02 Abril 2021
O fiel que come um bife na Quaresma enquanto lê o tablet pode ser repreendido por um imaginário confessor não por aquilo que está espetando no garfo, mas por aquilo que está virtualmente folheando.
O comentário é de Claudio Ferlan, historiador italiano e pesquisador do Instituto Histórico Ítalo-Germânico da Fundação Bruno Kessler, em Trento, Itália. Em português, é autor de “Os jesuítas” (Ed. Loyola, 2018).
O artigo foi publicado por Domani, 01-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sabemos bem disto: não poderemos compartilhar restaurantes lotados no almoço de Páscoa, mas isso não diminui o interesse por aquilo que colocamos nos nossos pratos.
Para eventos tradicionais como o do domingo mais importante do calendário católico, tal interesse provavelmente está mais ligado à tradição do que à imaginação. Faz sentido falar de tradição no panorama gastronômico italiano? Façamo-lo, mas não sem antes fornecer uma pequena nota de esclarecimento.
Pellegrino Artusi, na virada dos séculos XIX e XX, nos ensinou isto; Massimo Montanari reiterou isto com eficácia em diversos dos seus estudos: a cozinha italiana se caracteriza pela variedade, pela liberdade dos sabores, pela experimentação.
Dando uma olhada nos hábitos pascais regionais, confirma-se a complexidade: focaccia, agnolotti, risotos e crepes, aspargos, capretti, tortas salgadas e doces, macarrão, saladas, sopas, queijos, salames, alcachofras, tortas, massas. Em cada campanário, a própria sequência de pratos, sugerida ou imposta pelos hábitos, pela territorialidade e pela sazonalidade. Uma riqueza que nos aproxima do infinito.
O que mantém unida tanta variedade, apenas sugerida na lista que acabamos de compilar, são, por um lado, quatro elementos difundidos em quase todos os cantos da Bota (caldo, ovos, cordeiro, colomba); por outro, uma ausência: por toda a parte, falta o peixe.
Comecemos com quem está.
O simbolismo ligado à morte e ressurreição de Jesus caracteriza fortemente as mesas italianas, cristãs católicas durante séculos e muito mais do que outras. Os ovos são um símbolo da ressurreição: eles se assemelham à pedra, material desprovida vida por antonomásia, a ponto de torná-la a porta fechada do sepulcro de Jesus. Mas, assim como aquela porta se abre milagrosamente, assim também surge a vida do ovo.
O cordeiro, inocente sacrifício, é uma imagem evangélica muito presente, enquanto a pomba [colomba] significa paz. O caldo, mais prosaicamente, vai bem com a abundância de carne.
Continuemos com quem não está.
Durante séculos, a Quaresma, tempo anterior à Páscoa, caracterizou a vida do fiel com as obrigações do jejum e da abstinência; o primeiro, renúncia a todo alimento por um período determinado; a segunda, eliminação da dieta de alimentos específicos e normalmente gulosos ou substanciais.
Foi precisamente a abstinência que marcou o triunfo gastronómico do peixe: ainda nas comunidades cristãs do primeiro século, está testemunhada o costume de evitar o consumo de carne durante o tempo dedicado à penitência.
Por que a carne? Comida tentadora: pensava-se que ela ajudava a despertar os apetites sexuais; comida nutritiva: a contrição exigia renunciar a algo substancial; comida problemática: para comê-la, é preciso matar.
No início, até o peixe era proibido, mas as coisas logo mudaram e abriram espaço para a imaginação na cozinha. Em suma, enchemo-nos de peixe na Quaresma e, na Páscoa, finalmente podemos dar rédea solta aos desejos carnívoros.
A Páscoa está prestes a chegar, ainda estamos no tempo do peixe, então tentemos aprofundar contando algumas histórias.
Foi o naufrágio do mercador veneziano Pietro Querini (?-1448) que trouxe a merluza para as margens do Mediterrâneo. Em viagem pelos mares do Norte para negócios mercantis, o navio capitaneado por Querini foi surpreendido por uma tempestade na altura do Canal da Mancha. Alguns náufragos desembarcaram (4 de janeiro de 1432) na gélida ilha de Rost, no arquipélago de Lofoten.
Enquanto os sobreviventes da tripulação demonstraram estar muito interessados na população feminina do rochedo, lendo o diário de Querini percebe-se que ele, em vez disso, se concentrou na descoberta da merluza, das suas técnicas de conservação (secagem/peixe seco e salga/bacalhau), das suas capacidades nutricionais e potencialidades comerciais.
Ele então decidiu colocá-lo no mercado após o seu retorno a Veneza. Teve uma grande sorte, e um novo protagonista começou a aparecer nas mesas magras da Europa católica.
Naqueles mesmos anos, os ingleses (ainda não haviam se separado da Igreja de Roma e das suas regras alimentares) celebravam o arenque, um peixe cheio de qualidades: abundante e fácil de pescar à luz do consumado hábito de chegar às costas em enormes cardumes, com periodicidade previsível e pontual, simples de salgar, secar, depositar, comprar a um bom preço.
Eles o chamavam de King Herring, e cerimônias simbólicas previam a sua ascensão ao trono na Quarta-Feira de Cinzas e a sua deposição no Domingo de Páscoa.
Tudo muito bom nesse peixe, tudo muito interessante... mas, mesmo assim, uma limitação às possibilidades de escolha; mas limitação para quem?
O jejum e a abstinência católicos eram muitas vezes vistos pelos pobres como um luxo dos ricos, que nem se davam conta de que renunciavam à carne e aos temperos gordurosos, porque podiam substituí-los por pratos refinados à base de peixe, com doces de todos os tipos, regados com garrafas de ótimo vinho.
O vinho, de fato, aparecia entre as proibições quaresmais apenas nas dietas mais extremas por duas razões fundamentais: era uma bebida sagrada para o cristão; o saber médico coincidindo com a tradição escriturística, que remonta a São Paulo, o considerava saudável e indispensável.
Os mais pobres certamente não nadavam na abundância de opções. Testemunhos do Reino de Nápoles no início do século XIX falam de camponeses que se aproximavam de bons bifes de ovinos e suínos, sobretudo em raras ocasiões: Páscoa e Natal, batismos e casamentos, carnaval.
Outra oportunidade de abundância estava no tempo da colheita, quando os abonados ofereciam fartas refeições aos trabalhadores contratados para os incentivar e compensar com um só gesto.
Chegamos à Páscoa da abundância. Ela também o era para um asceta da mesa como Bento de Núrsia (480[?]-547) que, embora impondo-se um rigoroso regime alimentar (pão e água), sabia saudar a alegria da ressurreição, enriquecendo a própria mesa e aceitando os convites dos devotos: recusar a comida na santa data seria uma afronta à graça divina. A alternância entre momentos de sacrifício e de celebração permaneceria muito evidente durante séculos na moral cristã.
Hoje se fala pouco de carne e de peixe. Certamente existem as normas do Código de Direito Canônico, segundo as quais todos os fiéis são obrigados a fazer penitência em determinadas épocas do ano e no respeito às várias necessidades pessoais.
No entanto, a atenção doutrinal se deslocou da mesa para outros âmbitos do cotidiano. As mensagens quaresmais do papa e dos bispos usam o discurso figurado. Houve convites para a austeridade digital, para fazer uma pausa do excesso de informações, de celulares e aplicativos, para se dedicar à reflexão sobre si mesmo e sobre o próprio lugar no mundo.
Em suma, o fiel que come um bife na Quaresma enquanto lê o tablet pode ser repreendido por um imaginário confessor não por aquilo que está espetando no garfo, mas por aquilo que está virtualmente folheando.
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A nova renúncia da Quaresma: o celular, não a comida. Artigo de Claudio Ferlan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU