28 Março 2018
“Estavam tomando a ceia” (Jo 13,2)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho da Quinta-Feira Santa - Ciclo B (29/03/2018) que corresponde ao texto bíblico de João 13,1-15.
Essa foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Para Ele, a mesa era para ser compartilhada com todos; a partilha do pão com publicanos e pecadores fazia parte das práticas transgressoras de Jesus.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a separação...
Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, o encontro, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Da “mesa eucarística” à “mesa cotidiana”: este é o movimento de vida, inspirado por Jesus.
A pedagogia de Jesus incluiu a “espiritualidade da mesa”. Ele, antes de fundar uma igreja, fundou a “co-mensalidade”. Ao reunir os seus discípulos para o encontro junto à mesa, Ele revelou o verdadeiro simbolismo deste simples móvel: a lição fundamental da comunhão, como fonte inesgotável de vida. A comunhão que faz sonhar com a mesa eterna no Reino e desafia seus comensais a viver encontros solidários, como hábito e dinâmica que preserva e promove a vida. Do encontro junto à mesa ao encontro com os mais excluídos: este deve ser o movimento inspirador de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
A espiritualidade da mesa não pode ser apreendida e mercantilizada por ninguém, pois ela é puro dom da refeição – onde dois ou mais estiverem reunidos por causa do alimento-mesa-ser humano, um novo mundo poderá ser descortinado, revelado. A benção à mesa instaura o horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à necessidade de todos por meio da co-responsabilidade dos participantes, fazendo memória do banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão e vinho em abundância para todos.
A comunhão bíblica se realiza entre os “distantes e os diferentes”, por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem... “Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles”. (Atos. 4,32).
Preparar a mesa e fazer a refeição é todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e, por meio dos alimentos, garantem nossa vida.
Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai (Lc. 14,15-24; Mt. 21,1-10).
Quando o Criador tirou do húmus o homem e a mulher, Ele pôs, com seu hálito, no coração deles, o desejo do encontro de um com o outro. Esse desejo foi crescendo e configurando-se sob formas sociais diversas, segundo cada cultura e crença.
Surgiram refeições comuns, mesas de comensais, mesas festivas.... Para esse centro converge o ser humano em busca do alimento, renovar suas energias, tomar novo impulso... descobrir-se humano.
É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão; a partir desse ato sagrado, podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).
A mesa é um sinal de encontro e comunhão; ao mesmo tempo que sinaliza, ela realiza aquilo que sinaliza, ou seja, a inter-comum-união. A missão da mesa é criar comunhão intra-pessoal (eu comigo mesmo), inter-pessoal (eu-outro) e trans-pessoal (eu-Deus).
Ela não é agente passivo, mas construtora de novas possibilidades de vida. Aliás, ela existe enquanto lugar de refeição por causa do ser humano que a modelou.
A refeição em torno da mesa representa um ato comunitário e reforça nos participantes os laços de humanidade, de compaixão, de mútua confiança e de comunhão. Por toda esta carga de simbolismos, a mesa não pode ser posta de qualquer maneira; a sala que ostenta a mesa deve ser um local aconchegante e íntimo, para realizar o milagre do encontro. Ela passa a ser um “altar” que deve ser preparado e ornado com carinho, para ser digno de realizar a sua missão sagrada, pois sagrados são aqueles que dele se aproximam, se apoiam e se reclinam sobre seus dons.
Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente.
Mas é também descobrir um outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, no encontro gratuito com o outro.
Nela e com ela aprendemos a acolher o outro como dom. Aprendemos a nos doar, a partilhar, a receber, a escutar e a falar, a contemplar o outro em sua singularidade. A mesa é também o lugar onde acolhemos as alegrias e as tristezas do outro, com quem partilhamos nossa refeição. A mesa-refeição, portanto, é o lugar do suporte das relações, espaço que garante o sustento, que alimenta o corpo, o emocional, o psíquico, o espiritual e o social. Esse lugar humano é revelador de cultura, do inconsciente individual e coletivo.
Lugar fecundo, onde o imprevisível pode acontecer.
A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão.
É nesse universo de mesa-refeição que o ser humano vai se auto-construindo, auto-definindo como ser que é humano, mas também divino. Diviniza-se humanizando, humaniza-se divinizando.
O simples gesto de passar ao outro o que ele precisa é um gesto despojado de poder, de segundas intenções. Quando alguém passa um prato ou um pedaço de pão ao companheiro, está passando mais do que isso: consome em comum a mesma sorte. “Servir” é o nome do gesto fundamental de estar à mesa. Há necessidades atendidas, o cuidado amoroso perpassa as relações; busca-se o necessário revigoramento físico para a continuidade do caminho, e esforço no trabalho, a preservação da saúde...
O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, de opções. A lição da misericórdia é a única que ganha validade e sentido.
A espiritualidade da mesa exala gratidão aos que dela se aventuram em assentar-se. Com isso ela nos interpela a vivermos uma espiritualidade do encontro e do serviço de uns para com os outros. Esta é a prova da autenticidade do verdadeiro seguimento de Jesus. Este é o sentido verdadeiro de toda Eucaristia.
A mesa eucarística se prolonga e se visibiliza na mesa-família.
Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro
em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Rever o sentido e o lugar da mesa-refeição no seu ambiente familiar: é lugar facilitador de partilha e convivência?
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Mesa: lugar da solidariedade e do encontro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU