11 Julho 2023
"Ao longo do caminho, tornou-se inevitável questionar-me sobre o lugar periférico que a vida pública de Jesus ocupa na teologia de von Balthasar: nada mais é do que um prólogo, uma introdução profética ao que realmente importa: a Páscoa de Cristo", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 10-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Provocado pelo debate gerado pelo último livro de Clodovis Boff,[1] sinto-me obrigado a retomar a meditação da minha fé em Jesus de Nazaré, o Cristo, o Messias.
De fato, me preocupa a posição de Clodovis, inquisitorial e ferozmente crítico contra todos aqueles que não vivem e não pensam a fé em Cristo Jesus como ele, a ponto de não os considerar mais cristãos e muito menos católicos.
Clodovis, em nome da fé cristológica, rejeita radicalmente, juntamente com seus erros juvenis, todas as contribuições das teologias da libertação, que não passariam de reduções heréticas de Cristo e do Evangelho à antropologia, à sociologia e à política. Por exemplo, a teologia de Jon Sobrino seria para Clodovis uma pobrelogia [2] (sic!) em vez da cristologia. Os pobres tomariam imanentistamente o lugar de Cristo.
A "teologia da libertação" seria a responsável pela grave crise da Igreja Católica no Brasil, da qual nem mesmo a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) se daria conta da decadência e do declínio diante do crescimento exponencial das igrejas neopentecostais.
O teólogo parece tão preocupado com a Igreja que esquece totalmente o chamado a descobrir os sinais do Reino presente e a missão de construí-lo. Clodovis reforça, com a sua retratação radical, os segmentos católicos que nunca aceitaram o Vaticano II e Medellín, e que fazem oposição explícita ou silenciosa ao pontificado de Francisco.
Preocupa-me essa polarização intraeclesial, que me parece não só perigosa pela sintonia de muitos tradicionalistas com a nova direita internacional, sacrificialista e mortífera, mas também marcada por equívocos teológicos e pastorais, com reduções metafísicas, sobrenaturalistas e políticas, de um lado, e reduções antropológicas, sociológicas e novamente políticas, pelo outro.
Um debate tão controverso leva-me inevitavelmente a refletir sobre as posições e as leituras teológicas que marcaram a minha vida e que poderiam pertencer a fases contraditórias e inconciliáveis, quando, pelo contrário, coexistem legitimamente não só na minha pobre biografia, mas também na fé professada pela Igreja.
Sem dar-me plenamente conta dos comentários daqueles que me definiam de católico conservador, estudei com interesse Von Balthasar, fundador da Communio – tomada da Comunhão e Libertação e Jaca Book -, teólogo preferido de São João Paulo II e amado por Bento XVI.
Lembro-me, há mais de quarenta anos, de ter lido o ensaio Mysterium Paschale. Nesse texto, von Balthasar define o relato evangélico da morte e ressurreição de Jesus como o testemunho do evento que é a norma normans de fé e reflexão teológica.
Com efeito, se ignorássemos a centralidade do Tríduo Pascal para a nossa fé, perderíamos a verdade da iniciativa de Jesus de tomar sobre si todo o pecado do mundo, cada pecado, cada violência da história, o sofrimento e a dor de cada geração, o abraço divino das vítimas e dos carrascos. A radicalidade da leitura balthasariana do Tríduo inclui a meditação do Sábado Santo: Cristo desce ao inferno e o esvazia, superando toda negação e negatividade - mesmo a mais imperdoável e escandalosamente desumana - com a glória amorosa da Cruz.
Von Balthasar foi, portanto, um teólogo extremamente importante em minha formação. Naquela época, compreendi vagamente a diferença entre a abordagem de Rahner e a de von Balthasar e escolhi por privilegiar o estudo da obra deste último, pois não havia sido seduzido pela elaboração de Rahner, que comportava o diálogo da reflexão teológica com uma muleta filosófica, em grande parte com o pensamento de Martin Heidegger, quase retomando a metodologia tomista de casar com Aristóteles, cuja fidelidade reiterada, mesmo em âmbito magisterial, sempre me pareceu enganosa, depois da crise da neoescolástica e do erro de confundir o logos bíblico com o ser parmenideo-platônico.
Ao contrário, a abordagem de von Balthasar renunciava à filosofia como suporte prioritário da teologia e dialogava com as artes e o misticismo.
Ampla e sinfônica é a lista dos autores com os quais se relaciona: os Padres da Igreja, os protestantes como Karl Barth e os judeus como Martin Buber, os músicos e os poetas, os romancistas e os teólogos: Paul Claudel, Charles Péguy, Georges Bernanos, Karl Ranher, Henri de Lubac, Erich Przywara e a insubstituível mística Adrienne von Speyr, colaboradora e protagonista da sua teologia.
A sua teologia responde, como toda a Tradição Católica, à clássica pergunta do Catecismo de todos os tempos: "Por que Jesus morreu?".
Na época do seminário, porém, li com profundo interesse as poesias e os textos de Pedro Casaldáliga, Helder Câmara, Leônidas Proaño, Carlos Mesters, Leonardo Boff e vi sólidas analogias com os testemunhos proféticos de Primo Mazzolari, Lorenzo Milani, David Maria Turoldo, Ernesto Balducci, Giorgio La Pira, Giuseppe Dossetti…
Ao chegar ao Brasil, o manual do Clodovis "Como trabalhar com o povo” foi a primeira leitura, enquanto começava a acompanhar a luta das famílias camponesas pela conquista da terra e da dignidade.
Ao longo do caminho, tornou-se inevitável questionar-me sobre o lugar periférico que a vida pública de Jesus ocupa na teologia de von Balthasar: nada mais é do que um prólogo, uma introdução profética ao que realmente importa: a Páscoa de Cristo. A vida pública é colocada entre parênteses, sem inspirar a imitação de Jesus, sem orientar o seguimento, para enfrentar, na sua companhia, os inimigos da vida de todos os tempos, mas na especificidade do nosso tempo.
Resumindo: deve haver uma vida antes do Sacrifício. E não pode faltar o testemunho das denúncias contra o Templo, o Palácio e o Mercado, a colocação dos pobres e dos excluídos em primeiro lugar: porque foi precisamente a prática e as palavras de Jesus que provocaram os poderes da época. Tudo isso vem antes do Martírio por amor. Ágape que perdoa porque "não sabem o que fazem" (Lc 23,34).
A Páscoa de Jesus, que é a vitória definitiva sobre o pecado e a morte, renova-se no testemunho martirial dos seus acólitos, aqueles que aceitam o seu convite para o seguir. Essa Páscoa repete-se na liturgia e na vida de cada tempo da história: “Fazei isto em memória de mim” (1 Cor 11, 24).
Assim, aqui no Maranhão, descobri o sentido libertador da humanidade de Deus, que nos torna evangelizadores da Páscoa, cúmplices da redenção e da libertação dos pequenos e dos pobres.
Assim - encontrando os povos e os pobres oprimidos, mas que sabem se insurgir em defesa da Vida - à clássica pergunta do Catecismo de todos os tempos 'por que Jesus morreu?', tive que acrescentar, guiado por José Comblin e Sandro Gallazzi, duas perguntas absolutamente necessárias e indispensáveis: 'Por que o mataram?' e 'Quem o matou?'.
Questionamentos inevitáveis face ao genocídio que continua hoje, na África, no Mediterrâneo, na Europa de Leste, na Abya Ayala, a nossa Grande Mãe. Perguntas inevitáveis diante da violência diabólica do capitalismo e da urgência de proclamar, de novo e apesar de tudo, a vitória de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado.
[1] Boff, Clodovis M., Adorno Leandro Rasera, A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação, Ecclesiae, Campinas, 2023
[2] 'pobrelogia', neologismo incorreto de Boff, que mistura latim e grego. Correto em português seria 'ptocologia', que também poderia ser um neologismo italiano.
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O Jesus periférico. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU