22 Fevereiro 2012
A função primaz do homem e a sua natureza íntima diferente não excluem uma solidariedade sua com as outras criaturas vivas, até porque – como canta o Salmista – "o Senhor é bom para com todos, compassivo com todas as suas criaturas (...) tu salvas homens e animais, Senhor".
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 12-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
O Fermoposta [espaço do leitor do jornal Il Sole 24 Ore] do domingo 29 de janeiro sobre a matança de animais para fins comestíveis gerou um enxame de reações díspares, ora pacatas, ora excitadas. E justamente porque – como escrevi então – a questão é bem mais complexa do que imaginam os animalistas extremos ou os "humanistas" radicais, decidimos voltar sobre o assunto de um modo mais geral, embora não exaustivo, naturalmente segundo a perspectiva cultural cristã.
Esta última, de fato, elaborou uma concepção da natureza própria, original em comparação às outras civilizações e, por séculos, dominante no Ocidente. Ela poderia ser resumida em duas asserções principais.
De um lado, a tradição judaico-cristã demitologizou a natureza que não é, por isso, nem uma divindade, nem fruto de uma geração divina (como acontecia nas cosmogonias orientais e no próprio panteísmo estoico ou indiano), mas é o resultado de um ato criador e, portanto, é uma realidade finita e limitada.
De outro lado, embora reconhecendo uma ligação entre homens e animais ao longo da vida (rûah ou "espírito" vital), ela afirmou uma clara distinção qualitativa entre os dois, através da introdução de um status humano particular, variavelmente descrito em algumas passagens do Gênesis: pense-se no simbolismo da "imagem e semelhança divina" (1, 27), na dotação da consciência moral no "conhecimento do bem e do mal" (capítulos 2-3) e na função de "governo" delegado, de "nomeação" e de "custódia e cultivo" da criação por parte do homem e da mulher (1, 26 e 2, 15-20).
A aceitação da teoria científica da evolução biológica não é incompatível com a afirmação teológica e metafísica da especificidade humana, variavelmente enunciada (alma, espiritualidade, simbolismo, estética e assim por diante).
Nessa perspectiva, não se contesta o uso nutritivo das carnes animais, seja embora com vínculos de corte higiênico-folclórico-sacral (por exemplo, as normas de pureza ritual que excluem alguns animais de serem comestíveis, normas superadas, porém, pelo cristianismo, como aparece na visão de São Pedro descrita no capítulo 10 dos Atos dos Apóstolos). Lapidar é o preceito posterior ao dilúvio: "Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês, como os vegetais" (Gênesis 9, 3). O próprio Jesus se alimenta de peixe e até os cozinha para seus discípulos, assim como está implícito que ele consumiu o cordeiro pascal.
Tudo isso, no entanto, não impede que sejamos conscientes do pecado do homem quando prevarica sobre a criação de modo tirânico e devastador. Assim, surgiu um movimento ambientalista e animalista (às vezes estritamente vegetariano) cristão que pretendeu reevocar a meta ideal à qual a própria Bíblia queria conduzir a humanidade e que é retratada, por exemplo, pelo profeta Isaías com sete pares de seres vivos, animais e humanos que coexistem em perfeita paridade e harmonia (11, 6-8). Nessa criação perfeita e "escatológica" – na qual os animais também estão envolvidos – a dieta será necessariamente vegetariana: "Vejam! Eu entrego a vocês todas as ervas que produzem semente e estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão semente: tudo isso será alimento para vocês" (Gênesis 1, 29).
Com uma renovada sensibilidade cósmica, diminuída na história do cristianismo a partir da influência do espiritualismo grego, contribuiu a figura de São Francisco, mesmo que a sua visão não era tanto ecológica, mas claramente teológica, como é atestado pelo seu Cântico das Criaturas: alheio a uma concepção panteísta, ele considera o criado como dom de Deus, como sinal de beleza transcendente, como símbolo que leva ao Criador, no rastro do que se lê no livro bíblico da Sabedoria: "A grandeza e a beleza das criaturas fazem, por comparação, contemplar o Autor delas" (13, 5). Essa ecologia cristã surge ao redor dos anos 1970 no âmbito protestante (em particular, com o teólogo norte-americano Joseph Sittler e com o Faith-Man-Nature Group do Conselho das Igrejas Protestantes dos Estados Unidos).
Bem logo, o mundo católico também se associa a ela, e, entre as tantas passagens dos textos magisteriais oficiais de João Paulo II e de Bento XVI sobre o assunto, lembramos especialmente a mensagem do dia 1º de janeiro de 1990 do Papa Wojtyla Paz com Deus Criador, paz com toda a criação, em que se denuncia a crise ecológica como uma questão moral, evocando uma nova solidariedade do ser humano com as outras criaturas e o criado.
Enquanto isso, no entanto, estavam se afirmando também concepções ambientalistas e animalistas radicais, que se alimentavam de religiões e filosofias orientais de marca imanentista e reencarnacionista. Tratava-se de configurações muitas vezes sincréticas de resultados dos mais díspares: para dar um exemplo já famoso, pense-se no livro O Tao da Física (Ed. Cultrix) do físico nuclear Fritjof Capra, que buscava conciliar a física teórica com o misticismo oriental. Ou a também conhecida e vasta obra Libertação Animal (Ed. Lugano), do filósofo australiano Peter Singer, inclinado a conferir ao mundo animal uma superioridade com relação ao humano.
Nos Estados Unidos, também sob o impulso da reavaliação do pensamento dos índios aborígenes para os quais todas as formas de vida são iguais e pertencem a uma única comunidade, registrou-se um grande sucesso (agora, porém, em crise) do movimento New Age que, dentre outras coisas, propunha uma ecologia "holística" de marca panespiritualista.
Nessa linha, se ultrapassava, mesmo em âmbito cristão, a perspectiva acima descrita e se adotavam definições e descrições antropomórficas para os animais: estes também, por exemplo, teriam uma consciência ética, perceberiam o transcendente e rezariam (veja-se Michel Damien, Un paradiso per gli animali. L'animale, l'uomo e Dio [Um paraíso para os animais. O animal, o homem e Deus”, Ed. Piemme, 1987).
Um capítulo à parte é o do sofrimento dos animais, definido um pouco enfaticamente como "um mistério ainda maior do que a dor humana" pela Teologia degli animali de Paolo De Benedetti (Ed. Morcelliana, 2007).
O que é certo é que a sensibilização sobre esse último tema é significativa e gerou, por exemplo, a "Declaração Universal dos Direitos dos Animais" da Unesco (1978), assim como abriu as portas, em Münster, há algum tempo, para o Institut für theologische Zoologie, uma instituição católica e ecumênica anexa à Faculdade de Teologia e Filosofia local. Contrasta-se, assim, justamente toda brutalidade e toda prevaricação contra criaturas vivas.
A solidão no anonimato das metrópoles modernas, além disso, gerou relações de compartilhamento familiar e de afeto com animais domésticos, modelados sobre dinâmicas que intercorrem entre seres humanos, a tal ponto de às vezes tornarem cães ou gatos como beneficiários de testamentos. Victor Hugo escrevia: "A quem está sozinho, Deus dá a um cão. O cão é a virtude que, não podendo se tornar homem, tornou-se animal". Até ao Lázaro miserável da parábola evangélica do rico opulento "eram os cães que vinham lamber-lhe as feridas".
Dito isso, pode-se, porém, chegar ao excesso oposto, para o qual as pessoas humanas, últimas e deserdadas, pequenas, frágeis e famintas, são menos consideradas e protegidas nas sociedades ricas e ocidentais do que os animais. Assim como também são paradoxais algumas novas atitudes culturais: uma estatística recente demonstrava que somente 40% dos alemães acreditam em Deus, mas 80% estão convencidos de que os seus cães e gatos têm uma alma!
No entanto, é curioso notar que a Bíblia – embora clara nas suas distinções de espécie e gênero entre seres humanos e animais – é talvez o texto sagrado mais repleto de um extraordinário bestiário, que vai do mastodôntico camelo até ao caruncho escondido na madeira e à pulga, e que ascende ao simbolismo espiritual mais alto com o cordeiro, emblema do próprio Cristo ou com a pomba que encarna o Espírito Santo, mas que desce até aos monstros apocalípticos e à serpente tentadora.
A função primaz do homem e a sua natureza íntima diferente não excluem uma solidariedade sua com as outras criaturas vivas, até porque – como canta o Salmista – "o Senhor é bom para com todos, compassivo com todas as suas criaturas (...) tu salvas homens e animais, Senhor" (145, 9; 36, 7).
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O dilema do onívoro. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU