"Em certo sentido, a universalidade antropológica e a identidade religiosa estão entrelaçadas entre si, mas também geram ramificações impressionantes", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 30-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Comida e fé. Marino Niola e Elisabetta Moro propõem um manual de gastronomia sagrada com uma imensa representação de alimentos, ritos, usos e práticas.
Na edição de 12 de novembro de 1850 de uma revista literária alemã, em um artigo na realidade mais complexo, o filósofo Ludwig Feuerbach escreveu aquela frase que um tanto apressadamente se tornou uma espécie de estandarte materialista Der Mensch ist was er isst, “o homem é o que come”.
Fórmula de grande sucesso também porque no original alemão “é”, ist, e “come”, isst, são assonantes, frase que guarda uma verdade que vai além da fisiologia e entra na metafísica, na cultura e na própria espiritualidade. De fato, a comida em todas as religiões é um grande símbolo de comunhão entre Deus e as pessoas e destas entre si. Não é verdade que nascimentos, casamentos e aniversários são celebrados com banquetes festivos? Solenidades, recepções, conferências terminam a jantares de gala, assim como se consomem almoços de trabalho, e em alguns povos até o luto é acompanhado por refeições fúnebres (em alguns das nossas regiões existe o “consòlo”).
A secularização muitas vezes despojou os alimentos dos sinais religiosos, substituindo-os pela nova liturgia dos masterchefs. No entanto, é indiscutível que um aspecto simbólico permaneceu mesmo no corre-corre dos jovens nos fast foods. Nas igrejas católicas todos os dias ou pelo menos todos os domingos é preparada uma mesa com toalha, pão, vinho e água para aquele rito fundamental que é a Eucaristia (ou Missa), em que Cristo e os fiéis estão em "comunhão". Bem, sob o título talvez um pouco frívolo, mas bem fundamentado Mangiare come Dio comanda (Comer como Deus manda), um de nossos antropólogos culturais mais conhecidos, Marino Niola, ao lado de outra importante colega, Elisabetta Moro, ambos da Universidade de Nápoles Suor Orsola Benincasa, prepararam um sugestivo manual de gastronomia sagrada.
É difícil delinear o conteúdo porque transborda de cada página com uma imensa representação de pratos, ritos, tradições, práticas, confiadas a uma narrativa que muitas vezes abre horizontes inesperados, capazes de prender a atenção do leitor que desconhece tamanha abundância. Aquilo que os dois estudiosos – que cavam nesse impressionante depósito cultural-espiritual – afirmam para a rica “mesa de Moisés”, ou seja, para a sacralidade culinária judaica, vale para todas as religiões: os preceitos gastronômicos "constituem uma forma de religiosidade que não é feita apenas de incorpóreos mistérios teológicos e vertiginosas alturas metafísicas, mas também de comportamentos concretos, cerimônias caseiras, gestos transmitidos sempre da mesma forma, para não dispersar aquela parte da identidade coletiva que está entrelaçada de vida cotidiana".
Em certo sentido, a universalidade antropológica e a identidade religiosa estão entrelaçadas entre si, mas também geram ramificações impressionantes. É por isso que a “história” de Moro e Niola – que para nós poderia partir do fruto de um vegetal bíblico arquetípico que não existe na taxonomia botânica, “a árvore do conhecimento do bem e do mal” – move os seus passos da dieta mediterrânea teológica (aliás, “dieta” vem do grego diaita, “forma de vida”). Nela não entram na mesa apenas pão e vinho, mas também se derrama o óleo, se é verdade que "messias" (do hebraico mashiah) e Cristo (do grego Christós) significam simplesmente “o ungido” com o óleo sagrado da consagração.
Depois, porém, se vai além do cristianismo onívoro e do judaísmo seletivo - que se distinguem claramente sobre a "pureza" ou não dos regimes alimentares - e para a "cozinha do mito" é convocada uma tríade religiosa grandiosa e maciça com menus sacrais diferenciadíssimos, marcada também por reticências e abstinências muito mais antigas e nobres do que a rígida prática vegetariana.
Eis, portanto, "o dilema hindu" entre carne e reencarnação. Renunciar à alimentação animal é para aqueles fiéis um ato catártico da alma; mesmo assim a normativa gastronômica sagrada indiana é vasta, a ponto de o cozinheiro ideal ser o brâmane, o sacerdote. Da mesma forma, o Islã, na esteira da kashrût judaica, estabelece uma linha nítida de demarcação entre o alimento halal, admitido, e haram, impuro: e não é só carne de porco, mas uma longa lista de outros animais, enquanto mais complicada é a questão do vinho que não vem só de uvas, mas também de tâmaras, mel, trigo e cevada.
Por fim, a trilogia das religiões relutantes sobre a alimentação encerra-se com a "trindade da abstinência", Buda, o deus Jina (janaismo) e Gandhi. No entanto, essa abstinência sagrada de comida está entrelaçada com sua canonização em muitas outras religiões: basta pensar no jejum cristão, no Ramadã e em um amplo campo de proibições. Só para exemplificar, como não lembrar a cláusula judaica que atribui um disco verde apenas aos animais ruminantes com casco bífido (vaca, bezerro, ovelha), mas proíbe o porco de casco fendido que não é ruminante e o camelo ruminante mas sem casco fendido?
O idioma da alimentação sagrada é, portanto, difícil de organizar em gramáticas comuns apesar de certos resultados comerciais que abrangem diferentes religiões. Só para oferecer um dado presente no livro: hoje os alimentos kosher, ou seja, puros para os judeus, ocupam uma lista que beira os duzentos mil itens e chegam às mesas dos goyîm, os outros povos. Neste ponto devemos abrir outro vasto capítulo: aquele moral, com o vício capital da gula, descendo ao terceiro círculo infernal dantesco, mas também nos reportando ao impressionante desperdício alimentar atual e à fome no mundo. Resumindo, não existe apenas A festa de Babette, mas também A Comilança de Ferreri.
Mangiare come Dio comanda, de Elisabetta Moro e Marino Niola (EINAUDI, 2023).