Professor Faustino Teixeira: meu mestre zen. Artigo de Monica Hortegas

Foto: Johnson Wang | Unsplash

22 Mai 2023

"Em Faustino a alegria não é pueril. É feita do tecido da vida, que inclui natureza, simplicidade, generosidade, dor e contentamento, indubitavelmente", escreve Monica Hortegas.

Monica é psicóloga com mestrado e doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente, faz o Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei, desenvolvendo uma pesquisa sobre Carl Gustav Jung e seu texto poético-religioso Os Sete Sermões aos Morto e poeta. Monica também é poeta, tendo publicado quatro livros de poesia: Passeio de Barco (2011), Aldravia: Poesia do Instante (2017), Instruções para o Poeta Zen ( 2019) e Falo Delas (2021).

Eis o artigo.

Conheci Faustino Teixeira na década de noventa, nos corredores do Instituto de Estudos da Religião (Iser), no Rio de Janeiro. Eu era recém-formada em psicologia e havia sido convidada para trabalhar como assessora para o Movimento Inter-religioso do Rio de Janeiro. Se trocamos algumas palavras pelos corredores naqueles anos, eu não me recordo. Logo depois, fui morar na Europa, e só retornei ao Brasil em 2005, divorciada e com quatro filhos pequenos.

No retorno, fiz a escolha de ir morar em uma cidade menor. Já não me cabia a imensidão e a violência carioca. Busquei por diversas cidades antes de fazer a escolha pela cidade de Juiz de Fora. Percorri a Região dos Lagos, Petrópolis, cogitei o nordeste do país, e enfim, conversando com meu antigo patrão do Iser e grande amigo da adolescência, André Porto, escolhi a cidade mineira de Juiz de Fora. Eu já havia passeado em suas ruas durante a infância, visitando uma querida amiga, Marcia Salgado. Era uma cidade de porte médio, com vida cultural, sem violência, com um custo de vida razoável e principalmente, com uma renomada universidade federal. André me disse que Faustino estava dando aulas lá no Programa de Ciência da Religião e logo me interessei pela ideia. Aluguei um apartamento, carreguei mãe e quatro filhos e me inscrevi para uma vaga no mestrado, na tentativa de ter Faustino como orientador. Na época não havia sequer prova. Era apenas a apresentação de um projeto de pesquisa. Apressei-me em entregar tudo pessoalmente na secretaria do departamento e foi então, a primeira vez que estive no campus da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Lembro-me da demora do resultado. Todos os demais orientadores já haviam escolhido seus orientandos. Faustino atrasou cerca de uma semana a mais para definir seus escolhidos. Para minha tristeza, recebi uma resposta negativa. Penso que ainda era imatura. Não sabia exatamente sobre o que estudar. Apenas sabia que ali havia uma plantinha que precisaria ser regada em algum outro momento de minha vida. Sempre me interessei pelo tema e já na graduação, interligava a religião ao universo da psicologia. Já havia trabalhado por dois anos como pesquisadora da Fundação Biblioteca Nacional no projeto sobre Padre Vieira além de buscar diversas tradições para saciar minha sede por uma compreensão pelo mistério.

Segui outros caminhos. Precisava sustentar minha casa. Dei aulas de inglês e espanhol, aprendi massoterapia. Trabalhei em Ibitipoca. Fiz de tudo um pouquinho. Mas a vontade ainda crescia aqui dentro. Em 2013, atravessada pela crise de meia idade, resolvi fazer nova tentativa ao programa. O que eu fazia não me satisfazia inteiramente. Me indicaram um professor que trabalhava com psicologia e por ele fui prontamente recebida em seu grupo de estudos. Professor Sidnei Noé acompanhou minhas reflexões e no final daquele ano, prestei a prova e me tornei aluna do mestrado, estudando as mandalas junguianas e a compreensão do si-mesmo na psicologia analítica.

Foi lá que retornei o contato com o querido Faustino. Lembro-me do congresso da Soter, onde pude conhecer seus orientandos e ter noites muito agradáveis com sua presença e descontração no grupo. Assisti suas aulas de mística e perguntei se poderia, ao fim do mestrado, ser sua aluna de doutorado. Ali nos aproximamos. Desde então, Faustino tem sido mão segura que acolhe, orienta e guia. Optamos pela mística zen budista e por fim definimos um tema. Eu estudaria ainda o conceito do si-mesmo, mas agora, a partir de um poema zen, chamado O Boi e o Pastor. Foi no ano de 2016 que iniciou sua supervisão formal e foi a partir dali que pude conhecer essa pessoa especial, esse amigo, esse teólogo revolucionário, esse mestre zen.

Monica Hortegas (Foto: Divulgação)

Uma trajetória bonita

Faustino Luiz Couto Teixeira é mineiro. Gosta de anjos, música, árvores e panetones. Também adora filmes e DVDs. Sua coleção de livros é incrível. Corria o risco de abalar a estrutura de sua casa pois sua biblioteca foi criada no segundo andar. Mas o engenheiro descartou o perigo. Atualmente coleciona budas. Tem uma esposa doce e companheira e quatro filhos. Tem noras, netos e uma linda mãe que já passa dos cem anos. Tem também um gato, alguns cachorros, pássaros e tartarugas. Para conhecê-lo um pouco melhor, é importante retornar a sua infância. Com suas palavras ele tece essas primeiras recordações.

"Esta, se inicia numa casa mineira, na cidade de Juiz de Fora, no bairro do Alto dos Passos. Os pais vinham de outro lugar, de Bom Despacho e Belo Horizonte, mas firmaram morada nesta cidade, conhecida como a Manchester Mineira. Na casa que ainda existe começaram com muita luta, mas muito amor. Como frutos da união, quinze filhos, dos quais dez eram homens. Eu, o nono daquela cadeia, nascido numa madrugada de 2 de julho de 1954. Fomos todos educados com muito carinho, embalados por forte tradição católica. Os pais, Mozart e Célia, vinham de movimentos tradicionais da igreja e reverberavam nos filhos os valores mais sólidos dessa atmosfera cristã. O clima humanístico refletia-se por toda parte. O traço humanista estava também na ampla biblioteca da casa, que ocupava dois cômodos, com grande maioria dos livros vinda das áreas de filosofia, teologia e literatura. Naqueles espaços resguardados foram sendo gestados os meus primeiros amores na área das humanidades" (TEIXEIRA, 2014a, p. 3).

Desde pequeno esteve rodeado pela religião. Sua família era devota e a própria cidade da infância mantinha viva a tradição católica. Assim, é desta época as primeiras recordações entre dominicanos, beneditinas e redentoristas, tudo rodeado com muito carinho e alegria. Ainda pequeno, estudou no Colégio da Santíssima Trindade e no Colégio dos Jesuítas.

Estudou filosofia no Seminário Arquidiocesano de Juiz de Fora e teve, entre seus professores, o próprio pai. Em 1974 inicia o curso de filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora, no período diurno e, também, o curso de ciência das religiões, ofertado à noite. Ali, já mostrava sua capacidade de liderança, sendo representante discente nas reuniões departamentais. Também nesta época participa de um outro grupo, chamado Tropa Maldita, sob a orientação do teólogo e padre jesuíta, João Batista Libânio, onde se discutia temas diversos, como teologia, arte e filosofia. É neste clima juvenil e revolucionário que conhece sua futura esposa, Teita, com quem se casou no ano de 1978.

Na sequência, sua pós-graduação ocorreu em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), sob o incentivo do próprio Libânio e sob resistências de movimentos mais conservadores de Juiz de Fora. Em suas palavras:

"Na ocasião, o Departamento de Teologia da PUC-RJ solicitava a todo candidato leigo ao mestrado de teologia uma carta da Diocese de origem, com a indicação precisa do trabalho exercido na igreja. O bispo de Juiz de Fora, dom Geraldo Maria de Moraes Penido, recusou-se a fornecer a carta por razões ideológicas. Por sorte, o então diretor do Departamento de Teologia da PUC-RJ, pe. Álvaro Barreiro, aceitou como comprovação de minha atuação na pastoral da cidade, cartas de outros religiosos da cidade, como a dos dominicanos frei Domingos Maia Leite e Alano Porto de Menezes, sinalizando o meu trabalho de assessoria junto ao jornal Evangelizar, da mesma diocese. Vencido este obstáculo, parti para o Rio de Janeiro no início de 1978 [...]"(TEIXEIRA, 2014a, p. 8-9).

Sua dissertação teve como tema a Comunidade Eclesial de Base: elementos explicativos de sua gênese, e a defesa aconteceu no ano de 1982, tendo como membros da banca, seu orientador João Batista Libânio, e os professores Antônio da Silva Pereira da PUC e e Jaime Snoek da UFJF. Ao mesmo tempo, lecionou na própria PUC e, também, na Universidade Santa Úrsula. Também contribuiu desde os primeiros anos do Iser.

Faustino lembra que nem tudo foi fácil naqueles tempos no Brasil. Clodovis Boff, Antonio Moser e Pedro Ribeiro de Oliveira foram alguns dos docentes impedidos de seguir lecionando na PUC, devido a dissidências. Segundo se recorda, “já se insinuavam no ar os primeiros efeitos da restauração romana, que a partir de então ganhará mais força por todo canto” (TEIXEIRA, 2014a, p. 12).

Seu doutorado foi realizado na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, para onde viajou em 1982, com sua esposa e dois filhos pequenos, para um período de quatro anos. Sua tese doutoral foi finalizada com 1055 páginas, aprovada com “Summa cum Laude”: Com o título de A fé na vida: um estudo teológico-pastoral sobre a experiência das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil foi dividida em três partes, elementos explicativos da gênese das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil; elementos de compreensão da dinâmica fé e vida na experiência das Comunidades Eclesiais de Base e por último, questões teológicas conexas com a realidade das Comunidades Eclesiais de Base. A defesa doutoral aconteceu em Roma no início de dezembro de 1985

Retornou à PUC-RJ em 1986, e lecionou em disciplinas nos cursos de graduação e pós-graduação em teologia. Em 1989 surgiu a possibilidade de prestar concurso em Juiz de Fora para uma vaga no Departamento de Ciência da Religião da UFJF, para a cadeira de eclesiologia sistemática. A nomeação como professor adjunto efetivo ocorreu no final de dezembro de 1989.

Faustino acompanhou o crescimento do curso em ciência da religião em Juiz de Fora, sua cidade natal. O curso de especialização em ciência da religião foi criado em 1991. E em 1993, nasceu o programa de mestrado, onde assumiu a tarefa de primeiro coordenador do programa, permanecendo nesta função por dez anos. O doutorado veio depois, no ano de 2000.

Nova oportunidade surgiu em 1997. Ele viajou para Roma e conheceu Jacques Dupuis, um jesuíta belga que atuou 36 anos na Índia, e que na ocasião lecionava cristologia e teologia das religiões na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Com ele iniciou seu estágio pós-doutoral, que marcou outro importante trabalho, sendo publicado em dois números na revista Perspectiva Teológica: Panorâmica da abordagem cristã sobre as religiões e Para uma teologia cristã do pluralismo religioso.

Toda essa pluralidade de mestres e experiências deu a Faustino um sentimento de abertura que se mostra constante e consistente. Iniciou uma pesquisa sobre importantes figuras do diálogo entre as tradições, e mais do que falar de conceitos ou temas, buscou compreender o universo pessoal de cada um destes buscadores. Assim, investigou nomes como Thomas Merton, Henri le Saux, Raimon Panikkar, Louis Massignon e Simone Weil. E também Abd-el-Jalil, Louis Gardet, Georges Anawati, Serge de Beaurecueil, Christian de Chergé e Paolo dall´Oglio. Os nomes não findam aí. Sua curiosidade incansável tem enveredado por novos mares, e trazem presenças da música como Caetano Veloso e Gilberto Gil ou na literatura como Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

É esse teólogo de visão tão ampla que nos ensina que há um ponto onde as tradições perdem suas fronteiras, e podem verdadeiramente dialogar. Este ponto, por alguns autores chamados de virgem, por outros de vazio, é onde Faustino decidiu enveredar e estabelecer amplas e grossas raízes: a mística. Foi dele a iniciativa da criação das disciplinas de mística comparada na UFJF, voltadas ao aprofundamento da mística cristã, islâmica e zen budista. Além disso iniciou a orientação de alunos nessa área, em conjunto com um grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), criado em 2006 e chamado de Núcleo de Estudos de Mística Comparada. Com isto surgiu a criação de seminários de mística comparada, realizados anualmente na cidade de Juiz de Fora, no Seminário da Floresta, com a participação de figuras ilustres como Luis Felipe Pondé, Maria Clara Bingemer e Marco Lucchesi.

Sua produção, ao longo de toda uma vida, tem sido tão vasta, que seria impossível mencionar todos os artigos, capítulos de livros e obras por ele produzidos e organizados. Essa compulsão por escrever tem brindado a todos os seus alunos e leitores, um aprendizado fascinante. Já aposentado da academia, ele segue com disciplinas na UFJF como professor convidado, além de contribuir através do programa semanal Paz e Bem, do canal 247, em rede nacional, em conjunto com Mauro Lopes, que veio a se tornar um grande amigo, com conversas sobre os diversos temas que levantam sua curiosidade.

Faustino é, sem dúvida, uma pessoa bonita. Sua trajetória de vida se faz na ação tranquila, atenção plena e um coração em paz (ROSHI, 2013, p. 21). Como reconhecimento por toda essa trajetória de profunda sabedoria, aliado a uma abertura teológica impressionante, Faustino recebeu, no ano de 2020, o prêmio Ibn Arabi-Taryumán. Este prêmio é oferecido a consagrados autores. Em seu caso, foi “pela sua criativa e sua significativa contribuição, como docente e investigador, nos campos do pensamento, da literatura, da espiritualidade e do diálogo” (MIAS).

Faustino Teixeira (Foto: Reprodução | Facebook)

Um buscador do diálogo

Falar do diálogo em Faustino tem suas peculiaridades. São poucos os teólogos que aceitam o outro em sua inteireza. Em suas palavras: “não se pode apagar o ‘mistério pessoal intransponível’ que habita o mundo do outro” (TEIXEIRA, 2012, p. 175). Há de se respeitá-lo sempre e esta seria a base para o verdadeiro diálogo inter-religioso.

Como cristão, esse aprendizado se deu a partir do reconhecimento da diversidade e, também, pela abertura ao pluralismo religioso. Segundo ele, o pluralismo de princípio seria a compreensão de que o Deus cristão seria o mesmo das outras tradições. Seria necessário desabsolutizar o cristianismo para perceber a manifestação de Deus e de seu mistério em todos os lugares (TEIXEIRA, 2012, p. 174) e, ultrapassando, inclusive a própria instituição religiosa, perceber que as qualidades do espírito humano também devem ser igualmente acolhidas.

Papa Francisco tem sido um dos grandes exemplos para Faustino de um homem que veste essa abertura. Palavras como compaixão e ternura fazem parte do discurso de ambos, Francisco e Faustino. Assim, meu professor acompanhou com muito entusiasmo, o Sínodo da Amazônia, e o reconhecimento do valor dos indígenas, ribeirinhos e quilombolas e da insubstituível presença e importância da Floresta Amazônica como um todo. Já em documentos anteriores, como o Laudato Si, o papa já tratava da Terra como uma irmã e relembrava que o corpo humano seria constituído pelos elementos desse planeta (FRANCESCO, 2015, p. 3), o qual Faustino segue investigando. Uma tessitura que nos faz a todos irmãos, não mais ou menos que a irmã Terra.

Seu estudo sobre os buscadores cristãos é crescente. Passeia desde as beguinas e Mestre Eckhart, passa por santos como Teresa e João da Cruz, até nomes como Thomas Merton e Teilhard de Chardin. Faustino nos brinda com o percurso de vida desses grandes mestres e traz à luz sobre como todos esses seres foram tocados pela chispa do amor incandescente. As moradas de Santa Teresa ou a noite escura da alma de São João são temas recorrentes em suas aulas. Há de ser ter coragem de atravessar desertos, noites, subir degraus e ficar sempre atento, pois quanto mais se caminha, mais é possível cair em ilusões e enganos (TEIXEIRA, 2017b, p. 77).

Nessa acolhida, Faustino passeia por entre tradições, estudando apuradamente seus ensinamentos e fazendo amigos. Na tradição islã, estudou o Alcorão e místicos como Rumi, Ibn Arabi e Al-Hallaj em conjunto com a beleza da dança sufi e a poética islâmica. Para além de um templo, é Rumi que ensina que o lugar onde habita o divino é o próprio coração. O fiel verdadeiro seria aquele que “se deixa queimar pelo fogo do amor” (TEIXEIRA, 2014b, p. 214).

Faustino se atém com cuidado à mística sufi. Para ele, esses místicos souberam captar uma dimensão de Deus, compreendendo a limitação e a contingência do humano (TEIXEIRA, 2014b, p. 191). E assim, segue investigando a mística de Gilberto Gil, a mística de Clarice Lispector, a mística de Guimarães Rosa, entre outros. Uma mística que seria um ponto comum onde todas as religiões se encontrariam. Para além das paredes institucionais, aqui há espaço para a expressão do mistério, da confraternização e da alegria.

Com essa mesma curiosidade para aprender sobre o outro, ele também foi abrindo as portas para conhecer e vivenciar o zen budismo em sua vida. Para Faustino, o zen é

"Uma ‘trama existencial’, uma disposição particular, de fundo, com respeito à vida e ao tempo. Trata-se de um modo peculiar de proceder, eminentemente prático, que envolve uma atenção singular ao real, à vida, em toda a sua tessitura concreta e existencial, e a todo instante" (TEIXEIRA, 2014 b, p. 139).

Desta forma, estudou desde mestres tradicionais como Dôgen, filósofos como Nishida, poetas como Bashô, o controvertido Suzuki, até autores mais modernos, como Jack Kerouac.

Talvez, uma das grandes contribuições do zen na vida de Faustino, tenha sido a de que, para esta tradição, nirvana é samsara e samsara é nirvana. Não seriam dimensões separadas de imanência e transcendência. A iluminação, seria, no limite, o viver plenamente o aqui e agora. Isto se daria com a morte de um eu egocentrado para um ser, “habitado pela realidade da vida” (TEIXEIRA, 2014b, p 122). É esta realidade, com suas alegrias, mas também com suas dores, a que Faustino se abre, sem medo e sem resistências.

A mística faustiniana

Para além de teorias, é preciso sentir na própria pele a presença do mistério, para que se compreenda o que é a mística. Não basta o pensamento lógico racional. Os caminhos para essa descoberta são tantos quanto o número de seres neste mundo. Talvez uma das portas pela qual lhe foi ofertada essa presença foi conviver com sua doença, mesmo que sua marca registrada seja o sorriso e a alegria. Em carta a amigos próximos, declara:

"Passei por uma devassa corporal, que corroeu o meu organismo, em razão de uma grave doença, a mielofibrose, uma espécie de câncer no sangue, que produz fibrose na medula óssea. Cheguei a atingir o nível 3 de fibrose, num máximo de 4. A situação estava ficando brava para mim e os recursos médicos, existentes, potentes, podiam falhar a qualquer momento. Para vocês terem uma ideia, tomava um medicamento suíço, Jakav, cujo custo era de R$ 24.000,00 por mês, e foi coberto pelo meu plano de saúde. Ele foi o recurso disponível que tive por cerca de dois anos para manter minha doença sob certo controle. Os leucócitos, porém, teimavam em manter altos índices, permanecendo em torno de 24.000 ou 21.000, em momentos melhores. Todos os meses tinha que fazer exame de sangue para controlar a doença. Uma situação bem delicada, que provocava aquela ansiedade mensal de ter que verificar os resultados pela internet e logo comunicar com meu doutor" (TEIXEIRA, 2020, p. 2).

Desde 2005 ele já tinha consciência da doença, e, a partir dela, reflete que “vivi na pele a experiência da impermanência, constatando que minha vida seria diferente depois disso” (TEIXEIRA, 2020, p. 2). Ao longo dos anos fez sangrias, tomou hidroxiuréia, com efeitos desde manchas até um escurecimento da pele. Os exames também tinham a característica de serem muito sofridos. Devido a dimensão do baço e a quantidade de leocócitos, no ano de 2019, cogitou-se o transplante de medula óssea. Segundo Faustino, já havia, mesmo que inconscientemente, um preparo espiritual para tal procedimento (TEIXEIRA, 2020, p. 3).
Com a data estabelecida para o dia 12 de junho de 2020, iniciou-se um processo também difícil e doloroso de testes, exames e procedimentos.

Já internado, em um pequeno quarto de hospital, sem nenhuma vista, Faustino inicia, o que ele chama de travessia. Talvez a mesma dos grandes mestres, ou dos grandes personagens como seu querido Riobaldo, quando decidem travar um encontro consigo mesmo. Não é, sem dúvida, por acaso, que O Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, tem sido um dos livros de cabeceira deste querido mestre, nestes últimos dias. No hospital, foram trinta e cinco dias de internação, com a presença amorosa de sua esposa, médicos e enfermeiros, e, também, com a presença da fé e da esperança. Para isso rodeou-se de livros e de meditações diárias. Ainda em suas palavras ele declara, “como em toda Grande Travessia, tinha dias que o mar estava mais calmo e outras vezes mais agitado (mar mosso)” (TEIXEIRA, 2020, p. 18).

Finalizando o período de internação, houve boa notícia. O transplante foi bem-sucedido, ou melhor, “deu pega” como é dito em linguagem médica popular. Houve festa com bolo, balões e música. Um novo nascimento, diria, um tempo de ressurgência. Esta palavra tem um valor especial. Nas aulas sobre mística, o que este mestre nos ensina é que não é possível vivermos sustentados por uma suposta superioridade antropocêntrica. As lições devem vir do nosso encontro com a natureza, com os seres de companhia, com a simplicidade da vida, com a vida em si mesma. Uma dessas grandes lições advém das árvores.

É tanto o enamoramento por elas que uma de suas últimas decisões será tatuar uma em seu corpo. Na carta escrita aos amigos antes da cirurgia, ele afirma, “sempre fui um apaixonado por árvores. É uma longa história de amor”. E prossegue em sua reflexão, dizendo que há um “desafio de olhar para baixo e poder perceber a teia de vida que se encontra sob os pés, ou seja, uma ‘cidade’ envolvida por malhas e emaranhados, de ação e interação” (TEIXEIRA, 2020, p. 1) e que mesmo que sejam destruídas, para compor ambientes como cidades e estradas, a floresta desperta novamente. Mesmo das cinzas brotam novas mudas.

Essa atenção pelos elementos da natureza, foi sem dúvida, um aprendizado através dos caminhos da mística e em diálogo constante com antropólogos como Tim Ingold e Anna Tsing e, também, com os povos originários nas vozes de Ailton Krenak e Davi Kopenawa, entre outros. Creio também que há um imenso banhar-se nas águas do zen.

Faustino já lecionava sobre o zen budismo, e, em particular, sua mística. Mas ao longo dos quatro anos do meu doutorado, estudamos juntos diversos autores como mestres chineses e japoneses muito antigos, poetas zen e autores da Escola de Kyoto, como Nishida, Nishitani e Ueda. Nesta tradição, a natureza tem um papel fundamental. O poeta que analisei no doutorado, Kakuan, tem uma singela poesia, que Faustino tanto gosta, que diz assim:

"Para escapar do poder do intelecto,
das armadilhas das palavras,
desbravei o mar em busca de conhecimento
que transborda todo dizer.
Deambulei até desfazerem-se as sandálias.
E o que eu encontrei?
A água no rio, a lua no céu"
(KAKUAN apud TEIXEIRA; BERKENBROK, 2018).

Como na mística tudo dialoga, é esse mesmo influxo, que se assiste em Guimarães Rosa, pelas lentes de Faustino. No livro Em que creio eu, Faustino aponta para a importância do personagem Tatarana na composição de sua visão de mundo. “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza [...] As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas” (ROSA apud TEIXEIRA, 2017a, p. 103).

Em um dos últimos encontros em sua casa, antes do início da pandemia do Covid, treinando para uma apresentação de leitura de orações do lançamento do livro As Orações da Humanidade, ele cantou esta música. Guardo-a, como lição, para os que estavam ali presentes, entre familiares e amigos.

"Menina amanhã de manhã
Quando a gente acordar
Quero te dizer
Que a felicidade vai
Desabar sobre os homens
Vai
Desabar sobre os homens
Vai
Desabar sobre os homens
Na hora ninguém escapa
Debaixo da cama
Ninguém se esconde
A felicidade vai
Desabar sobre os homens
Vai
Desabar sobre os homens
Vai
Desabar sobre os homens
Menina ela mete medo
Menina ela fecha a roda
Menina não tem saída
De cima de banda ou de lado
Menina olhe pra frente
Oh menina todo cuidado
Não queira dormir no ponto
Seguro o jogo atenção
De manhã
Menina a felicidade
É cheia de praça
É cheia de traça
É cheia de lata
É cheia de graça
Menina a felicidade
É cheia de pano
É cheia de peno
É cheia de sino
É cheia de sono
Menina a felicidade
É cheia de ano
É cheia de Eno
É cheia de hino
E cheia de ONU
Menina a felicidade
É cheia de an
É cheia de en
É cheia de in
É cheia de on
Menina a felicidade
É cheia de a
É cheia de e
É cheia de i
É cheia de o
Cheia de a
Cheia de e
Cheia de i
Cheia de o"
(MARTINS, FROES).

Conclusão

Em Faustino a alegria não é pueril. É feita do tecido da vida, que inclui natureza, simplicidade, generosidade, dor e contentamento, indubitavelmente. Faustino segue produzindo incansavelmente. Seja no quarto de hospital, em casa, em suas viagens, há sempre um compartilhar do que está lendo, do que está escrevendo. As redes sociais têm sido um interessante espaço de diálogo onde ele oferta generosamente seus pensamentos, orações, últimos poemas lidos, artigos e reflexões produzidas.

Essa abertura à vida, esse diálogo constante com religiosos, autores, amigos faz dele um grande mestre. Mas para além das palavras, seu exemplo também ensina. Seja plantando e cuidando das árvores, seja valorizando sua família, seja celebrando suas amizades, vamos, ao seu lado, sorvendo o que podemos de seus ensinamentos.

Faustino é um teólogo, acadêmico, cientista da religião, cristão. Mas é muito mais: um homem do diálogo, um buscador, uma pessoa de paz. Esse doce mestre zen escolhe diariamente o que plantar. E sua escolha é sempre repleta de alegria. Simplesmente isso. E já, bastante.

A ele, sou grata.

Referências

FRANCESCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2015. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html . Acesso em: 27 março 2021.

MARTINS, Antonio José Santana; FROES, Antonio Renato Freire De Carvalho. Vai: menina amanhã de manhã. Letra. Disponível em: https://www.google.com/search?q=menina+a+felicidade&oq=menina+a+felicidade&aqs=chrome..69i57.3259j0j15&sourceid=chrome&ie=UTF-8 . Acesso em: 20 março 2021.

MIAS LATINA. Disponível em: https://ibnarabisociety.es/index.php?pagina=165&lang=&fbclid=IwAR27i4d_rfE2gk6KvPIxkSX126omBb_LDJT2z5Dv2MPW0sncIK6L_1uZMJA . Acesso em: 15 março 2021.

KAKUAN. Simplesmente. In: TEIXEIRA, Faustino; BERKENBROCK, Volney (org.) As orações da Humanidade. Petrópolis: Vozes, 2018.

ROSHI, Shundo Aoyama. Para uma pessoa bonita: contos de uma mestra zen. São Paulo: Comunidade Zen Budista; Palas Athena, 2013.

TEIXEIRA, Faustino. Em que creio eu. In: TEIXEIRA, Faustino; BRANDÃO, Carlos (org.). Em que creio eu. São Paulo: Terceira Via, Fonte Editorial, 2017a.

TEIXEIRA, Faustino. Memorial. Defendido no ICH da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 19 de dezembro de 2014 visando o título de Professor Titular. 2014a.

TEIXEIRA, Faustino. Na fonte do amado: malhas da mística cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2017b.

TEIXEIRA, Faustino. Narrativa de uma travessia. Carta, 31 julho 2020.

TEIXEIRA, Faustino. Teologia e Pluralismo religioso. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012.

TEIXEIRA, Faustino. Religiões e espiritualidade. São Paulo; Juiz de Fora: Fonte Editorial; PPCIR, 2014b.

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