29 Setembro 2021
“A polêmica que surgiu entre o papa e os judeus é surpreendente, porque não tem outra causa senão a pregação do Evangelho, como se ela mesma fosse causa de ofensa aos judeus; mas, se esse fosse o caso, o próprio Evangelho deveria ser calado, não haveria remédio para a inimizade, e todos os esforços feitos para estabelecer uma verdadeira comunhão com os judeus após o Concílio seriam em vão.”
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 28-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma singular correspondência polêmica foi intercambiada nos últimos dias entre dois rabinos que representam o judaísmo mundial e o cardeal Kurt Koch, presidente da comissão vaticana para as relações religiosas com o judaísmo.
A matéria da contenda era a catequese sobre a Carta de São Paulo aos Gálatas que o Papa Francisco está proferindo aos fiéis nas Audiências gerais das quartas-feiras. Para os cristãos, a Carta aos Gálatas não é arqueologia: como escreve o padre jesuíta Giancarlo Pani ao apresentar uma de suas edições, “trata-se da primeira reflexão sobre a fé pela salvação”, escrita antes ainda dos Evangelhos, e, por esclarecer “em que consiste a salvação dada por Cristo, ela também é fundamental para nós, para os cristãos de todas as gerações e de todos os tempos”.
Em particular, os rabinos reagiram à catequese papal do dia 11 de agosto sobre o tema da relação entre Lei e Evangelho, que está no centro da mensagem paulina: os Gálatas, impulsionados por missionários rígidos e fundamentalistas, estavam perdendo a liberdade trazida pelo Evangelho, para recair no formalismo hipócrita da observância da Lei, e Paulo, como Francisco faz com os fiéis de hoje, os exorta na sua carta a não voltarem atrás, para não acabarem novamente sob as velhas escravidões.
Os dois rabinos são Rasson Arussi, que em nome do Grão-Rabinato de Israel em Jerusalém preside a Comissão para o Diálogo com a Santa Sé, e o rabino David Sandmel, que preside o Comitê Judaico para as Consultas Inter-Religiosas em Nova York. Os dois rabinos escreveram uma carta vibrante ao cardeal Koch, detectando nas afirmações do papa sobre a libertação da Lei de Moisés realizada por Jesus “um ensinamento de desprezo em relação aos judeus e ao judaísmo”.
O Papa Francisco havia se referido à imagem paulina da Torá como um “pedagogo” para chegar a Jesus, uma imagem certamente não depreciativa, mas os rabinos consideraram que, desse modo, o papa não só havia apresentado a fé cristã como uma superação da Torá (que, de acordo com Paulo, Cristo havia levado a cumprimento no Espírito Santo, de acordo com o mandamento do amor), mas também tinha defendido que esta última não dá a vida, o que implica que a prática religiosa judaica na era atual é obsoleta.
Esse protesto oficial do judaísmo chegou como um raio em céu azul e totalmente imprevisível, porque nunca como com o Papa Francisco as relações do cristianismo com as outras religiões foram apresentadas de um modo mais acolhedor e menos exclusivo, enquanto o papa manifestou um extraordinário amor de todas as formas, precisamente em relação aos judeus.
O papa absolutamente não dissera que os Mandamentos não deviam ser observados, mas sim que se devia caminhar no caminho deles, mas sem cair no fundamentalismo que nos desvia do encontro com Jesus e, portanto, com o Pai. Também não se pode dizer que Francisco disse algo novo em relação às relações com o judaísmo ou acrescentou algo de sua autoria a elas.
Ele mesmo expressou admiração com a acusação que lhe havia sido feita, quando, em uma catequese posterior, a de 1º de setembro, sem recuar do seu ensinamento, ele disse que a sua explicação da Carta de São Paulo aos Gálatas “não é uma coisa nova, uma coisa minha; é o que diz São Paulo, em um conflito muito sério, aos Gálatas. E é também Palavra de Deus, porque entrou na Bíblia. Não são coisas que alguém inventa, não. É uma coisa que ocorreu naquele tempo e que pode se repetir”. Então, por que os rabinos se irritaram com isso?
Uma resposta articulada foi fornecida depois aos dois interlocutores em uma carta do cardeal Koch, escrita após ter ouvido o próprio papa. Nela, afirma-se que “a convicção cristã constante é de que Jesus Cristo é o novo caminho de salvação. No entanto, isso não significa que a Torá seja diminuída ou não seja mais reconhecida como a ‘via de salvação para os judeus’”.
Como disse o papa em um discurso proferido no Vaticano em 2015 ao Conselho Internacional de Cristãos e Judeus, que o cardeal recorda e confirma, “as confissões cristãs encontram a sua unidade em Cristo; o judaísmo encontra a sua unidade na Torá. Os cristãos creem que Jesus Cristo é a Palavra de Deus feita carne no mundo; para os judeus, a Palavra de Deus está presente sobretudo na Torá. Ambas as tradições de fé encontram o seu fundamento no Deus único, o Deus da Aliança, que se revela por meio da sua Palavra”.
Essa polêmica que surgiu entre o papa e os judeus é surpreendente, porque não tem outra causa senão a pregação do Evangelho, como se ela mesma fosse causa de ofensa aos judeus; mas, se esse fosse o caso, o próprio Evangelho deveria ser calado, não haveria remédio para a inimizade, e todos os esforços feitos para estabelecer uma verdadeira comunhão com os judeus após o Concílio seriam em vão.
A pedra de escândalo seria a teologia de Paulo que, mais do que qualquer outro, apresentou a novidade cristã como uma libertação da lei mosaica. Com efeito, Paulo sempre foi considerado um inimigo dos judeus, que lhe imputam de ter teorizado a transferência da eleição divina de Israel à Igreja. Mas nem todos os judeus pensam assim, e aqui devemos lembrar a releitura de Paulo feita pelo grande intelectual judeu Jacob Taubes, que, no seu seminário realizado pouco antes de sua morte em Heidelberg em 1987 sobre “A teologia política de São Paulo”, defendeu que Paulo não é um “convertido” do judaísmo, que não se tratou disso no famoso episódio de Damasco.
Tratou-se, antes, de um chamado, de uma vocação, como a de outro grande profeta judeu, Jeremias, que, antes ainda de nascer, havia sido “estabelecido profeta das nações” (Jr 1,5); é o próprio Paulo, observava Taubes, que se apresenta como “chamado” a uma tarefa, escolhido por vocação para ser apóstolo (de fato, ele não o era, como os outros Doze), “enviado pelos judeus aos pagãos”, permanecendo, assim, um judeu.
Paulo também não traiu o judaísmo porque, longe de afirmar uma revogação das promessas de Deus ao povo escolhido, ele defendeu que a promessa de Deus ao povo de Israel é irrevogável. Para ele, não se tratava de transferir a eleição de um povo a outro, mesmo que maior, mas sim de estender a eleição a todos os povos, por força não mais de uma obediência à lei, mas de uma “obediência à fé”.
E a dialética interna dessa posição é aquela expressada no capítulo 9 da Carta aos Romanos, segundo a qual se tratava de converter os estrangeiros à fé para “fazer ciúme” a Israel; e quando, devido ao “endurecimento” de uma parte de Israel, a totalidade das nações tivesse entrado, então todo Israel (pás Israel) seria salvo, como a Carta aos Romanos diz no capítulo 11. Essa é a tese de Taubes que faz de Paulo o grande profeta judeu chamado por Deus para passar o bastão dos judeus aos pagãos e, por isso, a todos os homens e mulheres, sem tirá-lo dos primeiros, aliás.
Qual o interesse de lembrar essa interpretação hebraica da figura de Paulo (que pode ser encontrada em um capítulo do livro de Raniero La Valle “Prima che l’amore finisca” [Antes que o amor acabe] e agora pode ser lido na terceira sala – Unidade humana – do site La Biblioteca di Alessandria [disponível em italiano aqui])?
A sua atualidade está no fato de que, se os rabinos que protestaram contra o papa pela sua catequese sobre Paulo a tivessem em mente, eles não teriam escrito o seu protesto; mas acima de tudo é útil porque restabelecer, por meio do próprio Paulo, uma continuidade da economia salvífica divina entre o judaísmo e o cristianismo seria uma grande contribuição para a construção da unidade humana hoje tão necessária, não apenas para os destinos políticos do mundo, mas também para a sua própria continuidade e sobrevivência.
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Quando o papa anuncia o Evangelho. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU