05 Agosto 2023
No livro Senza Chiesa e senza Dio: Presente e futuro dell’Occidente post-cristiano, Brunetto Salvarani enfrenta uma mudança de época, que bem pode receber o nome de crise, "valendo-se de uma ampla análise de estudos e documentos e sem conceder nenhum espaço a pesares ou lamentações", escreve Mariangela Maraviglia, historiadora e pesquisadora em Ciências da Religião, em artigo publicado por Settimana News, 03-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O historiador Michele Ranchetti recorda em um de seus textos que o padre Balducci ou o padre Turoldo afirmavam: “nós somos os últimos padres”. Desde a última parte do século XX, estava viva nos cristãos mais atentos a consciência de pertencer a um mundo religioso em rápida transformação, que não suportava mais ser interpretado e vivido com categorias tradicionais e pedia novas formas de comunicação e intervenção.
Nas poucas décadas que se passaram desde o seu desaparecimento, ambos em 1992, a transformação sofreu uma aceleração surpreendente, tanto que hoje podemos constatar não só a crise, mas o fim aquele mundo em que ambos se sentiam plenamente partícipes, ainda que com o orgulhoso espírito crítico que marcava as suas existências.
Sobre essa crise há anos se sucederam investigações sociológicas e históricas, leituras teológicas, documentos pastoral voltados a compreender, denunciar, sanar. Manchetes eloquentes advertem que a Igreja está "queimando", que está sendo criada "a primeira geração incrédula", que "pequenos ateus estão crescendo", que as mulheres abandonam a prática religiosa furtando-se de seculares fidelidades.
Mas, além dos textos escritos, a experiência de cada um torna-se confirmação explícita de uma mudança de época que surpreende e muitas vezes atordoa, ao ver o declínio não só das formas tradicionais de crença, mas também daquelas experiências eclesiais que propuseram uma renovação radical da fé cristã, no espírito do Concílio Vaticano II.
Brunetto Salvarani, em Senza Chiesa e senza Dio: Presente e futuro dell’Occidente post-cristiano (Sem Igreja e sem Deus: presente e futuro do Ocidente pós-cristão; Laterza 2023) enfrenta essa mudança de época, que bem pode receber o nome de crise, valendo-se de uma ampla análise de estudos e documentos e sem conceder nenhum espaço a pesares ou lamentações. Pelo contrário, sugerindo atravessá-lo como um tempo de oportunidade, um chronos a ser vivido com a sabedoria de transformá-lo em um kairós. Nas palavras da escritora Christiane Singer recomenda seu “bom uso” porque “na falta de professores, na sociedade em que vivemos, são as crises os grandes mestres que têm algo a nos ensinar, que podem nos ajudar a entrar [...] na profundidade que dá sentido à vida” (p. 4).
Brunetto Salvarani, Senza Chiesa e senza Dio: Presente e futuro dell’Occidente post-cristiano, collana “Tempi Nuovi”, Laterza, Roma-Bari, 2023.
Mas, para que se torne uma oportunidade, essa crise deve ser questionada, assumida sem hesitação, aproveitando sua importância a partir das muitas vozes que a enfrentaram e analisaram.
Sim, afirma Salvarani, estamos na dissolução do regime de cristandade, aquele microcosmo compacto e aparentemente inatacável que, desenvolvendo-se a partir da era constantiniana, impôs por séculos, sobre vastos territórios, concepções éticas e sociais e ideias de Deus e da vida após a morte.
Da socióloga Danièle Hervieu-Léger toma os conceitos de "implosão" e "exculturação" do catolicismo, para expressar o fim da trama cultural por longo tempo dominante no cenário religioso e sociedade de todo o Ocidente. Um colapso tornado mais evidente pelo desarmante analfabetismo bíblico que toda investigação atesta: a Bíblia - escreve Salvarani com uma expressão feliz e incontestável - é o "livro ausente" da cultura transmitida e compartilhada: apesar de ser o "grande código" da cultura ocidental, segundo a famosa definição do crítico literário Northop Frye; apesar de não haver aspecto da vida cultural e artística das latitudes ocidentais que possa ser lido sem o conhecimento de seu universo de conteúdos, histórias, personagens, como reiterava Umberto Eco.
Um quadro devastador, mas que não se resolve no irrevogável ocaso de toda experiência religiosa, segundo as convictas premonições de "eclipses do sagrado" que marcaram a segunda meados do século XX.
A religião do Ocidente não desaparece, recorda Salvarani, mas sofre aquela que o sociólogo Luigi Berzano chama de “quarta secularização” e, de instituição que organiza a vida pública, transforma-se cada vez mais em patrimônio individual de pessoas que recortam uma variegada “autonomia dos estilos” do crer.
Desaparece a figura do praticante regular e da civilização paroquial, afirma-se a figura do “peregrino”, ícone de uma paisagem religiosa em movimento, de “dinâmica de tipo faça-você-mesmo”, num contexto generalizado e compartilhado que percebe com idêntica legitimidade os mais diversos caminhos espirituais, a pertença condicional, a autogestão ou mesmo o abandono da prática religiosa.
Se o que foi dito vale para grande parte das vivências religiosas italianas, europeias, norte-americanas, não representa a realidade de outras áreas do mundo, especialmente na África e na América Latina, onde se assiste a uma autêntica "mudança de morada de Deus".
Com essa fórmula cativante e com muitos dados nas mãos, Salvarani representa realidades religiosas em plena floração naqueles continentes, vitalidades inesgotáveis de grupos, principalmente carismáticos e estranhos às confissões tradicionais, que realisticamente representam o presente e talvez grande parte do futuro de Cristianismo. Grupos sobre os quais não cala as criticidades de uma abordagem emocional e conservadora da fé, da doutrina e da moral, ou na concentração em uma "teologia da prosperidade" que reduz a fé a um pedido individualista de imediata saúde, felicidade e riqueza.
Diante de um quadro tão complexo e confuso, de um pluralismo aberto a possibilidades inéditas, mas certamente não tranquilizadoras, Salvarani não cede a orientações autodefensivas ou a lógicas de conflito, nem a salvaguardar algum "destroço da cristandade" (citação de Giuseppe Dossetti). Em vez disso, acredita que precisamos aprender a viver a crise exercitando a coragem de "um pensamento dotado de imaginação e fantasia", a paciência "para nos educarmos para o diálogo interno e externo", sem pretender possuir soluções fáceis, mas ilusórias.
O caminho da formação parece-lhe o recurso necessário para "semear futuro", partindo da centralidade da Bíblia e da pessoa de Jesus Cristo, mas sem medo de seguir itinerários de diálogo ou inaugurar experiências de inédita “mestiçagem”, palavra-chave da sua proposta, entre religiões e culturas.
Recomeçar pela Bíblia, a ser relançada com as devidas metodologias, nas igrejas, nas escolas e onde quer que existe educação: “As novas gerações, para viverem conscientemente numa sociedade multirreligiosa, precisam conhecer e compreender a realidade e a complexidade do fenômeno religioso: conhecer e compreender é, ao mesmo tempo, condição para uma convivência frutífera e para uma consciência madura da própria identidade. Da qual a Escritura, goste-se ou não, pelo menos no Ocidente, faz parte de tempos imemoriais” (p. 145).
Recomeçar de uma fé em Jesus Cristo que combine atitude dialógica e anúncio profético, que reconheça "os raios de verdade divina que se encontram dentro das religiões do mundo” e ao mesmo tempo anuncie “sem hesitações, fielmente [...] o nome, a visão e o senhorio de Jesus Cristo” (p. 123). Na escola de muitos mestres, entre os quais se destacam, tendo como pano de fundo o Concílio Vaticano II, o Papa Francisco, Raimon Panikkar, Bruno Hussar.
O Papa Francisco com o seu ecumenismo do "poliedro", a sua proposta de uma unidade entre cristãos em que cada parte, diferente da outra, conserva a sua peculiaridade e o seu carisma (p. 73); com o reconhecimento – em documentos como aquele assinado em Abu Dhabi sobre a fraternidade humana (2019) e a encíclica Fratelli tutti (2020) – de uma Igreja que “como não integra e não toma o lugar Israel, da mesma forma não integra e não substitui a parte de verdade religiosa de que outra religião pode ser portadora” (p. 79).
Bruno Hussar, judeu dominicano próximo aos árabes, fundador da vila da paz de Neve Shalom/Wahat as-Salam, está convencido de que “Jesus é judeu e o é para sempre”, e que, a partir da sua humanidade historicamente judaica, seja necessário “caminhar numa vida pessoal e comunitária, o mais possível humana e humanizada” (p. 178).
Raimon Panikkar, o teólogo indo-espanhol que na sua declaração original de fé (“Eu parti cristão, descobri-me hindu e retornei budista sem nunca deixar de ser cristão") encarna a "necessidade vital do cristianismo de se inculturar corajosamente nas mais intrincadas tradições " (p. 147).
Todos mestres que interpretam nas suas diversas realidades o estilo de Jesus: estilo do dom, da relação, da hospitalidade que Salvarani indica ao presente e ao futuro dos cristãos.
Grande admirador da literatura refinada e popular, de músicas e cinema, o autor brinda seus leitores com citações e passagens entre as mais tocantes que podem ser lidas e admiradas na produção contemporânea. Como o autobiográfico Servabo de Luigi Pintor (1991): “Não há em toda uma vida coisa mais importante do que te abaivar para que um outro, abraçando o teu pescoço, possa se levantar”.
Como o conto de fadas do filme A Festa de Babette (1987), grande parábola da "caridade hospitaleira" e do milagre da harmonia redescoberta que pode surgir do dom amoroso de uma arte e de uma vida.
Operando no contexto de uma paisagem cada vez mais secularizada e, ao mesmo tempo, repleta de variadas propostas espirituais, teológicas e éticas, para as Igrejas cristãs há realmente a necessidade de “botar em funcionamento o pensamento”, como recomenda Salvarani. Que oferece um contributo duplamente "necessário": pois rico de vozes e de solicitações a refletir sobre um presente incontornável; pois animado pelo olhar confiante de um diálogo possível e de um jogo aberto, a ser jogado como católicos no caminho do Sínodo, oportunidade e aposta para novas possíveis narrativas, também em nosso tempo, de uma Boa Nova.
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Que lugar para Deus e para a Igreja? Artigo de Mariangela Maraviglia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU