16 Novembro 2010
Em 2007, o estudante de biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Róber Bachinski entrou com uma liminar que o liberava de dissecar e sacrificar animais nas aulas práticas do curso de Ciências Biológicas. A justiça garantiu ao aluno o direito de continuar fiel às suas convicções sem que fosse reprovado por não participar dos sacríficios. A atitude de Róber gerou diversas discussões e inúmeras ONG’s em prol dos animais o apoiaram nesta decisão. A universidade recorreu à decisão de Róber e, três anos depois, a Justiça decidiu, na semana passada, por unanimidade, a sentença de primeiro grau, tornando obrigatória a participação do estudante nos trabalhos do curso de biologia.
A IHU On-Line, que acompanhou todo o caso, entrevistou Róber, por email, que hoje vive no Rio de Janeiro, sobre a decisão. “Muitas vezes pensei em desistir da Biologia e buscar melhorar essa discussão através da Filosofia. Porém sempre quis fazer biologia e não acho justo alguém desistir de uma vontade por imposição de uma ideia, como pensam os juízes da 2ª Instância. A escolha de um curso e de uma carreira vai além das práticas dessa carreira, até mesmo na modificação dela, e todo aluno tem o direito de questionar a validade ética e metodológica do conhecimento passado na academia”, apontou.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Soubemos que a UFRGS ganhou o processo e que você terá que participar das aulas normalmente. Como transcorreu o processo?
Róber Bachinski – A UFRGS recorreu à 2ª Instância sobre o ganho de causa conseguido de objeção de consciência na Vara Ambiental (1ª Instância). Nós já esperávamos os votos contra a objeção de consciência na 2ª Instância, pois eles já tinham caçado a liminar também ganha na Vara Ambiental. Na prática, para o meu caso, isso pouco interfere, pois as aulas com outros métodos foram realizadas enquanto estava em vigor a decisão liminar, sendo que o que ocorreu nesse período teve caráter permanente. Então não precisarei voltar à faculdade para as práticas. Além do mais, terminei a faculdade de Ciências Biológicas na UFRGS no final do ano passado e já estou seguindo meus estudos na área de métodos alternativos ao uso de animais, tanto na investigação científica quanto na educação. Porém, recorreremos da decisão para instâncias superiores, pois sabemos que devemos levantar esse debate (sobre o direito à objeção de consciência dos alunos e o uso de animais na ciência) e esperamos abrir mais um precedente para que outros estudantes não se sintam constrangidos a fazer aulas práticas que firam seus interesses éticos e que não sejam obrigados a abandonar suas carreiras.
IHU On-Line – Você sofreu algum tipo de represália ou preconceito por parte da universidade ou colegas de curso?
Róber Bachinski – Paulo Freire, no livro Pedagogia do Oprimido, coloca que em uma instituição há dois tipos de opressão: a opressão por parte do opressor que deseja manter a hierarquia e a opressão por parte dos outros oprimidos que temem uma mudança de estado e uma represália geral por parte do opressor. Ambos os casos ocorreram na UFRGS. Professores se pronunciaram a meu respeito em eventos, algumas trocas de e-mails e nas salas de aula com interesse de me desqualificar, sem analisarem realmente os motivos que me levaram a ingressar com o processo. Muitos colegas, como se é esperado, aceitaram as opiniões dos professores e se colocaram contra a minha postura, sem demonstrarem uma postura crítica de questionar as bases do nosso ensino.
Um dos professores, cuja obrigatoriedade do uso de animais nas suas classes me fez ingressar com o pedido judicial, fez declarações escritas em murais dizendo que as minhas atitudes partiam de “crenças do tipo criacionismo científico e imposição de ideias obscurantistas e político-religiosas”. Muitos professores utilizavam como tentativa de desqualificação me colocar como sectarista religioso e anticienticista, desviando o foco da discussão das bases da ciência hegemônica, no qual todos esses que me ofendiam foram criados e se nutriam em seus laboratórios, para uma figura que eles tentaram montar que não deveria estar na faculdade. Na realidade, a intenção deles era proteger o paradigma científico que eles dominam, com medo de não saber como fazer ciência em um modelo sem o uso de animais. Escrevo sobre essa mudança de paradigma e imposição de ideais na academia, nos cadernos IHU ideias, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos, disponível na internet.
IHU On-Line – Você tem ideia de quantos animais vivos são usados, por semestre ou por ano, nas universidades?
