano que, não reconhecendo nenhum outro soberano além de si mesmo, dispensava coroas e distribuía reinos (como Alexandre VI faria mais tarde, atribuindo a recém-descoberta América à Espanha).

De acordo com a La Civiltà Cattolica [3], Carlos Magno cumpriu sua tarefa com a tentativa de organizar o Ocidente como um Estado totalitário; e foi em relação e em contraposição a esse modelo totalizante que a Europa nasceu e cresceu; e foi a partir disso – poderíamos acrescentar – que depois se desenvolveu o longo conflito entre a Igreja e a modernidade, que só foi sanado com o Concílio Vaticano II.

Pois bem, ao receber o Prêmio Carlos Magno, que os líderes europeus desavisados lhe haviam levado, o Papa Francisco simbolicamente retirou a coroa que havia colocado na cabeça do imperador, não para retomar o poder que havia concedido, mas para colocá-lo de volta em seu lugar, ali onde nasce o poder, no povo, para o devolver a César, para submetê-lo ao direito, para confiá-lo à autonomia, mas também à suprema responsabilidade da política; “rejeitando assim radicalmente – escreveu o padre Spadaro – a ideia da implementação do reino de Deus sobre a terra, que havia sido a base do Sacro Império Romano e de todas as formas políticas e institucionais semelhantes, até à dimensão do ‘partido’”.

Portanto, partimos novamente da situação original do Evangelho. Essa é a novidade. E essa é a verdadeira opção Francisco, que, por um lado, responde à mudança epocal que já ocorreu e, por outro, torna-se, ela mesma, causa de uma mudança de época, a partir da Igreja. E é em virtude disso que, ao falar na ONU, o Papa Francisco proclamou pela primeira vez “o domínio inconteste do direito”, e reivindicou, de acordo com as Constituições modernas, a divisão e a limitação dos poderes. E essa é uma libertação para a Igreja, que, não mais comprometida com o poder, pode voltar aos pobres, que são os esmagados pelo poder, aqueles dos quais o Papa Francisco denuncia não só a indigência, mas também a “prisão”; e, portanto, é uma Igreja que não se identifica mais com a sociedade como um todo, mas se reconhece apenas como uma parte dela e por isso pode lhe servir de hospital de campanha para ela, segundo uma famosa metáfora do Papa Francisco e, por ser diferente dela, pode lhe oferecer misericórdia.

Portanto, como ele mesmo explicou, o papa não fala de raízes cristãs da Europa, porque as raízes são muitas, e a glória da Europa é justamente o fato de tê-las acolhido, integrado e feito crescer e fortificar juntas, fossem elas católicas, fossem de outras Igrejas cristãs ou de outras culturas e religiões. E, ao contrário, é um crime o que a Europa atual, a começar pela Itália, está fazendo, ou seja, o fato de não querer acolher os migrantes e os refugiados, e de fazê-los morrer, já às centenas por vez, nos barcos que atravessam o Mediterrâneo, enquanto seria uma glória para a Europa tornar-se uma cidade de refúgio para os fugitivos e os expulsos de todas as culturas e de todos os povos.

É ainda menos aceitável o fato de a Europa fomentar as guerras travadas em nome dos valores da Europa e do Ocidente, a começar pela guerra na Ucrânia: o sonho do papa é outro, como ele já disse várias vezes e mais recentemente há poucos dias, ao desembarcar em Portugal para a Jornada Mundial da Juventude: “Eu sonho uma Europa, coração do Ocidente, que faça frutificar seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do todo e indo além das necessidades do imediato; uma Europa que inclua povos e pessoas com sua própria cultura, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas. E isso nos ajudará a pensar nos sonhos dos pais fundadores da União Europeia: eles sonhavam grande!”. O que acontece é totalmente o contrário: “Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a caracteriza, seria preciso lhe perguntar: para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias criativas para pôr fim à guerra na Ucrânia e aos tantos conflitos que ensanguentam o mundo? E ainda, ampliando o campo: que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimentos do verdadeiro capital humano, o da educação, da saúde, do Estado social”.

A “atualização” doutrinal

Não se deve pensar, porém, que a saída do sistema de cristandade é um processo fácil e envolve apenas uma renúncia ao poder temporal da Igreja. Sair do regime de cristandade significa também corrigir as doutrinas dependentes daquela teologia. Por isso, o papa é duramente atacado hoje, até em sua própria casa. Por exemplo, é claro que a doutrina do Grande Inquisidor, imortalizada por Dostoiévski nos “Irmãos Karamazov”, deve ser abandonada. Mas não só. Em seu tempo, o próprio Papa Bento XVI havia feito uma leitura diferente da tradicional em suas homilias sobre o pecado original e, depois, quando não era mais papa, havia definido “totalmente errada em si mesma” a teoria anselmiana sobre o sacrifício do Filho entendido como reparação exigida pelo Pai pela ofensa recebida devido ao pecado do ser humano. Uma teologia que durou séculos era declarada totalmente errada. E uma nova imagem de Deus foi afirmada pela Comissão Teológica Internacional, quando disse que o cristianismo despediu-se definitivamente de toda ideia de um Deus violento e vingativo. Os teólogos do papa, concluindo um estudo iniciado antes mesmo do Papa Francisco, explicaram que também na Bíblia há mal-entendidos sobre Deus, de modo que uma leitura fundamentalista da Bíblia é um suicídio do pensamento e, na irreversível despedida do cristianismo das ambiguidades da violência religiosa, reconheceram o traço de uma virada epocal, a graça de um discernimento que inaugura uma nova fase na história da salvação e uma real oportunidade de repensar a própria ideia de religião.

Mas a atualização doutrinal é um processo difícil. Vimos como foi difícil no caso do matrimônio e como é difícil corrigir as doutrinas que contrastam com a misericórdia, palavra praticamente ausente em todo o magistério pontifício do século XIX e do início do século XX, até que foi assumida como nova opção da Igreja no discurso de inauguração do Concílio de João XXIII.

A extraordinária façanha do Papa Francisco agora é sair da cristandade sem perder e, pelo contrário, reencontrando o cristianismo. Ele pode fazer isso porque está convencido de que o Deus que anuncia como cristão é um Deus que cria novidade, é o Deus das surpresas. É claro que esse não é o único Deus em circulação. Há o Deus pregado por inércia por toda a Igreja, mas não é um Deus que surpreende, não suscita admiração, é o Deus que jaz no catecismo, há o estereótipo do demiurgo, todo-poderoso, depositado na cultura comum, compartilhado tanto por quem o afirma, quanto por quem o nega, quanto ainda por quem o ignora.

O Deus que irrompe na Igreja de Francisco é diferente. Em um mundo atormentado e exposto às piores surpresas, ninguém pensava que podia haver uma surpresa da parte de Deus. E eis que, com Francisco, apareceu um Deus que surpreende. Para o mundo, foi um clarão repentino, uma extraordinária novidade; para os arqueólogos do sagrado, por sua vez, foi uma surpresa ingrata, um incidente inesperado, uma exceção aos regulamentos. Por isso, os mais papistas do que o papa tornaram-se, justamente eles, antipapistas. Isso explica a solidão institucional do Papa Francisco e o ódio com que é combatido.

O Deus inédito

Como isso pode ocorrer, se Deus é sempre o mesmo e nele não há sombra de variação (Tiago 1,17)? Isso ocorre porque o conhecimento de Deus é inesgotável, e sempre há um Deus inédito, que espera ser publicado. Sempre há novas edições do único Deus, e, à medida que o Deus inédito se torna editado, os seres humanos progridem no face a face com ele. De edição em edição, não é Deus quem muda, mas, como dizia o Papa João XXIII sobre o Evangelho, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor. Deus cresce com o crescimento da Palavra que o diz, mas, na realidade, aquilo que cresce, aquilo que muda é a nossa percepção de Deus, a nossa capacidade de acolher sua oferta de vida. Afinal, era justamente essa a tarefa atribuída pelo Papa João XXIII ao Concílio, a tarefa de investigar e enunciar o tesouro da fé “naquele modo que os nossos tempos exigem” (ea ratione quam tempora postulante nostra); e essa é a própria razão do pontificado de Francisco, essa é a verdadeira reforma e o carisma de seu pontificado; essa é a extensão de sua escolha estratégica de sair do palácio e de viver em Santa Marta para abrir o Evangelho todos os dias, trazer novamente à luz o Deus que havia sido obscurecido, publicar uma edição d’Ele não censurada pelos escribas e transmiti-la a todo o povo.

Mas, se é isso que está ocorrendo, é legítimo ler o tempo de virada que estamos vivendo como o início de uma nova fase da história da salvação. Por isso, podemos dizer que hoje estamos não tanto em uma época de mudanças, mas sim em uma mudança de época.

A edição que nossos tempos exigem

Mas de qual edição de Deus precisamos hoje? De fato, cada edição de Deus corresponde a uma exigência nova, a uma pergunta premente que irrompe do coração da humanidade ferida em um dado momento de sua história. E é precisamente em um mundo que, com a globalização, com o genocídio do povo dos migrantes e com a guerra entronizada como soberana universal, irrompe a surpresa do Deus da misericórdia. Não é que Deus tenha se tornado misericordioso hoje, mas é que muitas sombras cobriam Seu rosto. E eis que aquele Deus que permaneceu inédito para muitos agora é publicado, enquanto se prefere guardar nas prateleiras o “Rex tremendae maiestatis” cantado no “Dies irae”, tenta-se pôr na surdina o Deus da vingança invocado por Isaías, obscurece-se o Juiz inapelável dos infernos de Dante e dos condenados da Capela Sistina. E isso porque, como escreveu o Papa Francisco na bula de proclamação do Ano da Misericórdia, “Misericordiae vultus”, um Deus que parasse na justiça não seria nem mesmo um Deus. Ou seja, em relação a esse Deus, nós somos ateus. Como Ernst Bloch respondeu a Jürgen Moltmann, que, após uma de suas conferências, perguntava-lhe perplexo: “Sr. Bloch, o senhor é ateu, não é verdade?”, e Bloch respondeu: “Sou ateu por amor a Deus”.

O Deus editado pelo Papa Francisco é um Deus que “primerea”, que é sempre o primeiro no amor, é um Deus que perdoa sempre; é um Deus que se troca com o ser humano (São Paulo) ao carregar seu pecado e sua cruz; é um Deus que não escolhe entre eleitos e não eleitos, mas elege a todos, para além de toda religião e cultura, não fica atrás da porta do santuário vigiada pelo ostiário, mas sai para ser encontrado em espírito e verdade, não é o Deus da casuística, mas da verdade, nem da equação de um peso igual, mas do dom sem comércio, nem o Deus da guerra – que, diz Francisco, não existe –, mas o Deus da paz, um Deus não violento, um Deus que não está com a cidade resplandecente, mas com o mendigo que morre na rua do centro de Roma, não está nos barcos-patrulha que agarram as presas dos náufragos, mas nos barcos que afundam e nos navios das organizações não governamentais que, contra as regras, correm para salvá-los.

É o Deus anunciado por Francisco, mas não é o Deus de Francisco

Nós dizemos que esse é o Deus surpreendente pregado por Francisco. Mas não é o Deus de Francisco, é o Deus da edição extraordinária do século XX. Essa leitura de Deus cresceu ao longo do tempo junto com a fé do povo de Deus e irrompeu após a grande tragédia dos totalitarismos, da guerra mundial, da Shoá, da bomba atômica. O próprio Papa Francisco não poderia publicá-la hoje se essa nova edição de Deus não tivesse sido preparada em uma Igreja que passou pela grande tribulação da modernidade, da apostasia das massas e da ansiedade pela sua agonia, denunciada no pós-guerra pelo cardeal Suhard, arcebispo de Paris. Essa nova figura de Deus veio à tona, depois, com o Concílio Vaticano II, com o qual o Papa Francisco forma um só corpo, de modo que o Concílio e seu pontificado devem ser vistos não como dois eventos à distância de 50 anos, mas como um único evento. O trajeto vai da Gaudet Mater Ecclesia à Evangelii gaudium, da Lumen Christi, Lumen gentium à Misericordiae vultus, à Laudato si’, à Fratelli tutti. A data simbólica que os une é o dia 8 de dezembro, fim do Concílio e início do ano da misericórdia. Por isso, o Deus inédito do Papa Francisco não é um Deus extemporâneo, importado para São Pedro do fim do mundo, do Sul das Américas, como em uma viagem de volta das caravelas de Colombo. E Francisco não é um papa excêntrico, apátrida. O Deus que ele anuncia é um Deus bem plantado na tradição e que passou por todos os crivos da Igreja Católica Romana. Ou seja, essa nova edição de Deus não carece de imprimatur.

Muda a ideia de Igreja

Com o fim da cristandade, a própria concepção da Igreja muda. A teologia tradicional fazia da Igreja Católica Romana não apenas a única Igreja, mas a única depositária da verdade e, portanto, da salvação; poucos estavam destinados a se salvar (por isso, a cristandade pretendera abraçar a todos, mas por meio da submissão política), enquanto todos os outros, como sublinhava o teólogo Karl Rahner fazendo um balanço do Concílio 15 anos depois, estavam destinados a ser “uma massa condenada”. A teologia oficial estabelecia que “extra Ecclesiam nulla salus”, as outras religiões eram falsas, nocivas, condenáveis, a relação com elas era de proselitismo, de concorrência, de guerras religiosas; o mesmo valia para o Islã, com sua luta contra os infiéis, as penas capitais, a Sharia. E eis então que, em 4 de fevereiro de 2019, o Papa Francisco e o Grão-Imã de Al-Azhar, Ahamad al-Tayyb, assinam em Abu Dhabi uma “Declaração Conjunta sobre a Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência Comum” e declaram que o pluralismo religioso é desejado pelo próprio Deus, que as diversidades “de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua são uma sábia vontade divina, com a qual Deus criou os seres humanos”. E isso em nome da fraternidade humana “que abraça a todos os seres humanos, os une e os torna iguais”.

E o Papa Francisco proclama que o proselitismo é uma solene tolice. Por sua vez, os sábios islâmicos escrevem aos extremistas e aos algozes do chamado Estado Islâmico que “o Islã não avança com a espada”, que mesmo a violência de Maomé deve ser interpretada levando em consideração o contexto histórico em que o Alcorão deve ser lido.

A Igreja vislumbrada pelo Concílio e depois reconhecida como a verdadeira Igreja pelo Papa Francisco, portanto, não é apenas uma Igreja em diálogo com toda a humanidade, como Paulo VI já havia chegado a dizer, mas também uma Igreja que abraça toda a humanidade, e o povo de Deus, amado e salvo por Deus, é o povo, são os povos de toda a terra. E o carisma especial do Papa Francisco é que ele não apenas anuncia as novidades da fé, mas também as representa, com gestos fortemente simbólicos e pedagógicos. Ele demonstrou isso desde o início, fazendo sua primeira viagem a Lampedusa, a ilha do Mediterrâneo que é o local de desembarque, quando sobrevivem, dos migrantes que atravessam o Mediterrâneo, quase dizendo que ele estava ali para esperá-los e acolhê-los; e mais tarde, de Lesbos, levou consigo para a Itália uma família de refugiados que, segundo a lei italiana, não tinha direito de entrar no país; e, quanto à unidade entre as diversas confissões cristãs, os gestos foram inúmeros, desde a amizade que continuou existindo com o pastor protestante conhecido na Argentina até ao fato de ir celebrar o centenário de Lutero, à visita à igreja anglicana de Roma, aos encontros com o Patriarca Bartolomeu e com o patriarca de Moscou, Kirill, na viagem a Cuba.

 

E, quanto à universalidade do povo de Deus, o gesto mais comovente com que ele quis consagrá-la foi a interpretação que ele deu sobre o lava-pés. É o rito que recorda o gesto de amor e de inclusão de Jesus, que lavou os pés dos discípulos em sua “última ceia”. Com a reforma litúrgica após ao Concílio, esse rito foi introduzido na missa da Quinta-Feira Santa, e, no Missal Romano, foi escrito que, ao lava-pés, fossem admitidos “doze homens escolhidos entre o povo de Deus”, onde “homens” significava pessoas do sexo masculino, e “povo de Deus” significava fiéis, isto é, membros da Igreja Católica. Mas, se a mulher continuava sendo excluída de todos os ministérios, parecia realmente demais que até mesmo o lava-pés permanecesse um assunto apenas entre homens, celebrante e fiéis. E, assim que o Papa Francisco chegou, ele pediu à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos que prescrevesse que as mulheres também fossem admitidas ao rito. A Congregação obedeceu e, em 6 de janeiro de 2016, emitiu um decreto em que os novos protagonistas do rito eram enumerados com grande prodigalidade, e os homens escolhidos se tornavam “os escolhidos entre o povo de Deus”, que representassem “a variedade e a unidade de cada porção do povo de Deus”, podendo assim incluir “homens e mulheres, jovens e idosos, sãos e doentes, clérigos, consagrados, leigos”, mas, mesmo assim, católicos, fiéis e batizados. Mas, na primeira celebração posterior da Quinta-Feira Santa, em 24 de março daquele ano, o Papa Francisco, ao celebrar a missa em um centro de acolhimento para refugiados requerentes de asilo em Castelnuovo di Porto, dava sua interpretação autêntica do que era o povo de Deus e lavou os pés de quatro católicos, três cristãos coptas, três muçulmanos e uma operadora do centro, de todas as nacionalidades, sírios, nigerianos, paquistaneses, italianos.

O fim da cristandade, do modo como é vivida pelo Papa Francisco, não é, portanto, uma limitação, uma renúncia, mas sim um avanço, um “salto à frente”, como queria o Papa João XXIII, é a assunção da unidade do mundo, de toda a humanidade em sua viagem terrena. E assim o Papa Francisco a representa nos gestos, nos discursos, nas encíclicas. Mas ela também é objeto de um anúncio específico: como já fez no início de seu pontificado, em 2014, quando, no discurso ao congresso sobre a “pastoral nas grandes cidades”, afirmou: “Viemos de uma prática pastoral secular, em que a Igreja era a única referência da cultura. É verdade, é a nossa herança. Como autêntica Mestra, ela sentiu a responsabilidade de delinear e de impor não só as formas culturais, mas também os valores e, mais profundamente, traçar o imaginário pessoal e coletivo, ou seja, as histórias, os pilares nos quais as pessoas se apoiam para encontrar os significados últimos e as respostas às suas perguntas vitais. Mas não estamos mais naquela época. Ela passou. Não estamos na cristandade, não mais. Hoje, não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos. Precisamos, portanto, de uma mudança de mentalidade pastoral”. Depois disso, o Papa Francisco falou explicitamente sobre o “fim da cristandade” várias vezes. E, sobretudo, fez isso onde talvez fosse mais difícil que isso fosse apreciado, no discurso à Cúria Romana para o Natal de 2019: “Irmãos e irmãs, não estamos na cristandade, não mais! Hoje, não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos. Precisamos, portanto, de uma mudança de mentalidade pastoral, o que não significa passar para uma pastoral relativista. Não estamos mais em um regime de cristandade, porque a fé – especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente – não é mais um pressuposto óbvio da vida comum, aliás, muitas vezes é até negada, escarnecida, marginalizada e ridicularizada”.

E em 3 de fevereiro de 2020, em uma mensagem pelos 150 anos de Roma como capital da Itália, que significou a perda do domínio temporal sobre a cidade e o fim do Estado Pontifício, ele disse que aquele foi um evento providencial que “mudou Roma, a Itália e a própria Igreja: iniciava uma nova história”. Essa história nova é a verdadeira “Opção Francisco”.

Notas

1. Antonio Spadaro, Lo sguardo di Magellano, L’Europa, Papa Francesco e il Premio Carlo Magno, in Civiltà Cattolica, 11-06-2016, II, p. 477- 478.

2. Paolo Prodi, Giuseppe Dossetti e le officine bolognesi. Bolonha: Il Mulino, 2016, p. 139 et seq.

3. Antonio Spadaro, La diplomazia di Francesco, La misericordia come processo politico, in Civiltà Cattolica, 13-02-2016, I, p. 218-219.

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