Róber Bachinski – No Brasil nós não temos esses dados. Porém, Regan (Jaulas Vazias) diz que nos EUA, os estudantes relativos ao Ensino Médio e do Ensino Superior brasileiro dissecam anualmente mais de seis milhões de animais. O Quinto Relatório de Estatística Sobre o Uso de Animais na ciência na União Europeia, liberado em 2007, afirma que em 2005, nos países membros da EU, foram utilizados 12,1 milhões de animais em todas as esferas científicas (pesquisa e ensino), sendo desses 53% camundongos e 19% ratos. O Ensino contribui com 1,6% do uso total de animais nesses países. É uma porcentagem baixa, mas, em números absolutos, é uma contribuição de mais de 193 mil animais. Além disso, devemos considerar que a maioria das instituições europeias não utiliza animais no ensino, como na Inglaterra, Alemanha e Áustria.
IHU On-Line – Você considerou abandonar o curso de Biologia ou trocar de universidade?
Róber Bachinski – Muitas vezes pensei em desistir da Biologia e buscar melhorar essa discussão através da Filosofia. Porém, sempre quis fazer biologia e não acho justo alguém desistir de uma vontade por imposição de uma ideia, como pensam os juízes da 2ª Instância. A escolha de um curso e de uma carreira vai além das práticas dessa carreira, até mesmo na modificação dela, e todo aluno tem o direito de questionar a validade ética e metodológica do conhecimento passado na academia.
IHU On-Line – Aqui no Brasil há alguma universidade que já optou por não usar animais vivos em aula?
Róber Bachinski – Sim. A Faculdade de Medicina da UFRGS não utiliza animais no ensino desde 2007, mesmo para as disciplinas básicas de Fisiologia e Bioquímica. A Faculdade de Medicina do ABC Paulista, em 2008, decidiu abolir as aulas com animais. Além disso, muitas universidades não utilizam animais e não divulgam isso oficialmente. Sabemos apenas através dos estudantes que em seus cursos não utilizam animais.
IHU On-Line – Por que ainda protegem tanto a vivissecção?
Róber Bachinski – É o paradigma científico vigente, no qual a maioria dos profissionais foi formada e eles resistem à mudança por que essa é a sua instituição. No momento em que o paradigma da vivissecção for quebrado, muitos cientistas verão seus currículos quebrarem juntos. Como diz Grün (1994), “parte dos cientistas de hoje é, tal como diz a metáfora de Descartes, um exército de artesãos trabalhando loucamente para manter um edifício velho, esmigalhando-se, com alguma aparência de estar sendo reparado”.
IHU On-Line – Você pretende recorrer à decisão da justiça?
Róber Bachinski – Sim, recorreremos, pois há muitos estudantes que necessitam da objeção de consciência para não desistirem dos seus cursos. Há outras tantas pessoas que me escrevem dizendo que desistiram da graduação em Biologia, Enfermagem, Veterinária, Medicina, Farmácia, etc, por que nesses cursos exigiam o uso de animais. Assim necessitamos levantar essa discussão no judiciário e conquistar o direito de formar pessoas foram do paradigma vivisseccionista.
IHU On-Line – Nesse período depois que você requereu o direito de não participar de aulas que sacrificavam animais, o que mudou?
Róber Bachinski – No período logo após ter ganhado a liminar houve um movimento muito forte contra o meu processo. Os professores diziam que eu não deveria ter escolhido Biologia (esse também foi o parecer da UFRGS contra a minha objeção de consciência), instigavam os colegas contra o meu processo e a maioria julgava que processei a UFRGS para chamar atenção. Em nenhum momento pensei em chamar a atenção para mim, tampouco pensei que daria tanta repercussão. Apenas quis levantar um debate que não tinha espaço na “academia”. Embora houvesse muita ação negativa, depois de alguns meses, as pessoas começaram a me respeitar mais, pois mantive meu posicionamento, comecei uma pesquisa sobre métodos alternativos ao uso de animais, inédito na UFRGS.
Consegui apoio de uma professora da Educação em Ciências, Nádia de Souza, a quem sou muito grato. Comecei a auxiliar outros alunos e a buscar mais alternativas. Fiz meu estágio de Curso no Departamento de Farmacologia e Toxicologia do INCQS/Fiocruz, com métodos alternativos ao uso de animais. E meu Trabalho de Conclusão de Curso - TCC também em métodos alternativos para aulas de bioquímica e técnicas histológicas. Hoje algumas pessoas me dizem que fui corajoso e que fiz bem levantar a discussão. Porém, na época, poucos me incentivaram dentro da UFRGS e ninguém teve coragem de me apoiar abertamente. Isso mostra ainda que a opressão na universidade beira à época da ditadura militar.
IHU On-Line – Algum professor defendeu o seu direito de não sacrificar animais?
Róber Bachinski – A professora Nádia de Souza me apoiou assumindo o meu projeto “Estratégias Substitutivas ao Uso de Animais no Ensino e Pesquisa” e me auxiliando na pesquisa. Conseguimos criar um foco, embora pequeno, sobre esse assunto na UFRGS. Em 2009, fizemos o I Seminário sobre Estratégias Substitutivas, com o apoio do PPG Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde, com vários convidados de diversas áreas falando sobre ética animal, educação, direito, métodos em bioquímica, técnicas anatômicas, etc. Foi muito interessante. Outros professores me escreveram em particular elogiando a minha atitude, porém não se manifestaram publicamente.
IHU On-Line – Que novas perspectivas podemos ter em relação ao direito dos animais no Brasil? De que forma a Lei Arouca pode evoluir?
Róber Bachinski – A Lei 11794/08 (baseada no Projeto de Lei do Senador Sérgio Arouca) não traz muitas novidades práticas sobre o uso de animais na ciência. Ela basicamente segue os mesmos preceitos já estabelecidos pela lei 6.638/79, que foi revogada. O que devemos aproveitar da Lei Arouca é o Inciso 3, do parágrafo 14º: “Sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser fotografadas, filmadas ou gravadas, de forma a permitir sua reprodução para ilustração de práticas futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com animais.”. Todas as práticas de fisiologia, por exemplo, podem ser reproduzidas através de vídeos, sem comprometer a aprendizagem dos alunos. A falha dessa Lei, muito apoiada pelos pesquisadores e sociedades científicas interessadas na vivissecção, é que não impõe prazo final para experimentos com animais e nem estipula verbas para apoio a pesquisas sem animais. Isso faz com que as pesquisas em métodos alternativos continuem, no Brasil, totalmente desconsideradas dos editais de financiamento.
IHU On-Line – Você pode nos falar sobre como podemos relacionar a Filosofia da moral ao direito dos animais?
Róber Bachinski – As teorias mais completas funcionam como guarda-chuvas para outras teorias. Acredito que Peter Singer foi o que melhor conseguiu incorporar os animais na esfera moral, quando desenvolveu o "argumento da igual consideração de interesses". No livro Ética Prática ele trata de diversos assuntos apenas utilizando o argumento da igual consideração de interesses e os conflitos de interesses gerados entre indivíduos. No caso do aborto, por exemplo, devemos analisar se o feto possui interesses, com qual tempo de gestação surge os interesses (por exemplo, interesse em não sentir dor ou o próprio interesse de viver) e analisar o conflito de interesse entre o feto e a mãe ou a sociedade. A divisão de renda também envolve um conflito de interesse, entre aqueles que possuem mais e os que possuem menos. Todas as nossas ações, direta ou indiretamente envolvem conflitos que deveriam ser “matematizados” para a realização de uma ação lógica, privilegiando os interesses mais básicos. Podemos analisar, por exemplo, o interesse de um humano em comer carne e o interesse de um animal em não ser preso e sofrer (física e psicologicamente) para a produção de carne. Por lógica, o humano tem obrigação de proteger o interesse básico do animal em não ser preso e tratado como máquina para um interesse de um humano sentir o gosto de um churrasco. No caso das experiências, a discussão gira em torno do interesse dos animais em não serem utilizados em experimentos (com todas as ações que isso envolve, como ser obrigados a nascer, crescer em biotérios e serem objetos de experimentação) e o interesse dos humanos em terem suas vidas melhoradas, mas isso não necessariamente é verdade.
Há diversas críticas metodológicas às pesquisas com animais. O uso de animais não necessariamente contribui para o conhecimento da fisiologia humana e não prediz os efeitos sobre a saúde humana. A organização Americans For Medical Advancement, por exemplo, trabalha para incentivar outros métodos de pesquisas não baseadas em animais. É uma organização montada pelo Dr. Ray Greek, que possui vários livros e artigos mostrando, metodologicamente, por que as pesquisas com animais não são cientificamente sustentáveis. O conflito de interesse envolvido no caso da ciência é outro e, acredito, muito menos altruísta: são os interesses dos animais (os mesmos interesses básicos de liberdade, não sofrimento, conviver no meio ambiente próprio, que nós, humanos, também possuímos) contra os interesses da indústria farmacêutica em liberar novas drogas com patentes garantidas, de pesquisadores financiados por essas indústrias e da manutenção dos currículos e nomes desses pesquisadores.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O sacrifício de animais e o ensino da biologia. Entrevista especial com Róber Bachinski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU